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Quando se ouve a história por boca própria

Última Hora , 19 of June of 1952

Mack Sennett, pai de Chaplin e avô do biquíni 
Emoção de muitos críticos e diretores ilustres diante de 
um velho que lhes contou como tinha descoberto Carlitos 
E a comédia cinematografica. Despediu Harold Iloyd e 
quis ensinar Bing Crosby a cantar. Só Dolores del Rio 
ganhou um beijo. Milhões de dólares pela janela 


Cannes propiciou este ano aos jornalistas e críticos presentes ao seu Festival do Filme não poucas oportunidades de se avistarem com figuras cinematográficas representativas. Mas nenhuma como a que lhes foi dada na tarde de 6 de maio, quando, no Palais du Festival, um septuagenário sentou-se diante de um semicírculo de gente atenta e começou a contar histórias que, na sua boca, são como se a própria história falasse. 

Sentados, alguns, em carteiras, como colegiais aprendendo as lições de um mestre; outros de pé, a tomar nota das palavras que um intérprete ia à medida traduzindo, lá estavam os maiores críticos e estudiosos de cinema da França: Georges Sadoul, Henri Langlois, Claude Mauriac (filho de François) - sem falar em não poucos diretores de nomeada, entre os quais Jacques Becker, Yves Allegret e Carlo Rini. Na primeira fila, Georges Sadoul - cuja obra de historiador vai se fazendo cada dia mais vasta e importante - não tirava os olhos da fisionomia ingênua, alerta e sorridente daquele que foi, indubitavelmente (e com o devido respeito a Max Linder), o pai da comédia cinematográfica, seu "primitivo" mais importante, além do maior descobridor de talentos de que já houve notícia na história do cinema: o velho Mack Sennett. 

Pouco antes, numa cerimônia simples que se seguiu à exibição de algumas de suas mais famosas comédias, Orson Welles apresentara Mack Sennett ao público do Festival. E apesar do pessimismo das palavras deste outro grande americano (que denunciou a chamada sétima arte como um negócio, e passou-lhe um sumário atestado de óbito), a figura que surgiu no palco, em seguida ao largo gesto dramático de apresentação de Orson Welles, denunciava um otimismo, um gosto de viver e um prazer de estar ali tão grandes que desanuviaram imediatamente o ambiente de vago mal-estar deixado pelo necrológio de Welles. Bernard Shaw não se teria saído melhor da enrascada e, estivesse ele ali entre a assistência, por certo sua gargalhada diabólica se teria feito ouvir quando Mack Sennett, no meio do palco, deu um súbito pulinho à maneira da comédia antiga antes mesmo de abrir a boca para dizer muito obrigado. 


SÓ DOLORES DEL RIO GANHOU UM BEIJO 

Sennett respondeu à apresentação de Welles em poucas palavras, declarando publicamente sua grande dívida à farsa francesa primitiva dos Pathé Frères, na qual se tinha inspirado para criar as suas famosas "chaves", ou seja, as correrias e perseguições desenfreadas que existem em seus filmes, e os não menos famosos cops de Keystone, isto é, os policiais bigodudos sempre às voltas com o herói da história. Aliás, quando seu intérprete ao microfone disse (num evidente erro de tradução) que mr. Sennett se declarara um grande fã da comédia francesa primitiva, a qual tinha "imitado", o velho ator e diretor retificou com justa veemência - imitado, não! Fora influenciado, e muito, pela farsa francesa, mas não se considerava em absoluto um imitador. 

Pouco depois entravam, cada uma com um buquê de rosas que iam sendo entregues a Mack Sennett, as maiores atrizes francesas e estrangeiras presentes ao Festival. Dolores del Rio, que chegou por último, foi a única que ganhou na face um beijo do grande fazedor de comédia. No meio de tanta mulher linda - Carla del Poggio, Micheline Presle, Yvonne de Carlo, Dolores del Rio e outras mais -, o velho Mack Sennett só fazia sorrir, babando de gosto, Um enxame de fotógrafos se precipitou e ficou por ali vagalumeando durante alguns instantes. Depois o teatro esvaziou. 


AS TORTAS DE CREME NÃO SÃO PARA COMER 

Mack Sennett iniciou sua entrevista à imprensa estrangeira pondo-se inteira disposição dos jornalistas e críticos para qualquer coisa que lhe quisessem perguntar. Ficaria ali a noite toda se fosse necessário. Os jornalistas riram e todo mundo pôs-se a querer ainda mais bem àquele homem célebre, pelo seu jeitão simples e pela sua cordialidade. 

