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A MANHÃ DO MORTO
[COLUNA 1]
O poeta, na noite de 25 de fevereiro de 1945, sonha que vários amigos seus perderam a vida num desastre de avião, em meio a uma inexplicável viagem para São Paulo.
A mulher do poeta dá-lhe a dolorosa nova às oito da manhã, depois de uma telefonada de Rodrigo M.F. de Andrade.
Ao se levantar, o poeta sente incorporar-se a ele o amigo morto.
A necessidade de falar com o amigo denominador-comum, e o eco de Manuel Bandeira.
O passeio com o morto
Remate de males
Gesto familiar
A cara do morto
O eco de Pedro Nava
À tarde o morto abandona subitamente o poeta para ir enterrar-se.
[COLUNA 2]
Noite de angústia: que sonho
Que debater-se, que treva.
...é um grande avião que leva
amigos meus no seu bojo...
...depois, a horrível notícia:
FOI UM DESASTRE MEDONHO!
Me acordam numa carícia...
O que foi que aconteceu?
Rodrigo telefonou:
MÁRIO DE ANDRADE MORREU.
Ergo-me com dificuldade
Sentindo a presença dele
Do morto Mário de Andrade
Que muito maior do que eu
Mal cabe na minha pele.
Escovo os dentes na saudade
Do amigo que se perdeu
Olho o espelho: não sou eu
É o morto Mário de Andrade
Me olhando daquele espelho.
Tomo o café da manhã:
Café, de Mário de Andrade.
Não, meu caro, que eu me digo
Pensa com serenidade
Busca o consolo do amigo
Rodrigo M.F. de Andrade.
Telefono para Rodrigo
Ouço-o; mas na realidade
A voz que me chega ao ouvido
É a voz de Mário de Andrade.
E saio para a cidade
Na canícula do dia
Lembro o nome de Maria
Também de Mário de Andrade
Do poeta Mário de Andrade.
Com grande dignidade
A dignidade de um morto
Anda a meu lado, absorto
O poeta Mário de Andrade
Com a manopla no meu ombro.
Goza a delícia de ver
Em seus menores resquícios.
Seus olhos refletem assombro.
Depois me fala: Vinicius
Que ma-ra-vilha é viver!
Olho o grande morto enorme
Sua cara colossal
Nessa cara lábios roxos
E a palidez sepulcral
Específica dos mortos.
Essa cara me comove
De beatitude tamanha.
Chamo-o: Mário! ele não ouve
Perdido no puro êxtase
Da beleza da manhã.
Mas caminha com hombridade
Seus ombros suportam o mundo
Como no verso inquebrável
De Carlos Drummond de Andrade
E o meu verga-se ao defunto…
Assim passeio com ele
Vou ao dentista com ele
Vou ao trabalho com ele
Como bife ao lado dele
O gigantesco defunto
Com a sua gravata brique
E a sua infantilidade.
Somente às cinco da tarde
Senti a pressão amiga
Desfazer-se do meu ombro...
Ia o morto se enterrar
No seu caixão de dois metros.
Não pude seguir o féretro
Por circunstâncias alheias
À minha e à sua vontade
(De fato, é grande a distância
Entre uma e outra cidade…
Aliás, teria medo
Porque nunca sei se um sonho
Não pode ser realidade).
Mas sofri na minha carne
O grande enterro da carne
Do poeta Mário de Andrade
Que morreu de angina pectoris:
Vivo na imortalidade.