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Ivan o terrível, de Eisenstein

- , 1 de Janeiro de1940

Embora trate-se de um grande trabalho, nunca fui fanático por Cavaleiros de Ferro (Alexander Névski), o celebrado filme de Sergei Eisenstein. A leitura de Film Sense (O sentido do filme), sua interessante cinestética, veio me aprofundar ainda mais a impressão de que o diretor russo construíra o filme mais para provar a sua nova teoria do contraponto visual-auditivo que propriamente para fazer cinema. 

É, repito, grande, como tudo que saiu das mãos de Eisenstein. Não se é em vão um dos maiores artistas de um século; e, ao estabelecer aqui qualquer medida de comparação, não quero procurar outro senão o próprio Eisenstein, que, ao lado de Chaplin e Pudovkin, foi quem mais contribuiu para a grandeza do cinema nos últimos tempos. Quando me lembro de Potemkin (as cenas da revolta a bordo; a montagem no ataque a Odessa; a sublimidade bachiana - do melhor Bach - das tomadas de amanhecer no porto), acho pobres os horizontes de Névski, precárias as suas batalhas, seu clímax do degelo inseguro em paralelo com a invenção de D.W. Griffith em Way Down East feito em 1920, na famosa cena em que Richard Barthelmess corre em socorro de Lillian Gish através do gelo do rio que se fragmenta - e que deve, provavelmente, ter servido de ilustração ao mestre russo. 

A paixão de uma idéia pode fazer um bom filme, mas o que me parece pode fazer melhor ainda um bom filme é a paixão do cinema. Minha impressão, com relação a Névski, é que Eisenstein não se mostrou à altura da parte musical escrita por Prokofieff para o filme, em sua tentativa exasperantemente esteticista, anticinemática, de contrapontar som e imagem numa unidade ao mesmo tempo perfeita e independente. Resulta que, em seu esforço de compreensão musical da imagem, a música, poupada, quedou-se em sua verdade primitiva e levou a melhor no casamento, que eu não duvido tenha sido feliz enquanto durou. Mas não foi à toa que Prokofieff arranjou-a mais tarde em forma de suíte sinfônica, divorciando-a virtualmente da imagem. Fosse Eisenstein fazer o mesmo, e estou certo que os vazios criados pela ausência da música deixariam a nu as contrações desse generoso esforço de cópula. Pois a realidade é que não existe tal coisa como um casamento perfeito, entre seres como entre artes, e os grandes impulsos de unidade, por mais tentaculares e belos, são efêmeros. Os seres, como as artes, são mundos em si, e sua relação só é feliz quando o amor de cada um impõe espontaneamente à sociedade mútua uma série de obrigações recíprocas. Tal como foi, não. A expressão foi criada por Filme para definir aquele ramo da filosofia do mito. Névski revela, à luz mais fria da crítica, o drama wertheriano da imagem com relação à música, e, como a personagem de Goethe, é ao mesmo tempo um aviso e um convite ao suicídio aos que, por amar mais à própria paixão que a seu objeto real, colocam-na num altar inacessível e esvaem-se em sua adoração. 



Já em Ivan o Terrível Eisenstein, embora dando à música, também de Prokofieff, um grande papel na produção - trata-se, não nos esqueçamos, de um perfeccionista -, não insistiu na aventura de Névski. Fez cinema com a imagem, poderosamente com a imagem, usando o som e a música como elementos de reforço cinematográfico, nunca como elementos de criação de cinema. 