Alguém sugeriu que ele contasse o nascimento da custard pie. A custard pie, que se poderia traduzir sumariamente por torta de creme, constitui uma das grandes descobertas de Mack Sennett como recurso cômico. Não se tratava naturalmente de comer a torta, mas de jogá-la à cara das pessoas com a possível violência. Faziam-se cenas inteiras com os atores e extras a se mimosearem mutuamente com torta de creme, e quanto mais vasta e cremosa a torta, de maneira a lambuzar bem o objetivo, mais graça o público achava. Era considerado hilariante o gesto de limpar os olhos, vagarosamente e com raiva contida, da massa de creme que os tapava. 

O velho Mack Sennett deu a sua clássica risadinha de lembrança. Claro! Contaria a história da torta de creme... Fora assim: naqueles tempos, quando a câmera começava a rodar, era preciso tocar a filmagem para a frente, pois era freqüente o enguiço das máquinas; cada minuto se tornava precioso. Estavam um dia filmando uma comédia com Ben Turpin, o famoso cômico vesgo, e Turpin por azar estava no auge da falta de graça, com a cara desconsolada a aparecer da abertura de uma porta. Por ali à volta achavam-se também Mabel Normand e Slim Summerville, conhecidos atores dos tempos mudos e também descobertos por Sennett. Faziam o que os americanos chamam de horseplay, isto é, gracinhas mútuas de se perseguirem a se baterem, e essa coisa toda. A brincadeira não atrapalhava a filmagem de vez que o cinema era silencioso, de modo que Normand e Slim prosseguiram nas suas molecagens enquanto o diretor desesperado gritava para Turpin: "Make me laugh! " (Faça-me rir). Foi quando Mabel pegou uma torta de creme que se achava por ali e varejou-a em cima de Slim Summerville, o qual desviou a tempo. A torta pegou em cheio na cara de Ben Turpin, e todo o pessoal do palco de filmagem caiu na gargalhada, ante a expressão do ator a se limpar do creme que lhe empastava a fisionomia. Mack Sennett pulou. A coisa era aquela! Aquilo daria um ótimo recurso cômico! Estava descoberta a torta de creme. 

- Mas há que haver rnotivação! - disse Sennett esmurrando a mesa. 

Da maneira como eles fazem hoje em dia na televisão, sem preparação e sem motivo, é uma besteira. A motivação é importantíssima! 



AVÔ DO BIQUINI 

- Sabem que eu sou avô do biquíni? - indagou Mack Sennett aos jornalistas. - Se quiserem, eu conto a história. 

Sua boa disposição era evidente. Todo mundo fez que sim. 

- Nos começos do cinema não era muito fácil colocar material de publicidade nos jornais, fotografias, essa coisa - iniciou ele. - Havia prioridade jornalística para muitas outras matérias antes do cinema. Eu não sabia o que fazer. Até que um dia... 

E ele contou como vira certa vez uma garota num tribunal a mostrar as pernas para impressionar os jurados. Saíra uma fotografia dela assim, na primeira página, enquanto outras coisas muito mais importantes eram relegadas para as páginas de dentro. 

- Foi daí que eu criei as minhas bathing beauties, as minhas belas banhistas. Arrumei, imaginei uma roupa de banho que lhes mostrasse as pernas e nunca mais tive qualquer dificuldade em colocar matéria minha nos jornais. Assim é que todo mundo que veste maiô de banho hoje em dia, deve-o a mim. Eu sou o pai do maiô de banho. E portanto avô do biquíni! - terminou Mack Sennett com uma gostosa gargalhada que contagiou toda a sala. 


DESCOBRIDOR DE CHAPLIN 

Mack Sennett, era evidente, esperava pela grande pergunta da tarde. E de repente ela veio. Chaplin. Como é que ele tinha encontrado Chaplin? - descoberta tão importante quanto a do fogo, da escada, da roda ou mesmo da energia atômica. 
O rosto de Sennett abriu-se. Era o seu maior trunfo. A figura do homenzinho de chapéu-coco pôs-se de súbito a passear pela sala com seu passinho mecânico de passarinho, sua bengalinha de vime, suas chances e seu fraque roto. Georges Sadoul chegou-se para a frente, na sua carteira de colegial. Todos os lápis e canetas puseram-se em posição de sentido. 

