Prosa dispersa
O GRANDE TERREMOTO DE LISBOA DE 1969 SEGUNDO O.L.R.
“Nunca se vira manhã mais bela que a de 1º de novembro de 1755. O Sol brilhava em todo seu esplendor, e o céu estava perfeitamente sereno e claro. Não fora sentido o menor sinal de aviso do grande evento que deveria transformar, em matéria de segundos, a cidade de Lisboa numa cena de horror e desolação gerais.”
Traduzo de cor, com pequenos lapsos de memória, do velho livro de textos ingleses que o velho padre, à base do decorebus, nos fazia ruminar nas tediosas aulas do colégio. A descrição convencional não deixava, no entanto, de excitar minha imaginação de menino, e a verdade é que alguns trechos nunca mais me saíram da cabeça. Mal sabia eu que dois séculos mais tarde deveria estar presente, no mesmo local, a um de igual intensidade, e que só não arrasou Lisboa porque teve seu epicentro no oceano, a cento e tantas milhas ao largo; e mesmo assim a teria destruído parcialmente se o deus dos sismos não cismasse, sem intenção de trocadilho, em fazer dele um terremoto horizontal. Porque, dizem os entendidos, fosse ele vertical, e talvez eu não estivesse aqui para contar a história. Ou melhor: talvez não estivesse ainda por lá, vivo e cada dia mais inteligente, meu amigo O.L.R., a quem passo a palavra, pois assim descreveu-me ele sua dramática experiência, ipsis verbis.
O.L.R., como todo bom mineiro que se preza, é chegado ao Além, a casos parapsicológicos, a um bom defuntinho. Fala da morte como se tivesse a Dama Branca sentada ao colo, com um humor macabro que é dos pontos altos do seu charme de grande causeur; mas para quem o conhece, não passa de um processo de autopunição, por isso que representa, no fundo, o riso amarelo dos condenados. Mas deixemos para lá os problemas psíquicos de meu querido amigo O.L.R., para acompanhá-lo passo a passo nesse seu confronto não com o Além, mas o infranatural colocado ao nível do sobrenatural — porque os momentos que precedem um terremoto tiram de letra quaisquer fenômenos de ordem espírita, tais como arrastar de correntes, bater de portas e aparição de ectoplasmas, nisso que se exercem sem razão óbvia diante dos olhos do infeliz totalmente desprevenido, a pensar na futura alunissagem da Apolo-11 ou na galinha ao molho pardo comida na véspera. Tal como aconteceu com O.L.R.
Era o dia 27 de fevereiro último, e a madrugada caminhava a passos lentos para mais uma jornada lisboeta, quando meu amigoO.L.R.., já se preparando para puxar um sono, viu a porta do armário do quarto abrir-se de moto próprio e o chinó de sua mulher deslizar de uma prateleira no alto e cair fofamente, como devem as perucas. Aquilo, sem que ele soubesse bem por que, inquietou-o, e ele se levantou e, para disfarçar, foi — hábito antigo — à cozinha, coar um café, arte em que é exímio. Ao passar pela geladeira, abriu-a num gesto comum a todos os noctâmbulos domésticos, e eis senão quando as garrafas em entrechoque se põem a tilintar em uníssono, alertando-o ainda mais contra a possível incursão do sobrenatural nos seus domínios. O medo ao além-túmulo pressupõe quase sempre um alerta premonitório, e meu amigo O.L.R., já sentindo se lhe eriçarem os pelinhos do braço, partiu para fazer o seu café, pois, como é sabido, o trabalho é boa terapêutica para as perturbações da cuca. Café feito e tomado, foi ele até a sala olhar o céu, provável culpado de todo este cafarnaum, e ao encostar a testa ao vidro da janela, sentiu-o vibrar de um tremor contínuo. “Uai...”, comentou dentro dele o mineirão de Juiz de Fora. Positivamente as coisas naquela noite não estavam se processando como de comum. Passagem de um jato não podia ser, dado que a vibração não fora precedida de qualquer ruído; de maneira que o melhor mesmo era desligar aquilo e ir até o escritório mexer nuns papéis. Porque meu amigo O.L.R. é escritor, e dos melhores.
Contou-me ele que mal se sentou o cinzeiro começou a tremer e a escorregar com a maior sem-cerimônia, diante de seus olhos. “É, seu...”, comentou novamente o matuto que há em todo mineiro. “Deixa eu ir pra cama porque eu não sei o que é, não, mas, que tem qualquer coisa aí, ah, isso tem...”
E como tinha! De repente a massa ígnea sobre a qual, protegidos apenas por uma frágil crosta, nós vivemos nossas neuroses de cada dia, encontrou um ponto de menor resistência, forçou-o um pouco, depois mais, e logo entrou de sola até rompê-lo em mil estilhaços subterrâneos... — e partiu para cima com o impacto de mil bombas H, sacudindo tudo em seu caminho, do Algarve em diante. Aí meu amigo O.L.R., que de bobo não tem nada, sentou-se na cama e com esse senso comum pessedista de que todo bom mineiro é dotado, sacudiu também sua mulher e disse: “Acorda, Helena! Acorda que é um terremoto!”
Outra coisa não era. Era não só um terremoto como um dos de maior intensidade já registrados pelos sismógrafos. Com a única atenuante, conforme disse, de ter um balanço horizontal, digamos como o dos quadris de uma mulata sambando. Pulasse ele como os carnavalescos no auge do baile do Municipal, isto é, verticalmente, e seria uma repetição do de Agadir, ou da própria Lisboa em 1755, que não deixou pedra sobre pedra. Mas O.L.R. tem uma ótima estrela, muito embora os momentos que se seguiram fossem do maior pânico... Pois as luzes se apagaram bruscamente e em meio às exclamações de pavor de sua mulher — imaginem! acordada dos seus doces sonhos de esposa mineira para a terrível realidade de um sismo lusitano — meu amigo O.L.R. lembrou-se de sua filhinha de oito meses. Helena Cristina, mais conhecida como Maria-Pão-de-Queijo, apelido que ganhou dessa bela e boa Geralda, empregada antiga da casa — e isso por um processo associativo que não cabe aprofundar aqui. Meu amigo O.L.R. partiu às cegas para o quarto da infanta, a quem se pôs a procurar em trevas totais, enquanto os demais participantes manifestavam seu terror e consternação em interjeições do maior patético. Até que a menininha foi achada no berço e devidamente protegida pelos braços amorosos de seu pai, ao mesmo tempo que aquela tralha toda tremia e ondulava mais que bailarina de fundo em programa do Chacrinha.
É, queridos leitores, terremoto não é de brincadeira. A gente pode chegar ao ponto de aceitar tudo: dinheiro curto, pai quadrado, bêbado chato, trânsito engarrafado, mulher feia, música da pilantragem, hérnia de disco, dupla caipira, novela de televisão, dieta macrobiótica, poesia concretista, romance de Morris West, trote telefônico, papo de grã-fino, uísque nacional — praticamente tudo.
Menos terremoto. Que o diga meu amigo O.L.R., cujo nome começa onde o outro termina. E como este, é capaz de levantar montanhas. Só que por bem. Pelos amigos.
E volte logo, Lara Resende!
Jornal do Brasil, 22-23 de junho de 1969