Ivan não é um filme que se possa ver uma só vez. Para quem o viu, como eu, cinco ou seis vezes, a aproximação que Eisenstein fez da história (com uma força cujo paralelo só me vem em unidades que poderiam parecer exageradas se não tivessem sido lembradas antes; certas tragédias gregas ou shakespearianas: Os Ersas, Agamenon, Édipo Rei, Henrique V, Júlio César) acaba por resultar num tremendo impacto de cinema. Trazendo a câmera até a percepção mínima dos detalhes elaboradíssimos de cada imagem, Eisenstein isola um por um os quadros dessa monumental tapeçaria, como já o fizera Carl Dreyer em A paixão de Joana d'Arc, mas sem a nervosa contenção do cineasta dinamarquês, que obriga a máquina a se mover constantemente e mesmo a saltar sobre o objetivo. Parece-me, inclusive, que sua principal preocupação foi a de se esconder o mais possível dentro da magnitude do tema apresentado, procurando mostrá-lo mais como um mestre de cerimônias impessoal que como o seu formidável criador. E também me parece apressado dizer que não o conseguiu. Ou que o conseguiu, tal como está, em desespero de causa, maliciosamente, como solução cinematográfica a possíveis restrições de liberdade. Essa capacidade de desobjetivação diante da obra criada é privilégio de muito poucos artistas: os maiores - um Sófocles, um Bach, um Shakespeare. Em geral, a visão do artista é relativa, e se opera dentro de todos os limites que lhe são impostos por sua natureza de indivíduo dentro da sociedade, e suas reações e seus conflitos. O grande artista é aquele em que os conflitos da própria personalidade melhor se anulam ante a criação. E em Ivan o Terrível Eisenstein foi esse artista. 

Potemkin pode ser uma obra única na cinematografia mundial, mas Potemkin nunca deixará de ser uma obra didática para o estudante de cinema. A cinestética de Eisenstein está presente a todo momento, na construção de seus silêncios pressagos, carregados de sentido cinematográfico, e em suas montagens de laboratório, quando manufatura cinema para o efeito que quer conseguir. Tal não acontece em Ivan o Terrível - e com isso não estou querendo dizer que uma obra seja maior que a outra. Digo apenas que uma é mais eterna, está menos sujeita à corrupção do tempo porque já transpôs a fase da inquietação estética: é a própria estética, amadurecida, humilde, de plena posse de seus dons. 

No fundo, apesar do tremendo capricho manual que representa, Ivan o Terrível é uma obra simples. Parte do princípio que cada parte de um todo que se quer perfeito deve ser perfeita, e como tem por intuito isolar um momento particular da história, mostra-o em grandes proporções. Para isso, Eisenstein trabalhou com um elemento básico de qualquer arte, que é a composição, e com o instrumento, no caso, mais apropriado em sua arte, ou seja, a câmera em close-up. Tratava-se de aproximar essa câmera até a verdade última das expressões humanas. Para mostrá-las em seu dramático contraponto, em sua transfiguração histórica, teria sido contraproducente explorar-lhes os traços meramente humanos. Não nos esqueçamos de que são faces da história que estamos vendo, e que sua mímica sintetiza anseios, paixões, acontecimentos de muito maior porte que os da simples expressão humana. O fato de sabermos perfeitamente que o czar moscovita, ou sua bem-amada, ou a famigerada boyarina não agiam assim na vida real só vem acentuar a autenticidade artística do estilo desenvolvido por Eisenstein no filme. Ivan tem sido atacado pela afetação propositada a que Eisenstein obrigou seus magníficos atores, pelo rolar de olhos, choro, e ranger de dentes. O ataque me parece ainda mais ingênuo quando ouço o próprio cineasta dizer: "Em Ivan quisemos antes de tudo transmitir um senso de majestade, o que nos levou a adotar formas majestáticas. Os atores enunciam em tons medidos. Freqüentemente, o diálogo vem acompanhado de música e entremeado de canto coral. Os aposentos são enormes, os tetos excessivamente altos; os brocados, peles e jóias luzem e cintilam; e os poderosos cantos corais da antiga igreja erguem-se solenemente…". 

Por isso é que tanto me irrita a acusação do crítico James Agee, em seu artigo em The Nation de 26 de abril de 1947, de que "tudo o que significa o gênio criador e sua atuação, e tudo o que isso exprime em relação à liberdade e potencialidade em geral, está crucificado em Eisenstein mais significativa e abominavelmente que em qualquer outro homem..." porque "...Eisenstein tem trabalhado como num cárcere, sob a supervisão de carcereiros que são não só especialmente perigosos e desumanos como também mudam de idéia como cataventos". Não preciso dizer o quanto essa acusação me parece injusta. Dói-me ter de ponderar ao maior crítico americano de cinema que ele viu Ivan o Terrível sob um jugo muito pior, o de seu preconceito de liberal anticomunista, porque tal coisa não é visível na produção, e, se é visível, ele a viu como à cena "em que Ivan, ajoelhado, aceita de mãos erguidas o globo e o cetro". Ora, tal ajoelhar não existe no filme, e ele portanto viu mal. 