- Eu tinha um ator chamado Floyd Sterling que me era indispensável - começou Sennett passando rudemente a mão no rosto vermelho e quase sem rugas. - Ele era o chefe dos cops da Keystone, o maior dos meus policiais cômicos. Ganhava 250 dólares por semana. Seu contrato estava por expirar, e eu sabia que Sterling queria deixar o estúdio logo em seguida. Propus-lhe um aumento para 7500 dólares se ele ficasse. Ele não quis ficar, embora me dissesse que se sentia muito orgulhoso com a proposta. 

Enfim, isso vinha ao caso exatamente para provar a necessidade em que Sennett estava de um novo comediante que pudesse substituir Sterling à altura. Foi quando lembrou-se de que, indo um dia com a sua principal atriz e então namorada Mabel Normand a um teatro de Vaudeville, em Nova York, vira esse pantomímico inglês que ali se achava trabalhando com uma trupe. Lembrava-se de ter dito a Mabel Normand que o rapaz daria para o cinema. Mas como localizá-lo? Afinal conseguiu. Um agente seu deu com o moço - Charles Chaplin era o seu nome - numa pequena cidade da Pensilvânia, chamada Oil City. Chaplin a princípio mostrou-se desinteressado quando lhe propuseram entrar para o cinema, com um contrato de 120 dólares por semana durante um ano: "You mean the flickers? " - perguntou ele, querendo referir-se às figuras que se moviam na tela. Mais tarde, sua trupe deslocou-se até Los Angeles. E assim foi, não tivesse Sterling recusado um contrato vantajosíssimo... 

- ... e é possível que o maior gênio cômico de todos os tempos nunca se houvesse revelado - arrematou Sennett com o exagero de vaidade próprio a todo grande descobridor. 


BOO-BOO-BOO-BOOO... 

- Minha vida tem tido altos e baixos em matéria de descobertas - disse Sennett depois. - Uma vez, num estúdio, tudo me parecia errado naquele dia!, eu vi um rapaz esforçando-se para cantar uma canção. Aquilo me pareceu tão ruim que me cheguei a ele e disse: "Não é assim não, menino... Ponha mais sentimento nisso... É assim que você deve fazer...". 

E Sennett repetiu para nós, jornalistas, uns quatro grunhidos estranhos que acabaram por fazer todos rirem, inclusive ele próprio. 

- Nunca mais hei de esquecer aquele olhar frio que brotou daqueles olhos ingênuos e azuis - ajuntou Sennett, balançando a cabeça. Nunca mais. Só mais tarde vim a saber que aquele a quem eu tinha querido ensinar a cantar era, nada mais, nada menos, que Bing Crosby. lmaginem eu querendo ensinar Bing Crosby a cantar. 


MILHÕES DE DÓLARES PELA JANELA 

- Outra vez - continuou Sennett -, e essa foi pior ainda!, eu vi no estúdio um rapaz com um ar de quem não fazia nada, bestando para lá e para cá. 

Sennett parou antegozando o efeito do que ia dizer. Depois contou de como tinha chamado alguém e perguntado quem era aquele cara tão sem graça vagabundeando por ali enquanto os outros trabalhavam. E lhe disseram. Tratava-se de um jovem pretendente a comediante, com um salário de cinqüenta dólares por semana... "Despeçam! Ponham-no na rua! Não quero gente assim por aqui!". 

Sennett nos olhou meticulosamente, coçando a cabeça branca com um ar gaiato. 

- Eu posso dizer que atirei milhões pela janela nesse dia. Milhões. E aqui está um que foi advogado desses milhões para provar que eu não estou mentindo - estrugiu ele apontando para um homem elegantemente vestido que, sentado a um canto, ria a mais não poder. - O homem que eu despedi chamava-se Harold Lloyd! Sim, senhores: Harold Lloyd! 


