Prosa dispersa
LINHA PURA
O samba carioca, em sua trajetória hoje em declínio, tem mantido, como o jazz americano, uma linha pura através da qual se pode sentir suas verdadeiras características. Desde seus primórdios, quando brilhavam o Ernesto dos Santos (Donga) de “Pelo telefone”; o Alfredo Viana (Pixinguinha) de “Já te digo”; o José B. da Silva (Sinhô) de “Quem são eles?”; O Luís N. Sampaio (Careca) de “Um b com a b-a-bá”; o Caninha de “Me leve seu Rafael” e “Esta nega quer me dar”; desde os tempos não por demais remotos da formação de grupos, dos “Sete Batutas” que brilharam na Europa e nas primeiras festas grã-finas cariocas e paulistas, o samba carioca tem conseguido manter uma linha pura e orgânica, hoje em dia cada vez mais rara, mas distinguível ainda em certos números de carnaval que as escolas de samba trazem para a cidade, e na obra desses poucos compositores que fizeram pé firme contra a estrangeirização hoje reinante, seja na música, seja na orquestração, e entre os quais brilha particularmente Ataulfo Alves.
Do princípio do século a esta data, os compositores populares têm-se dado as mãos numa instintiva defesa do que é carioca. Pixinguinha, Sinhô, Bide, Caninha, Careca, Ismael Silva, Noel, Francisco Matoso, Wilson Batista, Heitor dos Prazeres, o bom Ary Barroso (sim, porque há um lado ruim no grande compositor), Ataulfo Alves e poucos mais, formam isso que podemos chamar “a cortina do samba”, o poderoso corpo de música popular que aí está; como um juízo, a chamar permanentemente a atenção dos “samboleristas”, dos “santanguistas” e dos “sanfadistas”, para não dizer pior, para descaracterização crescente desse grande patrimônio do Rio e do Brasil, desse ritmo que viajou continentes e se instalou em quase todas as capitais do mundo e cuja vitalidade carioca é preciso defender custe o que custar.
Revista Flan, 16 de agosto de 1953