Parece-me espantoso como o preconceito liberal anti-russo ora vigente possa deitar poeira nos olhos de um homem como James Agee, com relação a um filme de estatura artística e liberdade de criação tão evidentes. O crítico se nega, em seu mau humor liberal, a emprestar a Eisenstein possíveis intenções críticas no fato de ir caracterizando o czar "com um queixo e crânio que se tornam cada vez mais pontiagudos, como John Barrymore em mr. Hyde". Se não me engano, o crânio e o queixo das pessoas mais velhas dão geralmente a impressão de se ter alongado, com o murchamento e a queda da fisionomia - quanto mais num longilíneo como o ator Chercassov! 

A propósito, cabe citar aqui Charles Chaplin em telegrama que mandou a Eisenstein sobre o filme: "Esta é a maior de todas as películas históricas aparecidas até hoje na tela. Por sua leitura, seu esplendor e sua beleza, deixa atrás tudo o que já vimos em cinema.". 

É exatamente a impressão que me dá o filme, quanto mais penso nele: a de haver superado tudo o que já se fez em cinema dentro de uma visão absoluta. Há produções que lhe são parelhas, mas nenhuma como Ivan me traz essa fabulosa sensação de ter visto o cinema crescer diante de meus olhos, como uma planta de faquir. Não acho de especial interesse julgá-lo em função do que representa socialmente, neste momento de agravos. Os paralelos que se possam fazer nada acrescentam ou tiram à qualidade específica do cinema de que está o filme sobrecarregado. Outra coisa não tem sido o moderno cinema russo, senão uma série de paralelos históricos, e não chego a ver que mal há nisso. É o próprio Einsenstein quem diz: "Não tivemos intenção, em nosso filme sobre Ivan o Terrível, de purificá-lo na memória do povo, ou de fazer de Ivan o Terrível um Ivan o Bom. Foi nosso escopo dar a lvan aquilo a que todo herói do passado tem direito: a visão objetiva do verdadeiro alcance e classe de suas atividades. Pois é esse o único modo por que podemos explicar todos aqueles traços, inesperados, às vezes ásperos, e freqüentemente terríveis, que eram indispensáveis a um regente de uma época tão carregada de paixão e sangue como foi a Renascença do século XVI. Retratar Ivan em pleno impulso de suas vastas atividades, e a luta sanguinária pelo estado moscovita, foi o fim que ditou o filme. Quisemos tornar compreensível o labor titânico desse homem que completou a unificação do estado russo em torno de Moscou.". 

Tal retrato foi feito, e é isso o que interessa. Foi feito com integral liberdade de criação, pois seu resultado no-lo mostra. Não existe tal coisa como uma obra de arte sem liberdade de criação. Essa liberdade, em Ivan o Terrível, me parece tão mais larga quanto ela varre, em seu planejamento, dois tempos que se reencontram, e onde vemos se espelhar os mesmos trágicos dilemas sociais. 


II 

Ivan o Terrível pode ser dividido em três grandes movimentos, integrados por seis seqüências nítidas. Poder-se-ia comparar o filme a um oratório, em música. Plasticamente, aproxima-se da pintura mural religiosa pré-renascentista. Mas a forma em arte que melhor parece conter a força ciclônica de suas imagens é a tragédia, como a executaram Ésquilo, Sófocles, ou, mais modernamente, Shakespeare. 