UMA GAROTA DE NOME GLÓRIA 

Enquanto o intérprete ia traduzindo para o francês a última história contada, pus-me a observar Sennett com a mais viva atenção, como a querer gravar-lhe a expressão para sempre. E nunca mais hei de me esquecer dela - pois ao homem não creio que vá ver jamais. Uma expressão bem americana - aparentemente a de um velho homem de negócios mas com algo melhor que isso: uma extroversão mais pura, uma candidez menos agressiva, uma familiaridade mais competente. Sua cabeça é completamente branca, com cabelos finos de um teor suave que qualquer aragem agita. Seu rosto é vermelho, rosto de quem gosta de comer bem, beber bem e viver bem melhor ainda. Mas há, por outro lado, no olhar do homem uma compostura, uma segurança que dignificam esse rosto comum. Um bom velho, está se vendo, capaz de criar de dentro de uma grande saúde íntima, com um evidente gosto por uma boa gargalhada e um bom bate-papo. Um legítimo old-times, com todas as características do americano de há cinqüenta anos, contemporâneo de Ziegfield, Teddy Roosevelt, Edison, Mencken e Sophie Tucker. 

Quando o tradutor parou, já Sennett estava seco para contar outra. 

- Vocês viram aquela garota que trabalha numa das minhas comédias exibida há pouco? Aquela de olhos grandes e nariz pontudinho? Pois bem: um dia eu estava no meu escritório conversando com Wallace Beery, que era um dos meus melhores atores, quando ela chegou para me pedir emprego no cinema. Olhei para ela e achei que ela valia a pena. Tinha uma carinha de anjo. Resolvi contratá-la, e enquanto conversávamos nem rne lembrei de Wally (Wallace Beery) que, sentado na minha mesa de trabalho, estava quieto nos escutando falar. Depois a menina saiu e Wally também. Mandei que ela voltasse no dia seguinte. Às nove horas do dia seguinte lá estava eu no meu escritório e nada da garota. Às dez, nada. Às dez e meia, nada.

Afinal, às onze, ela. "Sim, senhora!", zanguei-me eu, "assim é que quer trabalhar para mim, hein? Assim é que quer entrar para o cinema?" "Desculpe-me muitíssimo, mister Sennett", disse ela. "Mas é que eu fui me casar com aquele senhor que estava aqui, mister Wallace Beery." - Sennett balançou a cabeça. - Já viram só... Tinha casado com Wally em menos de 24 horas de conhecimento... Depois tornou-se uma grande atriz dos tempos silenciosos, vocês se devem lembrar dela em Sunset Boulevard, Glória Swanson... Começou comigo a 65 dólares por semana. Dois anos depois trabalhava para a Paramount por 25 mil... 


O ANEL QUE TU ME DESTE 

Alguém lembrou discretamente seu velho romance com a inesquecível Mabel Normand. O olhar de Sennett se adoçou por um segundo, na lembrança, depois ele falou: 

- Ah! Mabel... Mabel era formidável! É verdade que houve um romance entre nós. Estivemos praticamente noivos. Mas eu nunca me casei. Eu não! Pois bem: para mostrar o caráter de Mabel, certo dia eu fui almoçar com ela num restaurante barato, em Nova York. Nesses tempos que falo eu ainda fazia as coisas pelo barato. No meio da história tirei do bolso um anel de dois dólares e cinqüenta que comprara de presente para ela. Mabel ficou radiante. Só faltou chorar. Nunca mulher nenhuma ficou mais contente com uma jóia do que Mabel nesse dia... - seus olhos se apertaram com uma seca saudade. - Muito bem: alguns anos depois, Mabel famosa, e eu bastante próspero, levei-a a um restaurante muito caro também em Nova York no dia de seus anos. Enquanto comíamos, tirei do bolso um anel de diamante que me custara bastante dinheiro. Mabel agradeceu, pôs o anel no dedo e mirou-o como se se tratasse de um cristal ordinário. Nunca vi mulher mais indiferente do que Mabel, nessa ocasião. 


TAL COMO A ETERNIDADE O FIXOU NELE PRÓPRIO 

Para mim era o bastante. Os outros jornalistas ainda lhe perguntavam coisas, mas para mim era o bastante. Deixei-o assim, numa postura suave, perdido na lembrança da antiga namorada: a que com ele participara de tantas correrias, de tantos tombos, de tanta aventura, linda quando o cinema mudo começava a falar. Dei-lhe as costas e saí ouvindo-lhe ainda fragmentos de palavras. O velho Mack Sennett namorado de Mabel Normand - descobridor de Carlitos, patrão de W.C. Fields (cujo camarim de ator era um eterno bar), inventor inesgotável do riso, astrônomo máximo dos céus do cinema, glória legítima da comédia mundial.