Prosa dispersa
OS CULPADOS DE TUDO
Na hora que corre, quase todas as mulheres estão fazendo regime para emagrecer (e o advébio representa aqui algumas poucas e honrosas exceções). O ideal da forma feminina passou a ser o esqueleto acolchoado, ma non troppo, de maneira que certos ossos fundamentais aos últimos padrões da moda, como a coluna vertebral, os ilíacos, as clavículas, as rótulas e os fêmures, fiquem francamente à mostra. E obedientes a essa nova extravagância do sexo outrora considerado fraco, os especialistas, transformados em mágicos, formulam esquemas dietéticos de toda sorte: macrobióticos, hipocalóricos, astronáuticos, líquidos, o diabo. Os consultórios vivem repletos, o faturamento é altíssimo, as mulheres se sentem divinas-maravilhosas quando começam a ranger nas dobradiças. Tirante conversa de futebol e análise de grupo, é o tópico sobre que mais se fala atualmente. Fulana perdeu 15 quilos em um mês! Sicrana, imaginem só, está reduzindo um quilo por dia com a dieta líquida: que bárbaro! Viram Beltraninha depois que saiu da clínica? Como é que pode!... E os homens — eu digo: os homens! — veem, compungidos, evaporar-se aquelas partes do corpo da mulher consideradas, desde séculos, como as mais responsáveis pela preservação da espécie.
— Ah, que saudade das mulheres de Rubens e Renoir... — suspiram os mais antropófagos.
— Eu, hein... — contestam os costureiros. — Botticelli é que era pra frente, meu filho — um louco genial, previu tudo, com aquela Primavera alucinante, magérrima! Quem gosta de gordura é detergente. A ordem do dia, queridinho, é Biafra, ouviu? Biafra!
E a carne das mulheres some, as faces se encovam, os seios diminuem, as coxas se alongam, as pontas pélvicas protuberam. Quase que as moças poderiam voltar agora à velha fórmula cediça:
— Aperte aqui estes ossos!
Meu caro amigo José Carlos Cabral de Almeida, conhecido endocrinologista — eu diria mesmo, geômetra — de nossa desvairada praça, está mais que ninguém por dentro deste novo tipo de neurose. Passa ele grande parte do seu tempo útil transformando círculos em ângulos, curvas em retas, esferas em planos, peças de rolamento em cremalheiras. Entram — ou melhor, rolam — diariamente pelo seu consultório adentro, mulheres-pipas que ele (depois de debruçar-se sobre estranhos formulários e equacionar carboidratos, proteínas e matérias graxas) devolve à sociedade transformadas em verdadeiras Verinhas Barreto Leite, em autênticas Veruschkas, capazes de sair dali direto para Paris como manequim-vedete. E elas que não arriscavam mais cruzar as pernas numa festa, sob pena de mostrar um crivo de celulite coxa acima, passam a usar minissaias e biquínis, como bem observa Paulinho Garcez, que são pouco mais que band-aids. E o moral com que elas ficam? Resolvem qualquer problema de cálculo integral, fácil.
Mas esqueci de dizer uma coisa: meu amigo José Carlos, além de endocrinologista e emagrecedor contumaz de mulheres (e homens, eventualmente, como no meu caso), é um grande pesquisador dos segredos da genética, assunto que o leva, vira e mexe, a Londres, para cursos e conferências. Eu confesso que a genética é um assunto que me fascina porque suas leis, que também são azares, formulam-se à base de um grande e poético mistério. A palavra cromossomo, por exemplo: para mim é a própria poesia. De maneira que, lidando com a genética e as glândulas do seu semelhante, nada mais natural que José Carlos Cabral de Almeida viva em plena faixa das mulheres superneuróticas. Como uma amiga sua, “uma neurótica divina”, segundo ele próprio diz, e sobre quem me contou o seguinte:
— Pois imagine que ela encontrou um homem extraordinário, com todos os ingredientes, hoje em dia tão raros, para fazer qualquer mulher feliz: rico, inteligente, boa pinta, finíssimo, ótimo caráter — enfim, um bilhete premiado. Começaram a sair juntos e aí eu a perdi por um tempo de vista. Muito bem: meses depois ela me procurou para uma consulta e eu lhe perguntei como ia o romance.
— Acabei — respondeu a “louca maravilhosa”.
— Acabou? Mas você está doida, criatura? Pois você não vivia rezando por um homem exatamente como o que você acabou de chutar?
— É... — fez ela. — Mas é que eu estava tão feliz, mas tão feliz, e tudo correndo tão bem que, de repente, me deu assim uma agonia, e eu resolvi acabar porque já não sabia mais se aquela felicidade toda era felicidade mesmo, ou era neurose…
Essa história me encheu as medidas, porque ela é bem um conto dos nossos tempos, em que os valores se invertem do dia para a noite, e as pessoas ficam realmente sem saber onde pisam e a quantas andam. Aliás, em matéria de histórias, meu amigo José Carlos contou-me outra de sua “neurótica divina” que, essa, é antológica.
Disse-me ele que durante a chamada Guerra dos Seis Dias, entre Israel e RAU, foi procurado por essa mesma amiga e cliente, e, conversa vai, conversa vem, ela começou a manifestar um antissemitismo tão fora de seus moldes que ele, sabendo-a uma mulher inteligente e totalmente despida de preconceitos, os raciais e os outros, mostrou-lhe sua estranheza: tanto mais quanto toda sua esfera social só podia ser pró-Isarel.
— Judeus... — indignou-se ela. — Tomara que morram, todos!
— Eu juro que não estou entendendo nada — disse-lhe José Carlos. — Logo você, uma mulher ultra por dentro, e ainda mais se lixando para política...
— É uma raça que precisa ser exterminada. Hitler não conseguiu, mas eu tenho fé em Deus que Nasser há de chegar lá! Eles estão aí para fundir a cuca da humanidade.
— Mas...
— É isso mesmo. Por que é que está toda gente de cuca fundida, procurando analista e engordando à toa, e aí vai para o dietista e emagrece uma barbaridade, e aí come sem parar e engorda tudo de novo — me diga? Quem são os responsáveis pela neurose de todo mundo, e a minha em particular?
— Francamente, não vejo...
— Pois eu lhe digo: são três judeus.
—...
— Jesus Cristo, Freud e Marx.
—...
— É isso mesmo. Pau neles!
Jornal do Brasil , 27-28 de julho de 1969