Peças teatrais
AS FERAS
CHACINA EM BARROS FILHO
(Tragédia “pau de arara” em três atos)
Tudo começou há dois anos, em Bom Conselho, nas Alagoas, quando, por dificuldades de vida, Francisco de Paula, depois de beijar a mulher, Maria José, e abençoar o filho pequenino, Inacinho, abalou-se para o Rio a fim de trabalhar em obras, como um nordestino qualquer. (De um vespertino da época)
Personagens por ordem de entrada
Francisco de Paula, vinte e cinco anos
Maria José, sua mulher, vinte anos
Jandira, amiga de Maria José, vinte e quatro anos
Tomé de Paula, tio de Francisco de Paula, cinquenta e cinco anos
Pedro, o mascate, vinte e sete anos
Crisanto de Paula, trinta anos (primo de Francisco de Paula e sobrinho de Tomé de Paula)
Cristino de Paula, trinta e cinco anos (primo de Francisco de Paula e sobrinho de Tomé de Paula)
Cristóvão de Paula, trinta e três anos (primo de Francisco de Paula e sobrinho de Tomé de Paula)
Pernambuco, o tendeiro, setenta anos
Isaías Grande, tio de Maria José, cinquenta e cinco anos
João Grande, tio de Maria José, quarenta e oito anos
João Sebastião, irmão de Francisco de Paula, trinta anos
Jovira, comadre de João Grande, quarenta e cinco anos
Zefa, a prostituta, trinta anos
A nordestina velha, setenta anos presumíveis
Duas negras
Quatro mulheres do coro
Comparsas
Tempo
O presente
Primeiro ato
CENA 1
O casebre de Francisco de Paula, à beira de uma estrada, com a caatinga esturricada ao fundo. É manhãzinha. No rústico fogão de barro, Maria José prepara o café para seu marido, que termina de arrumar um saco de viagem. A mulher traz ao colo, adormecido, o filhinho de seis meses de ambos, Inacinho.
MARIA JOSÉ
Café tá pronto. Quer queijo?
FRANCISCO DE PAULA (surpreso)
Tem queijo?
MARIA JOSÉ
Tem um pedaço. Ontem arrumei. De cabra.
FRANCISCO DE PAULA
Mas onde arranjou o dinheiro?
MARIA JOSÉ
Tinha um sobejo.
FRANCISCO DE PAULA (indo até a porta)
Veja só…
A luz vai cambiando para uma claridade maior.
MARIA JOSÉ
Vai fazer quente.
FRANCISCO DE PAULA
Vai. Tenho um mundo de chão para fazer.
MARIA JOSÉ
Até o Rio de Janeiro.
FRANCISCO DE PAULA
Ê, lonjura.
MARIA JOSÉ (servindo o café numa caneca sobre a mesa tosca)
Vai ser duro.
FRANCISCO DE PAULA (voltando-se para ela)
E você, Maria José?
MARIA JOSÉ
Eu?... Eu... nada. Que é que pode fazer uma mulher senão ficar? Não é o que você quer?
FRANCISCO DE PAULA
Não é querer; é necessidade.
MARIA JOSÉ
Eu também tenho necessidade de você.
FRANCISCO DE PAULA
Eu sei. Mas não vai ser muito tempo não, eu tenho fé em Deus. Não vai ser muito tempo não.
MARIA JOSÉ
Tempo de espera.
FRANCISCO DE PAULA
Eu vou arrumar trabalho logo, você vai ver. E depois, tem Crisóstomo e tem meus primos, que estão por lá. E tem seus tios. Eles vão me ajudar. Aí mando lhe buscar, mais o menino.
MARIA JOSÉ
Só Deus sabe...
FRANCISCO DE PAULA
Só Deus sabe. Mas eu tenho fé na bondade de Deus. Aqui é que não tem mais jeito.
MARIA JOSÉ
Às vezes eu penso se não era melhor matar o menino e depois morrer os dois juntos, abraçados, igual Cacilda e Cleanto, lá na serra.
FRANCISCO DE PAULA
Não. Não se põe um filho no mundo para depois matar ele. A gente tem de viver por ele, tem de lutar por ele. Isso é importante. Por isso que eu vou. Por isso vou me meter nesse caminhão e varar esse chão todo. E eu tenho fé que no fim desse caminho, no fim dessa tristeza, tem de ter uma esperança.
MARIA JOSÉ
Ah, se eu pudesse dizer tudo o que tenho trancado aqui no peito. Mas não posso. Eu não posso nem chorar. Eu acho que se eu chorasse, iam sair pedras dos meus olhos.
FRANCISCO DE PAULA
Eu também não sei o que dizer. Tudo o que eu sei é o que você sabe: que aqui não tem mais lugar para mim.
MARIA JOSÉ
Nem para mim. Vou ser como uma alma penada.
FRANCISCO DE PAULA
Não diga essas coisas…
MARIA JOSÉ (disfarçando a emoção)
O café... tá esfriando.
FRANCISCO DE PAULA (chega-se até a mesa, senta-se à cabeceira e abaixa os olhos; depois toma a caneca e sorve um gole)
Não quer?
MARIA JOSÉ
Depois. Agora não tenho fome. Mas coma, meu filho. Você vai precisar.
FRANCISCO DE PAULA (pega um pedaço de queijo e mastiga sem vontade)
Quem diria... Tanta esperança... A seca matou tudo. Agora, tudo o que eu tenho é dívida com o tio Tomé. Carece pagar ele.
MARIA JOSÉ
Eu sei.
FRANCISCO DE PAULA
Tio Tomé... Um homem bom. Um pouco sistemático, às vezes, igual Crisanto; mas bom. Eu falei com ele. Ele vai olhar por você e pelo menino, em caso de necessidade.
MARIA JOSÉ
Da minha necessidade, só você pode cuidar…
FRANCISCO DE PAULA
Mas tem o menino.
MARIA JOSÉ
Antes não tivesse nem nascido.
FRANCISCO DE PAULA
Cale a boca. Não diga isso. Isso não se diz. Assim você atenta contra Deus. Foi Deus que mandou o menino. E tudo o que vem de Deus é bom.
MARIA JOSÉ
Até a seca? Até a separação?
FRANCISCO DE PAULA
Até a seca, até a separação. Depois da seca, vem a chuva. A terra fica verde de novo. Depois da separação, vem o encontro. A gente fica feliz de novo. Foi Deus que fez a vida assim.
MARIA JOSÉ
Então que seja tudo pelo amor de Deus.
FRANCISCO DE PAULA (indo até a porta)
Vai ser como um mês, talvez mais, sem saber de você, sem saber do Inacinho.
MARIA JOSÉ
Pois é, pois é. Eu vou estar aqui rezando o meu terço de Nossa Senhora das Dores todo dia, todo dia, eu vou estar, para que nada de ruim aconteça, para que Deus alumie seu caminho e no fim da estrada que você escolheu tenha aquela esperança que você quer encontrar.
FRANCISCO DE PAULA
Vai ter, vai ter. Eu sei que vai ter.
MARIA JOSÉ
Agora vá. Vá, que é para você gozar ainda o fresco da manhã. Depois, vai ser aquele braseiro. São quase dez quilômetros até Bom Conselho. É muito caminho para você fazer a pé. Vá, meu filho.
FRANCISCO DE PAULA
Eu falei com o Zé-dos-Correios. Eu mando as cartas para lá e ele ficou de avisar quando chegar qualquer notícia. Você não vai passar necessidade não, Maria José. Tio Tomé me prometeu que vai ver tudo para você, quando você precisar. Não se esqueça disso. Depois... eu sou moço, sou forte, posso trabalhar. Eu pago tudo de volta para ele, você vai ver. Não quero ficar devendo nada para ninguém. A gente recomeça nossa vida no Rio de Janeiro. Você não vê, está todo mundo indo embora... No Rio de Janeiro tem trabalho. Me contaram que tem muita obra em andamento. E aquela gente de lá não tem a resistência de um nordestino para trabalhar, não tem, não tem. Não foi à toa que Deus deu tanta privação à gente. É nessas horas que vale essa fibra endurecida no sol desse sertão.
MARIA JOSÉ
Não sei. Às vezes eu tenho medo. Eu nunca tive medo, mas agora às vezes eu tenho. Mas eu não quero ter medo. Não vai adiantar de nada. Me dá lástima, Chico. Não tem nem dois anos que a gente casou... Mas que é que se vai fazer. Vá, meu filho. E que esteja tudo nas mãos de Nossa Senhora da Boa Viagem.
Francisco de Paula toma do saco de viagem, aproxima-se da mulher, beija-a de leve na face e ao filhinho, sobre os cabelos. Depois marido e mulher se olham por um momento, intensamente, com um mudo desespero. Ele faz com o polegar o sinal da cruz sobre a cabeça do filho adormecido e, num arranco, sai porta afora.
CENA 2
A mesma. É noitinha, mas Maria José nem deu por si para acender o candeeiro. Um pequeno fogo de lenha, no fogão, ilumina fracamente o ambiente. Maria José passeia de um lado para outro, tentando ninar o filhinho.
MARIA JOSÉ (cantando)
Minha vaca Laranjinha
Seu bezerro quer mamar
Oi berrou
Quer mamar
Oi berrou
Quer mamar
Oi berrou
Quer mamar
Oi berrou
Quer mamar…
O menino segue com sua tênue lamentação de fome. Maria José passeia-o, enervada.
MARIA JOSÉ
Durma, menino, durma. Durma porque eu não sei mais o que é que eu vou fazer.
A criança continua choramingando.
MARIA JOSÉ (cantando)
Primá, ô minha prima
Primá, ô minha prima
Quando eu me lembro do seu nome, primá
Quando eu me lembro do seu nome, primá…
O choro frágil mistura-se à cantilena que se repete. Desesperada, Maria José toma de um pedaço de pano que embebe num jarro de água sobre a mesa e aperta-o contra a boca da criança que para momentaneamente de chorar.
Tome, Inacinho, tome. Veja se esquece sua fome. Porque sua mãe não tem mais nada para dar a você não…
Ao ver que o choro da criança recomeça, tira o seio e força-o na boca do menino.
MARIA JOSÉ (com um ricto de dor)
Saia, leite, saia…
Espreme o seio com raiva, gemendo de dor e aflição.
Saia, leite. Nem que seja sangue, saia. Saia que é para esse menino calar a boca, saia. Saia que é para eu não ficar louca, saia.
Nesse momento surge à porta Jandira, uma cabocla jovem, amiga de Maria José e sua vizinha de alguns quilômetros distante. Traz na mão um pequeno embrulho. Maria José, na sua angústia, nem dá por ela, que se deixa no limiar da porta, olhando a cena.
JANDIRA (em tom casual)
Ele tá com fome, o bichinho…
MARIA JOSÉ (voltando com susto)
Jandira! Jandira de Deus!
JANDIRA
É fome que ele tem, Maria José...
MARIA JOSÉ
Eu sei. Mas o leite secou. Não tenho mais uma gota. Olhe aqui: estou com o peito todo roxo de tanto apertar. Nem sangue não sai.
JANDIRA
Faça isso não. Não vai adiantar para o menino e prejudica para o pai... Olhe, Maria José: eu soube. Eu soube que o Chico tinha partido para o Rio de Janeiro e imaginei que você estivesse passando necessidade. Por isso eu vim. Esperei só cair um pouco o sol. Trouxe aqui uma coisinha para você. Dá para fazer um caldo para o menino.
Maria José deposita Inacinho no berço tosco, a um canto, e corre para se jogar nos braços da amiga.
Que é isso, que é isso? Não chore não. Guarde suas lágrimas para dores piores.
MARIA JOSÉ
Eu não tenho mais lágrimas. Secou tudo: as lágrimas, o leite, a terra. Está tudo seco. Só meu coração é que ainda não secou de todo.
JANDIRA
Não teve notícia?
MARIA JOSÉ
Não. Ontem passou por aqui Pedro, o mascate, vindo de Bom Conselho. Tinha encontrado o Zé-dos-Correios, não tinha nenhuma carta, não tinha nada. Meu Deus, Jandira... Será que o Chico chegou bem? Será que não aconteceu nada para ele?
JANDIRA
Falta de notícia... boa notícia. Fique sossegada, Maria José... Fique sossegada... Tem dores piores... Tem dores sem remédio, feito a minha, des que Juca largou de casa…
MARIA JOSÉ
É, eu sei. Mas chega o momento em que a gente fica fraca por dentro, feito um pé de pau bichado. Depois, tem o menino que me preocupa tanto... Até agora, eu tinha umas economias que juntei sem o Chico nem saber, prevendo. Mas acabou, Jandira, meu dinheiro acabou. E seu Tomé de Paula, tio de Chico, que ficou de ajudar em caso de necessidade, ainda não apareceu. Pedro, o mascate, me disse que ele anda de viagem para Palmeira dos Índios, e eu não sei o que fazer. Depois, é tudo tão longe... Eu não posso deixar o menino aqui sozinho. Tenho medo. Tenho medo de tudo, até desses cachorros esfomeados que ficam rondando por aqui, até desses urubus que vêm pousar na estrada, igual esperando. Não sei. Nem jeito tenho mais para rezar. Parece que até Deus secou no meu coração.
JANDIRA (debruçando-se sobre o berço)
Deixe de parte, menina, vamos... Vamos fazer uma sopinha para Inacinho. Ponha mais lenha no fogo, o resto fica por minha conta... (Maria José obedece maquinalmente aos conselhos da amiga) Carece dar sustância ao menino para ele encontrar o pai dele. Porque ele tem pai, Maria José, ele tem pai! Você sabe, Maria José, o que é um menino sem pai como o meu?
MARIA JOSÉ
Me perdoe. Na minha dor eu até esqueço a dor alheia. Deus devia me castigar. Em vez, ainda me manda você, Jandira. O Chico tem razão: a gente tem de ter fé na bondade de Deus. Inacinho ainda tem pai, são José seja louvado! Chico está vivo, não está, Jandira? Me diga, me diga!
JANDIRA (exagerando a ênfase)
Claro que está, menina! Claro que está! Quando a notícia é ruim, todo mundo logo espalha. Não tem nenhuma notícia ruim desses paus de arara que têm saído daqui não. (enquanto fala, ela se atarefa no fogão) A Das Dores, do seu Alexandre, que saiu depois do Chico, já recebeu carta dele. Diz que ele arrumou logo trabalho numa obra. E ele conta para ela que o Rio de Janeiro é uma beleza. Diz que ninguém pode saber como é bonito, com um mar assim que toma tudo e cada prédio alto assim na praia de Copacabana. E que tem obra por ali tudo, e o Cristo do Corcovado abençoando a cidade, e avião voando por todo lado. Uma beleza. Diz que daqui seis meses vai mandar dinheiro para Das Dores viajar, e ela só falta ficar louca de alegria…
MARIA JOSÉ (esperançada)
Pois é, Jandira. Eu não sei, agora de repente me deu assim um calor no meu coração. Quem sabe, quem sabe mesmo se Chico não vai mandar me buscar e eu vou para junto dele, o Inacinho vai poder crescer numa cidade grande e aprender ler e escrever numa escola com os outros meninos e fazer arte no mar de Copacabana, igual eu vi uma vez no cinema em Maceió! (ela bate as mãos infantilmente) Você sabe, Jandira, eu nunca tive nada. Depois que mamãe morreu, eu vim direto para o Chico. De menina, trabalhei na fazenda do coronel Palmério, depois me casei. Mais tarde, o Chico comprou esse milho aqui que a seca matou, e aquelas ossadas de gado que você vê junto do antigo bebedouro. Terra amaldiçoada! Levou tudo, acabou levando o Chico…
JANDIRA
Mas agora vai ser diferente, bichinha. Agora você vai encontrar seu marido no Rio de Janeiro e você vai desfrutar dele no meio de toda aquela beleza!
MARIA JOSÉ
Você é tão boa, Jandira... Você veio me trazer tanta esperança! (pausa) Vamos fazer a sopinha do menino, vamos...
JANDIRA
Vamos, criatura de Deus! Você não sabe a felicidade que você tem! Você tem seu marido que lhe gosta e saiu para procurar trabalho por sua causa e de Inacinho! (pausa) E eu? Que é que eu tenho? Aí perdida nesse sertão com um menino de cinco anos que a toda hora me pergunta pelo pai dele. E eu mentindo, mentindo, porque eu sei que o pai dele não vai voltar nunca mais. Eu sim, Maria José, tou seca. Podiam me plantar aí nesse sertão que eu não fazia nenhuma diferença de um pé de mandacaru.
MARIA JOSÉ
Que pecado! Seca você, Jandira? Seca você? Podia secar toda essa terra, todos os rios, até o mar podia secar, mas você não fica seca não, menina. Você é molhada, Jandira; você é boa, você é generosa…
Jandira afasta-se para ocultar sua emoção e aproxima-se do fogão onde começa a mexer na panela da sopa de Inacinho. Maria José chega-se, para ajudá-la, mas de súbito, sem se poder conter mais, Jandira atira-se em soluços nos braços da amiga.
TREVAS
CENA 3
A mesma. Fim de manhã.
TOMÉ DE PAULA (de fora, batendo palmas)
Ô de casa!
MARIA JOSÉ (correndo à porta)
Seu Tomé de Paula!
TOMÉ DE PAULA (entrando)
Bons olhos lhe vejam! Sempre bonita!
MARIA JOSÉ (confusa)
Qual seu Tomé! Tanta privação! Tou só pele e osso.
TOMÉ DE PAULA (a seu modo desabusado)
Pele e osso assim está custando duzentos cruzeiros o quilo na capital do estado. Que é daquele menino? Fez o que eu mandei?
MARIA JOSÉ (com estranheza)
O que o senhor mandou?
TOMÉ DE PAULA
É. O que eu mandei. Ir embora daqui, procurar trabalho, ser gente. Este sertão não foi feito para ele. Aqui ninguém pode ter sentimento não. Olhe Crisóstomo: não foi, não se arrumou? Francisco é como Crisóstomo: são dois que se deixam levar pelo coração. Quem sai aos seus não degenera... O pai, o finado Ezequiel, meu irmão, era a mesma coisa — um homem que não tinha rapidez nos olhos. Escuridão, coiteiro do velho coronel Guedes, espetou ele igual se espeta um capado. Foi preciso eu chegar para fazer um furo assim na barriga daquele moleque sem-vergonha-ordinário, e de mais dois que o coronel mandou pra me acabar. Gente pamonha! Nem parece que tem o sangue de meu pai Cantídio de Paula. (para subitamente de esbravejar) Onde está Inacinho?
MARIA JOSÉ (apontando, desanimada)
No berço.
TOMÉ DE PAULA (indo espiar o menino)
Num... Esse não vai muito longe…
MARIA JOSÉ
Leite secou.
TOMÉ DE PAULA
Homes! veja!
MARIA JOSÉ
Secou.
TOMÉ DE PAULA (apontando-lhe vagamente os seios)
Mas parece que está estourando!...
MARIA JOSÉ (com um gesto de desânimo)
Não sai... Mas não sai nada. Vai ver é a seca. Mal se tem água para beber…
TOMÉ DE PAULA (em tom reprovador)
E Francisco foi assim mesmo…
MARIA JOSÉ (a voz cheia de fatalidade)
Foi. Tinha que ir, já tinha tratado passagem e tudo, em Bom Conselho.
TOMÉ DE PAULA
Então não sei... Não fui eu que paguei a viagem!...
MARIA JOSÉ
É. Chico me disse.
TOMÉ DE PAULA (com implicância)
Mas não devia ter ido, com o filho assim. Isso não é de homem.
MARIA JOSÉ
Que adiantava ficar? Andava por aí, os olhos feitos duas brasas, se comendo por dentro. Assim não: foi — pelo menos foi tentar ver se tira a gente dessa miséria.
TOMÉ DE PAULA
Não se larga mulher para trás. Isso não é de homem. Nem parece neto de Cantídio de Paula! Nem parece meu sobrinho e afilhado!
MARIA JOSÉ (relutante)
Deixe o Chico, seu Tomé de Paula. Ele fez o que lhe pareceu direito. Aqui... só se a gente fosse roer pau seco dessa terra amaldiçoada. Tem horas que um homem tem de ir, tem de ir. Como quem vai para uma guerra, como quem vai para vingar uma afronta.
TOMÉ DE PAULA
Uma guerra... Uma afronta... Nem é homem para isso! Larga mulher e filho sem comida na pior seca que já teve este sertão! Guerra boa, essa... Ir para o Rio de Janeiro trabalhar em obra... Pouca-vergonha! Uma cidade que é só patifaria! Pergunte a Edilberto, que tem pouco chegou de lá, pergunte... Diz que as entradas daquelas obras ficam assim daquelas mulheres da vida, e é um tal de tocar violão e entrar e sair mulher daquelas obras que é um nunca mais acabar. Ele mesmo me contou que acabou pegando doença de homem e teve muita despesa, j’ouviu? — muita despesa para se tratar, porque é homem casado, j’ouviu? Eu posso deitar com quem quiser porque eu sou homem só e nunca quis me prender a mulher nenhuma. Mas um homem casado não pode estar deitando com qualquer rameira não, porque ele deve estar limpo para a mulher dele!
MARIA JOSÉ (deixando-se cair num banco)
Ah, seu Tomé de Paula, eu não sei o que fazer…
Começa a chorar mansamente, a mão apertando os olhos.
TOMÉ DE PAULA (acorrendo)
Deixe disso, menina. Não desperdice choro com que não presta. (passa-lhe os braços em torno dos ombros) Olhe aqui: eu vou lhe ajudar, j’ouviu. Eu vou lhe ajudar. Tomé de Paula não é homem de deixar uma mulher em má situação. Tome nota do que estou lhe dizendo: Tomé de Paula não é homem de duas palavras. Todo mundo nesse sertão sabe disso. (acaricia-lhe os braços e Maria José nem parece dar por isso, imersa em sua mágoa) Tenha coragem! Você é uma menina-moça, cheia de vida e saúde. Você vai ver como Tomé de Paula vai dar um jeito em tudo, você vai ver... (procura nos bolsos, tira um embrulho) Olhe, tome aqui. Isso é um pedaço de rapadura que me sobrou da viagem. Eu vou a Bom Conselho e trago mais. (sua voz começa a empastar-se de luxúria) E trago leite para o Inacinho também, e carne de sol, e tudo o que você quiser, você vai ver. Ouça bem: eu vou num galope só até Bom Conselho e antes da noite tou de volta. Você vai ter fartura, menina! Não vai faltar mais nada para você nem para Inacinho, palavra de Tomé de Paula! (baixando o tom) Tomé de Paula tá rico: não conte isso a ninguém, mas Tomé de Paula está rico! Só você pode ficar sabendo: porque você vai ter tudo o que você quiser, você e Inacinho. É só pedir, é só dizer. Tomé de Paula está aqui para fazer todas as suas vontades!
MARIA JOSÉ (num lamento)
Ah, Chico... Ah, Chico…
TOMÉ DE PAULA (agarrando o chapéu de couro)
Olhe, eu vou. Fique quieta. Não saia. Não receba ninguém. Antes da noite eu estou de volta. E lhe trago tudo, j’ouviu? Nunca mais você vai passar necessidade. Eu vou correndo!
Sai porta afora. Maria José deixou-se estar na mesma posição, chorando e gemendo o nome do marido ausente. Súbito, a criança dá um frágil vagido dentro do berço. Ela corre, toma o menino nos braços e põe-se a passear com ele ninando-o, de um lado para o outro. A canção sai-lhe entre soluços.
MARIA JOSÉ
Minha vaca Laranjinha
Seu bezerro quer mamar
Oi berrou
Quer mamar
Oi berrou
Quer mamar
Oi berrou
Quer mamar
Oi berrou
Quer mamar...
TREVAS
CENA 4
A mesma. Crepúsculo. Maria José passeia de um lado para o outro o filhinho prostrado.
MARIA JOSÉ (a voz como de louca, súplice, entrecortada)
Não morra não, Inacinho. Não morra não. Não morra que seu pai quer ver você, seu pai já voltou e quer ver você, Inacinho.
Espia o rosto do filho, toca-o.
MARIA JOSÉ (apertando o menino contra o rosto)
Ah, minha Nossa Senhora do Parto! Não deixe que meu filho morra não!
Berça-o desesperadamente, como para acordá-lo.
MARIA JOSÉ (cantando, a voz entrecortada)
No mês de dezembro
Menina era eu
Muito bem me lembro
Menino nasceu
Para novamente, depois vai até a porta para espiar melhor, à luz mortuária do crepúsculo, o rostinho desfeito.
MARIA JOSÉ
Inacinho, Inacinho! Acorde, meu filho! Acorde desse sono! seu pai já vem! Olhe ali, seu pai já vem…
Olha para um lado e outro sem saber o que faça.
MARIA JOSÉ (cantando como para despertar a criança)
Menino nasceu! Menino nasceu!
De súbito cai de joelhos apertando o filhinho entre os braços e deixa-se assim, a estreitá-lo, a cabeça baixa. Depois, na mesma posição, levanta o rosto e ergue os olhos para o alto.
Minha Virgem Santíssima! Salve Inacinho, salve Inacinho pelo amor que tem ao seu divino Filho! Salve Inacinho para o pai dele, pelo amor que tem a são José — e eu lhe prometo, eu faço qualquer sacrifício, qualquer sacrifício para que ele viva até encontrar o pai dele... Minha Nossa Senhora, tenha pena de meu filhinho…
Neste instante uma cabeça assoma à porta. É Pedro, o mascate, macérrimo, os olhos no fundo das órbitas, com a sua matalotagem. Ao ver a cena, para interdito.
PEDRO
Dona Maria José! Que quer dizer isso?
MARIA JOSÉ (erguendo-se)
Pedro! Ah, Pedro, me socorra! Inacinho está morrendo!
PEDRO (acorrendo e olhando o menino)
É, dona Maria José... O menino está fraco... Precisa comer...
MARIA JOSÉ
Precisa, precisa. Senão ele morre. Mas eu sequei. Que é que eu vou fazer, Pedro, me diga? Não posso sair e deixar ele aqui...
PEDRO (olhando o céu coalhado de urubus)
Não pode...
MARIA JOSÉ
Seu Tomé de Paula ficou de voltar e me trazer um pouco de leite. Mas tá tardando tanto que eu tenho medo Inacinho não aguente. (pausa) Diga, Pedro...
PEDRO
Diga, dona Maria José...
MARIA JOSÉ
Eu tava pensando... Você está a caminho de Bom Conselho?
PEDRO
É pra onde eu vou...
MARIA JOSÉ
Você pode me fazer uma caridade, Pedro de Deus?
PEDRO
Tudo o que a senhora quiser, menos comida, que não tenho. Minha última ração acabou. Comi o bastante para chegar a Bom Conselho. Ah, se eu soubesse... Mas eu chego lá, pode estar sossegada!
MARIA JOSÉ
Então corra, Pedro! Veja se encontra seu Tomé de Paula. Talvez ele já esteja até a caminho. Corra, Pedro, e diga a seu Tomé de Paula que Inacinho está morrendo…
PEDRO
Eu vou! Diga uma coisa, dona Maria José…
MARIA JOSÉ
Diga, Pedro…
PEDRO
Perdoe falar. Mas a senhora devia dar o peito ao menino. Mesmo que não tenha nada, ele vai chupar, e aí ele fica com a impressão, a senhora compreende, que tá mamando. E isso disfarça ele da morte, até seu Tomé de Paula chegar.
MARIA JOSÉ (agradecida)
Eu vou fazer isso. Como não me lembrei! Agora, vá, Pedro. Vá com Deus!
Pedro cumprimenta com o chapéu e vai sair, mas súbito volta, abre a maleta e tira de dentro um corte de chita estampada.
PEDRO (timidamente)
Olhe, dona Maria José. Isso eu truxe para a senhora. Não é pra pagar não. É mesmo um presentinho que eu truxe pra senhora…
MARIA JOSÉ (emocionadíssima)
Ah, Pedro! Não me faça sofrer mais do que eu já estou sofrendo! Vá! Corra pelo amor de Deus!
PEDRO (chapéu na mão, aproxima-se da mesa e deposita o corte de fazenda)
Eu vou, dona Maria José. Eu vou.
Ao chegar à porta, olha o céu com um ar de desafio, depois põe decidido o chapéu na cabeça e parte. Maria José tira o seio e dá ao menino, sempre ajoelhada como estava.
TREVAS
CENA 5
A mesma. É noite. O luar, filtrando-se através da porta e da empena vazada do lado do casebre, clareia o ambiente. Maria José encontra-se na posição em que foi deixada na cena anterior. Ouve-se fora um tropel de cavalo.
TOMÉ DE PAULA (de fora)
Sou eu, Maria José! Tomé de Paula!
Entra apressadamente, tendo à mão um saco, que deposita sobre a mesa. Depois, ao dar com Maria José ajoelhada, tem um ar de surpresa, que logo se transforma em decisão, e parte a acender o candeeiro a querosene, que começa a bruxulear e ilumina fracamente o ambiente.
TOMÉ DE PAULA (aproximando-se de Maria José)
Mas que é isso, menina?
MARIA JOSÉ (a voz fraca)
Não sei. O tempo passou. Mas ele ainda está vivo, porque de vez em quando eu sinto ele puxar, só que cada vez mais fraco. Mas já faz tempo que não puxa. Nem sei se ele ainda está vivo, Inacinho…
TOMÉ DE PAULA (ajudando-a a levantar-se)
Tem de estar! Tem de estar! Olhe ali: eu trouxe tudo. Leite, pão, carne, farinha. Tem tudo. Vamos! Dê comida ao menino.
Vai ao saco, arranca de dentro as coisas, que vai depositando sobre a mesa. Maria José, de tão transtornada, nem se dá conta que ficou com o seio direito de fora, um belo seio moreno que lhe salta da blusa.
TOMÉ DE PAULA (a voz semiembargada)
E... ponha isso pra dentro, vamos!
Maria José parece acordar e, confusa, recolhe o seio, dando as costas a Tomé de Paula. Depois ela põe o menino no berço e corre para os mantimentos.
MARIA JOSÉ
Leite! Ah, seu Tomé de Paula! Eu nem sei como lhe agradecer!
Corre ao fogo, põe o leite na panela para amornar, depois passa-o para uma xícara e aproxima-se do berço.
MARIA JOSÉ (dando a primeira colherinha ao menino no berço)
Tem de ser bem devagarinho, gota por gota. Me faça um favor, seu Tomé de Paula: me abra aqui a boca de Inacinho. Basta apertar um pouquinho dos lados. (ele obedece) É, assim, isso mesmo. Tem de ser gota por gota, senão ele não aguenta. Bem devagarinho, gota por gota, que é para não fazer mal ao bichinho. Ah, seu Tomé de Paula, Inacinho estava se acabando... Eu nem sei como agradecer o que o senhor fez. (começa a chorar, mas logo se contém) É sim, seu Tomé de Paula, eu nem sei como lhe agradecer. Chico vai ficar tão contente quando ele souber! Ah, minha Nossa Senhora do Bom Consolo, tomara que o meu bichinho vingue. Ele vai vingar, não vai, seu Tomé de Paula? (pausa) Olhe só... Ele não se mexeu um pouquinho? (com alegria na voz) Mexeu, seu Tomé de Paula! Veja só... Já está engolindo melhor! Veja só! Mas tem de ser bem devagarinho, porque faz dois dias que ele não come nada. Senão ele pode ter uma coisa... Tem de ser bem devagarinho…
Tomé de Paula sai de perto dela, para junto à mesa, coça a cabeça, vai até a porta e respira fundo olhando a noite. Depois, com decisão, volta até a mesa, tira do saco uma garrafa de aguardente e enche meio canecão. Ele olha a bebida atentamente, como que se mirando nela; depois, sem mais hesitação, ingere um grande gole, e logo outro.
TOMÉ DE PAULA (descansando o copo)
Brrr…
Bebe mais, e ainda mais, até esvaziar o canecão e serve-se novamente, desta vez devagar, observando Maria José que, inclinada sobre o berço, mostra a metade posterior das coxas.
TOMÉ DE PAULA (chegando-se a ela e dando-lhe o canecão)
Tome!
MARIA JOSÉ (um pouco sem saber)
Que é que é?
TOMÉ DE PAULA (dando-lhe o canecão e com autoridade na voz)
Não pergunte. Tome. É bom. Você precisa.
MARIA JOSÉ
Eu?
TOMÉ DE PAULA
Tome, menina! Não discuta! Isso vai lhe fazer bem.
Ouve-se um vagido no berço. Ambos olham. Logo depois Inacinho começa a chorar um chorinho fraco.
MARIA JOSÉ (a voz tomada)
Deus seja louvado! Inacinho está chorando, seu Tomé de Paula!
TOMÉ DE PAULA (contando prosa)
Então não sei! Pois eu não lhe disse? O menino precisava era de comer! Agora ele está bom, vai dormir que vai ser uma beleza!
MARIA JOSÉ
Vai sim, vai sim. Olhe só, seu Tomé de Paula. Ele abriu os olhinhos, o bichinho. Agora já tá fechando... tá fechando... tá fechando com sono o meu bichinho. O leite caiu bem…
TOMÉ DE PAULA
Se caiu! Isso aqui também vai lhe cair bem. Tome!
MARIA JOSÉ (provando)
Ih, mas é aguardente…
TOMÉ DE PAULA
Da melhor!
MARIA JOSÉ (tomando um pouco)
Mas é forte!
TOMÉ DE PAULA
O que arde, cura. Tome. Aperte o nariz e tome.
MARIA JOSÉ
Mas...
TOMÉ DE PAULA (imperativo)
Tome, já disse!
Maria José olha-o, sem entender, mas na sua grata submissão pega o canecão, aperta o nariz e toma, gole a gole, toda a bebida. Ao tirar a boca, sufoca, estertorando.
MARIA JOSÉ (tossindo)
Ai! Ai, seu Tomé de Paula!
Ela tosse repetidas vezes e pouco a pouco volta-lhe a respiração. Fica parada no meio da sala, o olhar atônito. Tomé de Paula observa-a, impassível.
MARIA JOSÉ (as mãos sobre o estômago)
Cristo! Que forte! Quase me deu uma coisa!
Mas na sua agitação nem percebe que, enquanto sacudia-se em sua tosse, o seio se lhe escapara de novo, quase completamente. Fica assim parada, com um ar de menina, vagamente curiosa com o que lhe está passando. O álcool não tarda muito a subir-lhe à cabeça de um só golpe.
MARIA JOSÉ (dando uma curta risada)
Xi, gentes!
Cambaleia fortemente.
MARIA JOSÉ (a voz já pastosa)
Seu Tomé de Paula!...
TOMÉ DE PAULA
Sim, Maria José?
MARIA JOSÉ (evanescente)
Seu Tomé de Paula! Me segure que eu vou cair…
PANO
Segundo ato
CENA 1
Um trecho da favela de Barros Filho, que vem se abrir numa pequena praça. Tendinha na esquerda baixa e, mais ao fundo, o barracão de Isaías e João Grande. Na direita baixa, o barraco dos irmãos Crisanto, Cristino e Cristóvão, onde estão morando seus primos Francisco e João Sebastião. Bica no meio da praça. Ao abrir o pano, Crisanto, Cristino, Cristóvão e Francisco de Paula bebem juntos, encostados ao balcão da tendinha de Pernambuco, um velho nordestino que vende também gêneros de mercearia. É fim da tarde, e a luz deve ir cambiando para o crepúsculo e depois, a noite.
CRISANTO (ao tendeiro)
Vire mais uma “batida de lotação”, velho!
O tendeiro serve-o novamente.
FRANCISCO
Chega, Crisanto! Olhe lá…
CRISANTO
Que é isso, primo? Pois então hoje não foi dia de pagamento? E você então, Chico? Eu se fosse você hoje tomava um porre de botar essa favela abaixo...
FRANCISCO
É mesmo…
CRISTÓVÃO
Já mandou a erva, Chico?
FRANCISCO
Se mandei! Vinte no contado. Daqui três dias tá na mão de Maria José, se Deus quiser.
CRISTINO
E o barraco? Tratou?
FRANCISCO
Tudo. Três meses adiantado. Amanhã vou aproveitar o domingo dando uma ordem nele. Seu Isaías tem um resto de tinta que vai me dar — eu quis comprar dele, mas não teve jeito — e eu acho que Maria José vai gostar, vai gostar…
CRISTINO
Quatro meses, hein, primo…
FRANCISCO
É verdade. Se não fossem vocês, e mais João Batista, e mais seu Isaías e João Grande, eu não sei não…
CRISANTO
É duro, sem mulher. Mas também, se você quiser tem mulher aí de... dar com o pé. Eu já lhe disse... É só me avisar…
FRANCISCO
É. Eu sei. Mas você sabe como é... Maria José e eu, a gente se gosta. Se não gostasse, não tinha nada, não; eu fazia como você. Mas gostando é diferente. Um dia você vai compreender.
CRISANTO
Eu não! Mulher para mim, pegou, tascou, largou. Senão é só aperreação, é só dor de cabeça.
PERNAMBUCO
Não ouve ele não, Chico. Esse menino só sabe fazer bobagem. Num toma juízo.
CRISANTO (rindo)
Cale a boca, velho! Onde é que já se viu velho desses dando palpite? Que é que você sabe de mulher, velho?
PERNAMBUCO (o viso sério, mas caçoísta)
De mulher eu sei que quando ela entra, não quer sair. Quando sai, já tá pensando em voltar.
CRISANTO
Ocê sabe nada, velho! Ocê é bananeira que já deu cacho. Olhe só você: daqui pra cima (faz os gestos a partir da cintura) é só poesia. Daqui pra baixo, é só prosa…
Caem todos na gargalhada.
PERNAMBUCO (rindo)
Cale a boca, cabra da peste, senão eu ponho suas tripas no meu ensopado. Lhe corto de peixeira assim (faz o gesto) e assim (termina o gesto em cruz) e ponho no sol pra secar, e penduro aqui na tendinha pra vender e garanto que ninguém vai querer não!
Os rapazes riem. Pernambuco vira cachaça em todos os copos e se serve também.
Essa é por conta da casa. (ligeiros protestos) E não me diga que não! Dona Maria José vem aí pra botar vocês todos na linha, e aí é que eu quero ver. (ri muito a sua risada de velho) Depois é que eu quero ver... Chico: à saúde da patroa!
FRANCISCO
Saúde, Pernambuco!
TODOS
Saúde!
Bebem com seriedade. Nesse momento, aproximam-se Isaías e João Grande. Os homens se saúdam afetuosamente.
CRISTÓVÃO
Contente, seu Isaías?
ISAÍAS GRANDE
Contente. Não vejo a menina tem mais de três anos. E era a minha sobrinha predileta…
CRISTÓVÃO
Pois então! E tem Inacinho também, para lhe urinar nas calças…
ISAÍAS GRANDE
É verdade... Neto de meu falecido irmão Carmelo... A bem dizer, meu neto... Que gosto!
CRISTINO
Tome uma, seu Isaías. Hoje é um grande dia!
ISAÍAS GRANDE
É. Hoje é um grande dia. Daqui um mês tá toda a família junta. Assim é que é direito! E tudo empregado! Um dia nós vamos nos reunir e alugar aquela casa grande da variante, e morar todos nela, e fazer uma oficina de marceneiro, e vamos ganhar dinheiro pra mostrar pra esses vadios por aí como a união faz a força, faz a força…
CRISTINO
Eu estou nessa, hein, seu Isaías!
ISAÍAS GRANDE
Você e toda a sua gente! Onde Isaías e João Grande estiverem, estão os De Paula.
(Pernambuco passa-lhe a bebida e a João Grande)
JOÃO GRANDE
De uma bicada só!
TODOS
De uma bicada só!
Viram os copos. Crisanto, já meio alto, começa a cantarolar e passarinhar uns passos de dança.
CRISANTO
Ah, meu Bom Conselho!
CRISTINO
Ah, saudade!
CRISTÓVÃO
A gente ainda há de voltar, não é, João Grande?
JOÃO GRANDE
Se Deus quiser e não mandar o contrário!
ISAÍAS GRANDE
Se Deus quiser! Se for verdade que vão fazer aquele açude por lá, aquela terra vai ficar que é uma beleza. Porque não tem verde mais verde que o daquela região quando Deus manda chuva. E caju? Cada bicho desse tamanho! (faz o gesto) Imagina a gente mandar daqueles cajus pra cá, e ter um barraco na feira pra vender daqueles cajus? Deus te livre! Já pensou, Pernambuco?
PERNAMBUCO (ligeiramente cético)
Caju mesmo é no Recife! Aquilo é que é caju! Dá um copo de suco! Doce da gente ficar com a boca grudada!
CRISANTO (animado)
Doce feito beijo de cabocla chamada Esmeralda!
JOÃO GRANDE
Aqui é região por demais! Alagoas e Sergipe. Não é à toa que a capital de Sergipe chama Aracaju, j’ouviu. Veja só: ARA-CAJU. Terra de arar caju, j’ouviu. Pra mim aí tem coisa. Não é por acaso não. É por causa de caju.
CRISTÓVÃO
E mangaba?
CRISTINO
Mangaba! E ananás?
FRANCISCO
E maracujá? Lembra, Cristóvão, quando ocê me levava na garupa de Costela e a gente ia lá pros lados de Palmeira dos Índios, na fazenda do capitão Onofre, e eu roubava maracujá que dava gosto!
CRISTÓVÃO
Ocê era o capeta! Quem lhe viu e quem lhe vê…
JOÃO GRANDE
É verdade! Lembro quando ocê, Chico, tava rondando a casa feito quem não quer, já de olho em Maria José. Menino arteiro! Carmelo ficava que só faltava cuspir fogo. Um dia me disse: “Tira esse frango-d’água daqui senão eu mando capar ele.” Eu disse: “Deixe o menino, mano, que o menino é bom…”
Francisco, contente, palmeia as costas de João.
FRANCISCO
João Grande! Se ocê não existisse, ia ter um buraco no mundo.
JOÃO GRANDE
E lembra o dia em que seu Tomé de Paula saiu correndo atrás dele de relho em punho porque Chico tinha montado naquele baio dele em pelo, e o cavalo entrou cocheira adentro que mais parecia um raio, e Chico levou com a trave bem no meio do pensamento e ficou com um galo desse tamanho!
FRANCISCO (feliz)
É verdade! Eu devia ter uns dez anos…
CRISANTO
Tio Tomé era fogo na canjica. Ô homem brabo!
CRISTÓVÃO
Peguei cada cascudo dele!
CRISTINO
Um dia me pôs dependurado no cabide pelo cós das calças!
ISAÍAS GRANDE (o semblante fechado)
É. Um homem duro.
FRANCISCO
Mas bom. Se não fosse ele eu não tava aqui. Me emprestou vinte contos pra eu fazer a viagem no pau de arara de João Cansio. E ainda ficou de ver qualquer necessidade de Maria José e Inacinho. Foi muito bom comigo, tio Tomé. Eu quero pagar ele logo que ganhar mais um dinheirinho. E quero levar um presente para ele também quando a gente voltar. Um presente bom.
CRISANTO (que continua a dar seus passinhos de dança)
Eh, música boa! Lembra, João Grande, aquela toada que Bela Vista cantava? Ô cego da peste! Melhor cantador que eu já vi na minha vida! Só perdeu uma vez pra Piauí. Foi depois de um reisado em Feira de Santana. Piauí tirou verso, tirou verso, e Bela Vista foi fraquejando, fraquejando. Piauí tava de sorte. Aí Bela Vista engasgou, não saía mais nada. Aí o cego foi vermelhando, vermelhando e aí — ocê lembra aquele menino que era guia dele, e todo mundo dizia que Bela Vista se botava nele? —, pois não lhe conto nada: Bela Vista levantou, largou a viola, puxou a peixeira e disse assim pro menino: “Me põe no rumo desse cabra que eu quero abrir uma janela nele!” Piauí ria de se urinar. Quase fechou o tempo!
JOÃO GRANDE (rindo às lágrimas)
É mesmo. Lembro sim. Ah, Bela Vista... Não era uma que parecia assim uma risadaria geral, como se nada nesse mundo tivesse importância? (canta, procurando lembrar)
Quara-qua-quá
Qua-quara-qua-quá
Qua-quara-qua-quá
Qua-quara-qua-quá
Crisanto repete o estribilho. Pernambuco tira um violão da tendinha e passa-o a Cristóvão que entra a acompanhar. Começa a juntar gente.
CRISANTO
Tinha uma casa
Muito engraçada
Não tinha nada
Nem telhado, nem reboco
Mas era feita
Com muito esmero
Ali no número zero
Da rua do Ocê-tá-Louco!
TODOS
Quara-qua-quá etc.
CRISTÓVÃO
Cumpadre Chico
Tava doente
E deu um tiro
No lugar do coração
Saiu a bala
Pelo outro lado
Quem caiu morto sem fala
Foi o cumpadre João
TODOS
Quara-qua-quá etc.
CRISTINO
Meu primo Juca
Tinha um defeito
Ele era feito
Todo de uma peça só
Quem não gostava
Era a mãe dele
Que dava comida a ele
Já sentado no orinó.
TODOS
Quara-qua-quá etc.
FRANCISCO
Diz que o marido
Da Gabriela
Fez charque dela
Pro seu sedutor comer
Ao fim de um cabo
Todo desfeito
Grita o tal: “Tou satisfeito!”
E se põe a devolver.
TODOS
Quara-qua-quá etc.
Repetem o estribilho, ajudados pelo pequeno aglomerado de gente que se forma. Quase no fim da cantiga, chega João Sebastião, irmão de Francisco.
JOÃO SEBASTIÃO (afobado, acenando com um envelope)
Chico! Chico! Chegou carta de Maria José!
FRANCISCO (correndo para ele e tomando-lhe o envelope das mãos)
Não brinca! Carta mesmo?
Examina o envelope. Os outros se aglomeram à sua volta. Isaías Grande mira o envelope atentamente.
ISAÍAS GRANDE
É a caligrafia dela.
FRANCISCO (dando um pulo como um louco de alegria)
Deus te livre! (depois para os outros) Ocês desculpem. Vou ler em casa.
Sai correndo e interna-se no barracão dos primos, enquanto o pessoal retoma a canção. Uma mulher vem dançar no meio da roda, todos batem palmas e passarinham passos. Enquanto isso, na fachada lateral vazada do barracão dos De Paula, vê-se Francisco acender o lampião, abrir a carta, sentar-se a um banco junto da mesa e começar a ler. À medida que lê, sua expressão vai se transformando. No final ele recomeça, em meio à algazarra da canção que, a certa altura, fica apenas no estribilho: “Quara-qua-quá”, enquanto todos dançam, improvisando à maneira nordestina e carioca.
FRANCISCO (batendo os dois punhos na mesa, depois enfiando o rosto entre as mãos)
Não! Não pode ser!
Faz-se um silêncio geral. Depois, João Sebastião, após olhar surpreso para os outros, dirige-se para o barracão.
CENA 2
Francisco deixa-se estar, o rosto entre as mãos. João Sebastião entra, logo seguido por Crisanto, Cristino, Cristóvão e João e Isaías Grande. Francisco, sem chorar, repete de vez em quando: “Não! Não!”, com uma tal expressão de dor que os outros deixam-se por um momento interditos. Depois João Sebastião pega a carta sobre a mesa e lê com dificuldade.
JOÃO SEBASTIÃO (lendo)
“Chico, recebi os vinte contos da viagem, que o Zé-dos-Correios veio me entregar, o que muito lhe agradeço. Mas chegou tarde, e eu lhe peço perdão porque o destino foi mau e a desgraça veio bater na nossa porta. Foi Deus quem não quis. Mas logo que você foi embora, o seu Tomé de Paula, com parte de me ajudar, me deu aguardente e abusou de mim. Que é que eu podia fazer aqui nesse sertão sozinha e com um homem como seu Tomé de Paula? Já não sou mais séria e só não dei cabo de mim porque Inacinho estava tão doente e eu precisei da ajuda do seu Tomé de Paula. Agora Inacinho morreu, eu enterrei ele junto ao ingazeiro e tou igual um corpo sem vida, sem saber o que faço de mim. Seu Tomé de Paula me deixou parida e eu só quero saber se você me quer assim mesmo porque eu não tive culpa do assucedido, foi tudo malícia de seu Tomé de Paula no dia que Inacinho quase morreu de fome sem comer tinha dois dias e eu precisei da ajuda de seu Tomé de Paula sem saber que ele já estava de maldade e queria se botar em mim. Foi mau você confiar nele, porque seu Tomé de Paula não respeita nem Nossa Senhora que está no céu. Agora, depois da morte de Inacinho ele sumiu daqui e eu queria saber se lhe adevolvo o dinheiro ou se você quer que eu vá, mas como eu lhe disse, eu não sou mais séria e tou parida, mas sem culpa do assucedido. Me escreva porque se você não me quiser mais eu compreendo e dou um sumiço. Pense só que eu não tive nenhuma culpa. Maria José.”
FRANCISCO (levantando-se subitamente e sacando a peixeira)
Eu mato ela! Eu mato ela!
Crava a faca na mesa com tal força que não a pode arrancar mais. Os outros se precipitam e o dominam, embora ele lute como um desesperado.
Eu quero matar ela! Eu quero! Me larga! Eu quero o sangue dela!
Depois, no meio da luta, sobrevém-lhe o pranto e em breve ele se deixa levar como uma criança para dentro, por João Sebastião. Faz-se um silêncio total. Os homens mal se olham, enquanto à porta se aglomera uma pequena multidão à escuta.
JOÃO GRANDE
Que desgraça!
CRISTÓVÃO
Que desgraçada! Fazer isso com meu primo! Que desgraçada!
JOÃO GRANDE
Mas ela não foi culpada! Foi tudo manha de seu Tomé de Paula.
CRISTÓVÃO
Ela não devia ter deixado!
JOÃO GRANDE
Mas como? Então você não conhece seu Tomé de Paula? Ele não é seu tio?
CRISTINO
Ele agiu mal. Mas ela é mais culpada. Mulher é que é culpada da desgraça de homem.
JOÃO GRANDE
Como é que uma mulher sozinha perdida naquele sertão vai ter força pra lutar com um homem como seu Tomé de Paula? Me diga, me diga e não me ponha louco! Como é? Como é?
ISAÍAS GRANDE
Calma, João! O mal tá feito. Calma!
CRISANTO
Calma... Calma... E Chico, com o nome manchado! Calma... E ela ainda tem a coragem de perguntar se Chico ainda quer ela! Chico devia ir lá e rasgar ela de alto a baixo. Ir com aquela peixeira ali e encravar no peito dela até esvaziar todo aquele sangue maldito!
JOÃO GRANDE
Mas não foi culpa dela, você não viu? Você não viu o que ela disse na carta? Será que ocê não tem coração?
CRISANTO
Não tem que ter coração com uma mulher que engana um homem. Se ela não queria, não devia ter deixado. Se ela deixou foi porque ela quis. Botou chifre na nossa família, botou. Eu matava ela!
ISAÍAS GRANDE (estranhamente calmo)
Calma, Crisanto! Não fale da boca pra fora, homem de Deus! (dirigindo-se ao pessoal aglomerado junto à porta) E vocês aí, vá tudo caminhando, que isso é assunto particular. Vá! Não quero falar duas vezes não! Vá tudo caminhando. (dá dois passos, ameaçadoramente, em direção à porta e o grupo se dispersa)
CRISTINO (baixando a cabeça)
Que vergonha!
CRISANTO
É pior que vergonha! É como se fosse a mulher de um irmão! Era como se fosse a irmã da gente! Maldita! Maldita a hora em que ela nasceu! Trazer a vergonha pra nossa família!
CRISTÓVÃO
E Chico ainda bom com ela! Mandando dinheiro! Alugando barraco!
CRISANTO
Chico tem que ir lá. Tem que matar ela pra limpar o nosso nome!
JOÃO GRANDE
E seu Tomé de Paula? Fica na impunidade? Ele é que devia morrer! Chico devia ir lá e abrir um porão nele! Ele sim…
CRISANTO (ameaçador)
Não diga isso de novo! Não diga isso de novo, porque tio Tomé fez o que faz um homem quando encontra uma mulher sem-vergonha pela frente. Ela é que se vendeu pela ajuda que tio Tomé deu pra ela, ela é que se vendeu…
ISAÍAS GRANDE
Calma, menino! Não diga coisa que você não sabe. Deixe Francisco resolver o que ele tem de resolver. A mulher é dele! Ele é que sabe!
CRISANTO
É. O senhor tá no seu papel, seu Isaías! Ela é sua sobrinha. Mas Chico é nosso primo, igual um irmão, e irmão é mais que sobrinho! Me admira até o senhor! Bonito papel!
JOÃO GRANDE
Me admira o quê? Que é que ocê tá querendo dizer com isso? Olhe lá, Crisanto de Paula! Veja lá o que ocê diz. Com Isaías ninguém se mete não! Limpe sua boca antes de falar no nome de Isaías, cabra desaforado! Senão eu lhe faço engolir tudo isso que você tá dizendo!
Atiram-se um sobre o outro, já sacando as peixeiras, mas Francisco e João Sebastião, que vêm chegando, seguram João Grande, enquanto Cristino e Cristóvão detêm Crisanto. Isaías Grande deixa-se estar impassível. Os dois homens relutam em se deixar dominar, mas pouco a pouco Cristino e Cristóvão levam Crisanto para fora. Mas o rapaz sai gritando ameaças.
CRISANTO (de fora)
Mas isso não fica assim não! Isso não fica assim não!
João Sebastião faz um movimento para sair atrás dele, mas Isaías o detém. Fora, ouve-se a voz de Crisanto, ainda gritando ameaças ao longe. Numa pequena elevação abre-se uma janela e uma negrinha jovem pergunta para uma negra mais idosa, do outro lado, também à janela.
NEGRA 1
Que é que é todo esse babado, hein, Carmela?
NEGRA 2
Sei não! Parece coisa de mulher! Crisanto de Paula tá dizendo que não fica assim não!
NEGRA 1
Xi — mulher! Mulher é espeto! Dá sempre em sangue! Bem faço eu que não dou sopa pra ninguém!
Fecha a janela. Isaías Grande espia na porta, a ver se os irmãos De Paula desapareceram. Depois faz um sinal a João Grande e os dois saem, deixando sozinhos Francisco e João Sebastião. Os dois irmãos se entreolham.
JOÃO SEBASTIÃO
Esse cabra! Pensando que ronca grosso!
FRANCISCO
Ele tem razão! Eu devia ir lá e acabar com Maria José. Ela me pôs chifre!
Abate-se sobre a mesa, a cabeça entre as mãos.
E ela não é disso! Eu sei que ela não é disso! Maria José é direita! Mas ela não podia fazer isso comigo! Não podia! Agora como é que eu vou encostar mais nela?
JOÃO SEBASTIÃO (a voz fria)
Você deve ir lá e acabar com a raça dela. Senão você nunca mais vai ter sossego, nem a gente! Não tem importância se ela tem culpa ou não. Você deve ir lá e acabar com a raça dela e de nosso tio Tomé de Paula! Isso é o que você tem de fazer se você for homem!
FRANCISCO
Ela não é disso! Ela é direita, Bastião! Eu sei! Maria José foi uma companheira como não tem duas! Sempre me ajudando em tudo, sempre me dando coragem! Eu não entendo! Isso é aquele satanás de homem que tem o nome de Tomé de Paula. Esse sim, eu preciso matar. E depois me matar. Porque eu sim, eu é que sou culpado. Deixei Maria José lá naquela lonjura, no meio daquela seca do inferno, mal tendo o que comer. Eu, sim, é que devia morrer. (pausa) E meu filho, coitadinho! Inacinho... Foi melhor assim, pra ele nunca saber a vergonha do seu pai. Ah, Bastião, que desgraça caiu em cima de mim! Que será que eu fiz a Deus?
Limpa os olhos com as mãos e depois se levanta.
FRANCISCO (a voz mais firme)
Olhe, Bastião: eu preciso saber…
JOÃO SEBASTIÃO
Saber o quê? Que é que você quer saber mais do que já sabe?
FRANCISCO
Saber... Saber por que Maria José fez isso. Depois eu mato ela. Mas antes eu preciso saber. Preciso olhar ela nos olhos e ouvir o que ela está me dizendo. Preciso ouvir as palavras dela, você entende. As palavras.
JOÃO SEBASTIÃO
Que é que você quer fazer então?
FRANCISCO
Mandar buscar ela. Você não viu o que ela disse? Mandar buscar ela e saber. Depois eu mato ela, eu lhe juro. Mas antes eu preciso ver Maria José e saber de tudo, senão eu fico louco.
JOÃO SEBASTIÃO (a voz cheia de desprezo)
Dizer que isso é meu irmão…
Francisco não o ouve. Monologa consigo mesmo.
FRANCISCO (como para si mesmo)
Eu vou escrever pra que ela venha. Depois eu mato ela, depois de eu saber…
JOÃO SEBASTIÃO (com nojo)
Cabrão de merda…
Desta vez Francisco o ouve, mas não reage. Mergulha o rosto entre os braços, sobre a mesa. João Sebastião sai.
TREVAS
CENA 3
Corte lateral do barraco de João e Isaías Grande. João Grande, o torso nu, toma um banho sumário numa bacia de tripé. O candeeiro está aceso. É noite.
JOÃO GRANDE
E depois ainda tem coragem de dizer…
ISAÍAS GRANDE (interrompendo)
Não se meta nisso, já lhe disse. Briga de homem cheira a defunto. Não se meta nisso. O que eu acho que a gente devia fazer era ir embora daqui pra outro lugar. Eu não gosto do que está acontecendo!
JOÃO GRANDE
E dar parte de fraco?
ISAÍAS GRANDE
Não é dar parte de fraco. É não se meter. A menina é mulher do homem. Deixa ele resolver. Se ele quer mandar buscar ela, é por conta dele. Eu conheço Maria José. Maria José é incapaz de fazer uma coisa dessas. Só mesmo forçada. Não é por ser minha sobrinha, porque se ela tivesse facilitado mesmo, eu era o primeiro a atiçar o Chico. Mas Francisco tem mais cabeça que ocês todos juntos.
JOÃO GRANDE
É. Boa cabeça pra carregar um chifre... Ele nunca mais sai dessa. Nesse caso a obrigação é matar, é matar…
ISAÍAS GRANDE
Matar é um atraso de vida. Matar não é solução. Matar é acabar com tudo. Deixe Francisco saber primeiro. Eles eram felizes. Todo mundo diz que era o casal mais unido da região. E então, isso não vale?
JOÃO GRANDE
Mas então o Chico não devia ter saído de perto de Maria José. Você se esquece que Maria José é minha sobrinha também, filha de nossa irmã Candinha? Mas Chico é um menino que eu tinha uma estima, como se fosse meu filho. Agora, não tenho mais não. Eu não posso ter estima por um cabrão, um cornudo que a mulher engana.
ISAÍAS GRANDE (irritado)
E você não viu ele contar por que ele veio? Queria ver se fosse com você! Você ver sua mulher e seu filho passando fome, sem ter de onde tirar, com o campo seco, o gado morto, sem água pra beber… Então um homem não tem que procurar trabalho pra poder sustentar a mulher dele e o filho dele? Tem! Francisco fez o que tinha que fazer. O mal foi que ele confiou naquele cabra safado que é Tomé de Paula. Mas também, como é que ele podia imaginar que o próprio tio dele, o próprio sangue dele, fosse abusar justamente daquela que ele tinha deixado em sua guarda?
JOÃO GRANDE
Ah, isso é…
ISAÍAS GRANDE
Pois é. Ninguém pode julgar os outros assim. Deixe Maria José chegar, deixe eles dois conversar, deixe ver de quem é a culpa mesmo. Não é só o corpo de uma mulher que é do marido dela. A alma também é — e mais ainda. E se a alma estiver pura, o corpo não tem pecado. Jesus Cristo não perdoou a mulher adúltera? E quem é a gente para se achar com mais razão que Jesus Cristo? Eu sei que é duro para Francisco, mas mais duro ainda deve ter sido pra Maria José. Porque uma mulher que gosta mesmo de um homem prefere tacar fogo no seu corpo a entregar ele pra outro. E tinha o menino, doente. É preciso pensar nisso tudo.
JOÃO GRANDE
É porque não foi com você, senão você não tava falando assim…
ISAÍAS GRANDE
O que acontece com quem eu estimo é como se tivesse acontecendo comigo. Eu prefiro ver a união a ver a desunião e a desgraça. Não foi à toa que eu larguei daquele sertão pra não ter de matar o coronel Cantídio. Você sabe disso. E sofri a humilhação dele. Mas você sabe como ele foi bom para Candinha e nosso cunhado Zé Luís. A lei do sertão era matar. Mas eu tenho outra lei dentro do meu coração. Chega de sangue. Eu quero é paz para trabalhar. É preciso deixar toda essa onda passar e depois ir falar direito com os De Paula, que é gente boa. Não se deve perder a amizade de quem merece. Isso tudo vai passar, se Deus quiser. E a gente ainda vai cantar e dançar junto, feito outro dia. Assim é que é viver direito. O resto não presta.
JOÃO GRANDE
É. Talvez você tenha razão. Mas é que é muito duro para um homem viver com uma mulher que um outro já usou. Pense só. Vamos dizer que você esteja com a razão, e seu Tomé de Paula tenha mesmo forçado Maria José. Mas e quando você for fazer um pissirico com ela e ficar pensando naquele outro homem que já se botou na sua mulher? Não é de um cabra ficar doido da cabeça? É preferível matar. Eu aposto que Maria José, se ela está no certo mesmo, prefere que o Chico acabe com ela a dar pra ele um corpo em que um outro homem — e ainda mais o próprio tio dele! — já se amontou. Tá louco! Não era eu não…
Ele se arruma, veste uma camisa limpa, assoviando. Entra Francisco.
FRANCISCO
Noite…
ISAÍAS GRANDE
Noite, Francisco. Tome assento.
FRANCISCO
Não... (olha João Grande, interdito) É... que eu queria dar uma palavra com o senhor, seu Isaías.
João Grande, sempre assoviando, pega seu maço de cigarros, seus fósforos, põe tudo no bolso e vai saindo.
JOