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Luzes da cidade (I): O anjo da paz

Última Hora , 4 de Dezembro de1951

Um dia, na cidade de Los Angeles, me foi dado ver uma coisa emocionante. Às primeiras imagens de guerra num jornal cinematográfico, o público que enchia o cinema começou a vaiar. Foi uma vaia estrondosa, que sufocou umas poucas palmas tímidas a saudar na tela a figura de um conquistador, e o estourar das bombas e morteiros nos campos de batalha. 

O povo vaiava a guerra. Não aquela determinada guerra, de que participava com o seu sangue, mas a guerra em si, qualquer guerra, a sua existência entre os homens e a exaltação do espírito guerreiro. Naquele dia, o povo que enchia um cinema de Los Angeles vaiou a guerra e tudo o que ela representa de horror e atraso de vida. O povo execrou a guerra com toda a sua força coletiva, e não hesitou em manifestá-lo claramente, em apupos e assovios que se estenderam durante todo o decorrer das imagens da tela,
 
O que fazia o povo assim vaiar uma guerra pela qual estava pagando com o seu sangue? Que impulso o levava a clamar contra a violência que se desenrolava diante de seus olhos - ele já por demais habituado a tais imagens, encontráveis diariamente em todos os cinemas da sua cidade? O que fazia o povo vaiar assim a guerra era a presença de um anjo dentro desse cinema, a sua presença cotidiana. Porque aquele cinema vinha sendo, desde alguns dias, habitado pelo anjo da paz, e as multidões vinham vê-lo caminhar entre os homens, metido em sua estranha indumentária a que faltavam asas - mas um anjo, um legítimo anjo, com bondade, e a esperança e a coragem de um anjo, e sobretudo sua mudez. Sim, porque é coisa sabida que um verdadeiro anjo não fala. 

O Vagabundo voltara às telas, depois de muitos anos. Voltara com os mesmos pés espalhados, o mesmo fraque roto, o mesmo chapéu-coco sempre no alto, saudando cortesmente a todos. O mesmo medo à policia, o mesmo entusiasmo pela vida, o mesmo eterno lirismo e o mesmo amor à mulher. Voltara o Homenzinho com o seu olhar batido, sua fome, seu patético, sua paciência para a luta, trazendo em sua pantomima uma mensagem simples de amor e perdão. 

Sua presença por umas poucas semanas na cidade de Los Angeles amoleceu, no coração das platéias, o barro duro da vida com lágrimas de riso e de pranto. Todos se sentiram um pouco melhores, bastante mais certos de que a existência, e o mundo, não são feitos apenas de egoísmo, mal-entendidos, guerras e delações.

Agora o Vagabundo veio nos fazer uma visita. Que a sua presença, aliás, pouco noticiada, entre nós, possa trazer ao coração dos homens desta cidade, a que a luta cotidiana, os sacrifícios impostos, corrupção dos tempos, a desatenção e indiferença gerais vêm também endurecendo -, que ela possa trazer o calor das lágrimas que a sua emocionante figura e o seu emocionante caminho sabem melhor que nada neste mundo despertar e desatar.