O primeiro movimento do filme, que poderíamos chamar de "heróico", contém três seqüências: a coroação, as bodas, e a batalha de Kazan. Na primeira, Eisenstein tece a pompa bizantina que faz da coroação uma obra-prima de fausto artístico. A magnificência do aparato é inigualável. Ao mesmo tempo, com seu extraordinário poder de síntese, Eisenstein retira às expressões humanas tudo o que não seja imediatamente comunicativo. Os rostos dos cortesãos boyars, durante a cerimônia, são carregados de ódio e despeito, em contraposição com o rosto maravilhoso de Anastasia, a prometida de Ivan, onde brilham toda a devoção e disponibilidade pré-nupciais; ou de seus fiéis plebeus, irônicos em sua contenção. Num jogo lento de grandes close-ups, o diretor subentende toda a luta que se processa por trás da coroação, enquanto prodigaliza uma notável lição de costumes e indumentária da Rússia feudal do século XVI. É difícil descrever a grandiosidade da cena em que, já coroado pelo metropolitano de Moscou, Ivan recebe das mãos de seus dois melhores amigos, os príncipes Kurbski e Kolichov - que deverão abandoná-lo mais tarde, um pela traição consciente e o outro pelo escapismo religioso -, um batismo de moedas que o cobrem da cabeça aos pés, enquanto se eleva o extraordinário, cósmico cantochão que parece a voz do Eterno celebrando uma glória da terra. Terminada a seqüência, o espectador sabe cinematograficamente que está em processo a luta pela unidade russa e que por isso Ivan não é nem um fanático do poder nem um príncipe ególatra. Outro grande estadista também, em seu tempo, foi chamado de fanático e ególatra porque se colocou ao lado do povo e permitiu, em nome da união americana, que duas facções da nação se atirassem uma contra a outra em feroz guerra civil. Seu nome é Abraham Lincoln. 

Na segunda seqüência do primeiro movimento, Eisenstein mostra as bodas de Ivan e Anastasia. Quando a câmera baixa dos ornatos da parede até o beijo dos reais nubentes, o caráter da composição surge com toda a força que lhe empresta Eisenstein no filme. Aqui temos o sentimento bizantino da harmonia plástica tal como foi compreendido pelos pintores religiosos pré-renascentistas. A cena inicial é um quadro em si, como o pintariam Giotto, Fra Angelico, ou Ucello. O repouso da câmera sobre o beijo dá ênfase à qualidade pública da vida privada que era imposta a um príncipe da época. O que se segue é um fabuloso conjunto de detalhes de afresco, com a câmera a serviço do cerimonial. A beleza românica da czarina contrasta a figura gótica do czar num estupendo símbolo do tempo, e a entrada dos cisnes de prata pinta o esplendor com a primeira nota por assim dizer moderna, extemporânea - uma curiosa incursão barroca no casamento austero de Roma com Bizâncio que dá o tom ambiente à celebração das bodas de Ivan e Anastasia. 

Os primeiros elementos trágicos começam a aparecer do momento em que, tendo saído a boyarina e o resto dos comensais, Eisenstein isola os três amigos da mulher para uma tomada de contato com seus problemas íntimos. Vemos então que Kurbski ama a czarina e inveja Ivan. "O casamento põe fim à amizade", diz ele a uma pergunta do czar, que estranha a reserva dos amigos. Kolichov, por seu lado, pede-lhe autorização para entrar para um mosteiro, de vez que não pode continuar a segui-lo em sua nova política e não sente forças para romper com ele. Ivan, cheio de dor, consente. "Ora por nós, pecadores", pede ele, abraçando o amigo. A partir desse momento, a simbologia da tragédia cristã começará a se incutir, eventualmente, no filme, e embora as similitudes me pareçam precárias, acho tão certo dizer-se que Ivan é o justo paralelo de Stalin, como afirmou James Agee, como o do Cristo, na fase da Paixão. A tessitura dramática é idêntica. Kurbski seria, no caso, a imagem de Judas, como insinua mais tarde o beijo envergonhado dado em Ivan, depois que este se recobra de sua estranha doença. 

A seqüência termina com a invasão do povo, açodado pelas manobras da boyarina. O preto-e-branco conseguido por Andrei Moskvin, o cinegrafista dos interiores do filme, é de uma qualidade exemplar. Os cisnes de prata em fuga, símbolos que são da realeza, criam de maneira notável o elemento pânico, em seguida à harmoniosa composição das cenas anteriores. A vitória pessoal de Ivan sobre a sedição faz novamente aparecer o tema revolucionário, delineado na coroação em algumas imagens do discurso. O czar destrói dialeticamente para o povo as crendices espalhadas pela boyarina, e subjuga o impetuoso Skuratov, representado pelo conhecido diretor e ator Mikhail Zharov -, que iria mais tarde se tornar seu homem de confiança. O grande diretor Pudovkin aparece na cena, na figura do fanático Nikola, numa ponta rápida mas impressionante. 

