Prosa dispersa


O novo samba

O NOVO SAMBA

 

Está certo que se critique, no novo samba, o contingente de estrangeirismos musicais que trouxe para a nossa música popular; mas há que ir com calma e ver a coisa com umas fumaças de sociologia, com perdão do mestre de Apipucos. O Novo Samba nasceu, indubitavelmente, de novas conjunturas: as mesmas que propiciaram o aparecimento de um Sinatra, uma Sarah Vaughan e um Stan Kenton nos Estados Unidos; um Perez Prado em Cuba; um Ary Barroso e um Dorival Caymmi no Brasil. E no Brasil um bairro como Copacabana, — esse imenso cortiço com fumaças de grã-finismo onde se formou, premida pela falta de espaços, de educação e de numerário, uma geração desencantada, golpista e fria — a chamada geração coca-cola — capaz de colecionar vícios e neuroses com a mesma displicência com que as que lhe antecederam colecionavam botões, olho-de-boi ou retratos de artistas de cinema.

Sinatra, Copacabana, be-bop, boite, microfone: eis o novo samba. O divórcio formal entre a burguesia e o povo — divórcio que, por outro lado, se anula certa comunhão de necessidades outrora inexistentes — criou naquela uma espécie de letargo, uma espécie de laisser aller, um intimismo escapista cuja melhor solução é o pequeno bar, a pequena boite onde encontrar seus desencontros, seu tédio de complicações orgânicas, seu medo à vida e ao povo lutando por se afirmar. Pequenos espaços passaram a pedir pequenas músicas — dançáveis, o mais possível, no mesmo lugar. Pequenas músicas passaram a pedir pequenas vozes, e o microfone veio facilitar a realização dessa pequenez toda, os cantores passaram a cantar para o microfone e não para os frequentadores. Por outro lado, essa lassidão patológica da sociedade que vai a boites transmitiu-se naturalmente aos ritmos que se alongaram, sofisticaram, tornaram-se também anelantes, doentios, neuróticos, cheios de problemas negativos, antes que afirmativos do ser e do sentimento humano.

A condenação do novo samba só é possível nesses termos. Ele exerce, como tudo neste mundo, uma função. Neste particular, é capaz de produzir coisas belas, como tem produzido. O que se deve combater nele é a falta de organicidade, o entreguismo, em que se compraz, a vícios que são mais da sociedade do que dele mesmo. Porque uma coisa é evidente: a música popular, como tudo no mundo, não pode ficar parada; tem de evoluir, involuir, mover-se enfim. Não se pode pedir a um Antônio Maria, a um Luís Bonfá, a um Paulinho Soledade, a um Fernando Lobo que façam samba de morro, samba de batucada, porque se eles o fizessem estariam praticando uma contrafação. O samba que fazem é aquele que sabem fazer, aquele ditado pelos sentimentos, dilemas, taras, culpas, vazios, abstenções, negações, ímpar das quais vivem e lutam pela vida. Eu tenho o exemplo em mim próprio, que estou tentando fazer um tipo de samba assim, embora procurando torná-lo mais afirmativo, menos lamuriento no que exprime. Mas não há como fugir. Ainda há pouco numa música em parceria com Antônio Maria, eu falava em “copo de uísque”. Houve quem protestasse. Mas mantive. Não sou bebedor de cachaça e sim de uísque. Aliás, era. Ando agora abstêmio, ai de mim.


Revista Flan, 27 de setembro de 1953

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