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Pot-pourri nº 2: Um homem chamado Alfredo / Sei lá... a vida tem sempre razão / O poeta aprendiz

Vinicius de Moraes, Toquinho

Um homem chamado Alfredo
(Toquinho / Vinicius de Moraes)

O meu vizinho do lado 
Se matou de solidão 
Abriu o gás, o coitado 
O último gás do bujão 
Porque ninguém o queria 
Ninguém lhe dava atenção 
Porque ninguém mais lhe abria 
As portas do coração 
Levou com ele seu louro 
E um gato de estimação 

Há tanta gente sozinha 
Que a gente mal adivinha 
Gente sem vez para amar 
Gente sem mão para dar 
Gente que basta um olhar 
Quase nada 
Gente com os olhos no chão 
Sempre pedindo perdão 
Gente que a gente não vê 
Porque é quase nada 

Eu sempre o cumprimentava 
Porque parecia bom 
Um homem por trás dos óculos 
Como diria Drummond 
Num velho papel de embrulho 
Deixou um bilhete seu 
Dizendo que se matava 
De cansado de viver 
Embaixo assinado Alfredo 
Mas ninguém sabe de quê

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Sei lá... a vida tem sempre razão
(Toquinho / Vinicius de Moraes)

Tem dias que eu fico 
Pensando na vida 
E sinceramente 
Não vejo saída 
Como é, por exemplo 
Que dá pra entender 
A gente mal nasce 
Começa a morrer 
Depois da chegada 
Vem sempre a partida 
Porque não há nada 
Sem separação 

Sei lá, sei lá 
A vida é uma grande ilusão 
Sei lá, sei lá 
Só sei que ela está com a razão 

A gente nem sabe 
Que males se apronta 
Fazendo de conta 
Fingindo esquecer 
Que nada renasce 
Antes que se acabe 
E o sol que desponta 
Tem que anoitecer 
De nada adianta 
Ficar-se de fora 
A hora do sim 
É um descuido do não 

Sei lá, sei lá 
Só sei que é preciso paixão 
Sei lá, sei lá 
A vida tem sempre razão

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O poeta aprendiz
(Toquinho / Vinicius de Moraes)

Ele era um menino 
Valente e caprino 
Um pequeno infante 
Sadio e grimpante. 
Anos tinha dez 
E asinhas nos pés 
Com chumbo e bodoque 
Era plic e ploc. 
O olhar verde-gaio 
Parecia um raio 
Para tangerina 
Pião ou menina. 
Seu corpo moreno 
Vivia correndo 
Pulava no escuro 
Não importa que muro 
E caía exato 
Como cai um gato. 
No diabolô 
Que bom jogador 
Bilboquê então 
Era plim e plão. 
Saltava de anjo 
Melhor que marmanjo 
E dava o mergulho 
Sem fazer barulho. 
No fundo do mar 
Sabia encontrar 
Estrelas, ouriços 
E até deixa-dissos. 
Às vezes nadava 
Um mundo de água 
E não era menino 
Por nada mofino 
Sendo que uma vez 
Embolou com três. 
Sua coleção 
De achados do chão 
Abundava em conchas 
Botões, coisas tronchas 
Seixos, caramujos 
Marulhantes, cujos 
Colocava ao ouvido 
Com ar entendido 
Rolhas, espoletas 
E malacachetas 
Cacos coloridos 
E bolas de vidro 
E dez pelo menos 
Camisas-de-vênus. 
Em gude de bilha 
Era maravilha 
E em bola de meia 
Jogando de meia - 
Direita ou de ponta 
Passava da conta 
De tanto driblar. 
Amava era amar. 
Amava sua ama 
Nos jogos de cama 
Amava as criadas 
Varrendo as escadas 
Amava as gurias 
Da rua, vadias 
Amava suas primas 
Levadas e opimas 
Amava suas tias 
De peles macias 
Amava as artistas 
Das cine-revistas 
Amava a mulher 
A mais não poder. 
Por isso fazia 
Seu grão de poesia 
E achava bonita 
A palavra escrita. 
Por isso sofria. 
Da melancolia 
De sonhar o poeta 
Que quem sabe um dia 
Poderia ser.

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