O episódio da chegada do emissário de Kazan dá novamente margem a Eisenstein para o comentário político. A tomada estática do embaixador tártaro, que se aproxima da máquina até que só se lhe vejam as pernas, é uma obra-prima de sociologia de minuto. Não é preciso ser um sociólogo para caracterizar no tártaro em evidência os traços semibárbaros do islamismo, bem como o tipo de civilização adotada, através das botas de couro caprichosamente lavradas, que o diretor expõe ao público como uma peça de museu. 

Com a batalha de Kazan temos o final do primeiro movimento. Aqui, mais uma vez, Eisenstein revela o cuidado extremo com que compõe suas guerras, como sob a consciência de que, infelizmente, até o presente, o heroísmo das batalhas é que tem decidido dos destinos do mundo. Para ele, como para Pudovkin - como o foi para outros grandes diretores: Griffith, Gance, Pabst -, a estratégia cinematográfica das batalhas é tão importante como a militar, para uma boa vitória artística. A progressão é lenta, mas o aparato da guerra medieval, ainda vigente, é dado, elemento por elemento, desde as soberbas imagens do comandante supremo em sua tenda no alto da colina, até a burocracia das operações preparatórias, como no sistema das moedas que os soldados depositam, e que, subtraído o número de sobreviventes, revelará as perdas em combate. Eisenstein, com seu velho cinegrafista Edouard Tisse, que filmou os exteriores, e que o tem acompanhado desde Potemkin, mostrou-se à altura de qualquer princípio, com um preto-e-branco magistral, um senso de composição e perspectiva, um aproveitamento da natureza absolutamente admiráveis. Tão bom só as batalhas de Pudovkin em seu grande General Suvorov. O clímax da vitória é dado dramaticamente, com a fumaça espiralada dos canhões a redemoinhar contra a tela até escurecê-la toda. 

O segundo movimento, que se poderia chamar o da "paixão e morte", retoma a história no momento em que a corte moscovita aguarda a morte do czar, misteriosamente prostrado desde a sua chegada de Kazan. Aqui, volta Eisenstein a trabalhar quase exclusivamente com os elementos da composição. As antecâmaras estão cheias da intriga expectante dos cortesãos boyars, que pretendem a restauração do trono com o idiota Vladimir, filho da cruel boyarina, de modo a reentrarem no gozo de seus privilégios de casta. 

A grandeza do cinema com que lidou Eisenstein dificulta a observação dos detalhes. É tudo magnífico, no sentido miguelangeliano da palavra. A entrada do metropolitano na câmara em que o czar agoniza, em solene composição em V, é inigualada. São momentos terríveis, em que o drama da morte sobrecarrega-se de responsabilidades políticas. O olho agoniado de Ivan surgindo de dentro da Bíblia que lhe cobre o rosto traduz a angústia do homem que vê ameaçada a sua obra pelas forças do destino. Sua ânsia impotente arrasta-o pelo chão, aos pés dos próprios vassalos, a pedir pela sucessão do herdeiro legítimo, seu filho, em nome da Rússia. "Eu vos peço pela unidade da terra russa", exclama ele em sua prece, que lembra a do Cristo na agonia. E, como a parafrasear o Cristo, ele pergunta a um dos nobres: "Por que te conservas em silêncio?" 

Só mesmo um Eisenstein para assim dignificar uma cena em que o motivo é a humilhação rastejante de um líder a pedir piedade pela pátria. Não se vê desprezo, senão temor, nos rostos monumentais que se impassibilizam ante a impotência física do czar. Ivan os amaldiçoa, os execra, numa retomada da personalidade real, com os últimos alentos que lhe restam, para depois tombar fulminado sobre o leito, constituindo aquela incrível, pontiaguda figura diagonal, sobre a qual o traidor pouco depois se vem debruçar, numa das imagens mais admiráveis que já me foi dado ver em cinema. 

Não é possível lembrar tudo. Chamo atenção, no entanto, para certos feitos pantomímicos, freqüentemente presentes na ação, como aquele belíssimo fluxo e refluxo das duas mulheres, a czarina e a megera boyar, em torno do príncipe Kurbski, de esplêndida, muito cinematográfica teatralidade; como também para o uso do som, na proclamação de Anastasia, depois do colapso de Ivan, quando a czarina, entre o choro do infante, retoma o anátema do esposo e pede pelo filho, advertindo: "Caireis presa do domínio estrangeiro!". 

Daí até o final do movimento, o anticlímax exige mais os pedais de amortecimento, mas a progressão não é menos bela. A tentação da czarina por Kurbski é jogada com imagens de grande efeito, com o olho do Cristo do ícone ao fundo a vigiar terrivelmente o desenrolar da traição. A fraqueza do príncipe revela-se melhor que nunca no instante em que, ao saber que Ivan recobrou subitamente as forças, Kurbski beija a cruz em nome do herdeiro legítimo, e, sossegado em seu temor pelo silêncio de Anastasia, recebe do czar, como prêmio de sua "fidelidade", o comando dos exércitos contra a Livônia. A consecução de sua expressão, onde se misturam vaidade, ambição e medo, não só recomenda altamente o trabalho do diretor, como o do ator Nikolai Nazvanov. 

O movimento final, que se poderia chamar o da "ressurreição", inicia-se com os preparativos para a guerra. Encontramos Ivan de plena posse de seus fins políticos, e sua aproximação do povo só faz irritar mais e mais os reacionários boyars. A cena da entrega do jogo de xadrez ao emissário que o deve levar a Elizabeth da Inglaterra, num pedido de auxílio militar, é de grande expressão histórica, primeiro com a sombra do czar dominando o orbe, e, sobretudo, com a sua gigantesca sombra aguda projetada contra a parede ao fundo. 

A seqüência seguinte, do envenenamento da czarina, considero-a um milagre de ousadia recompensada. Realmente, é forte aceitar a coisa de saída, se até esse ponto o estilo empregado por Eisenstein ainda não tiver convencido ao espectador como o mais próprio para o tratamento universal do tema. Como a mim ele me convenceu integralmente, acho a cena uma maravilha. O crítico americano James Agee, em seu artigo sobre o filme, lembra a ópera com referência à cena, e não deixa de ter razão. O desenrolar traz realmente certos valores pantomimicos da ópera, mas abstraídos aqui os elementos ridículos do bel-canto. De qualquer modo, um grande achado cinematográfico. 

Com o velório de Anastasia, Eisenstein atinge novamente no filme as culminâncias da tragédia no sentido grego. Trata-se, a meu ver, com a seqüência da "morte", do momento mais alto do cinema no filme, e entre os maiores na história da sétima arte. Quando vêm trazer ao czar a notícia da traição de Kurbski, que se passara para os livônios, e o príncipe, despedaçado de dor, se pergunta: "Andrei, meu amigo... por quê?" - e, em seguida: "Que mais quereria ele?..." -, Eisenstein responde com um maravilhoso primeiro plano da czarina morta. A simplicidade do movimento é inenarrável. Como é de grande maestria o uso da voz do metropolitano lendo a Bíblia, à maneira de coro, e cuja malícia na escolha dos textos provoca no czar o seu acesso de fúria iconoclasta e sua retomada de energia para a luta. A seqüência termina com a invasão do povo, de que Ivan se fizera aliado, numa espécie de apoteose que bem poderia ser o fim do filme, pois o movimento final pouco lhe acrescenta. 

Aliás, pensando melhor, não sei. Ao filme, sem aquela extraordinária tomada do czar em Alexandrov (quando espia do alto de seu castelo a longa serpente do povo que vem de Moscou, sob o inverno, pedir-lhe para voltar de seu exílio voluntário), ficaria faltando qualquer coisa de muito bom. Também aquele perfil de Ivan contra a multidão, o movimento de seu rosto, a barba traçando um lento arco de círculo na tela, uma coisa austera, dolorosa; aquele piscar sutilíssimo do homem que parece sondar os últimos arcanos do próprio destino... 

Não se faz necessário um fecho. O filme aí está, no que dele posso dizer em palavras. No entanto, mesmo as palavras são falhas para dar uma idéia do que Eisenstein conseguiu, em Ivan o Terrível, com o preto-e-branco das imagens. Uma obra de dignidade realmente única no cinema.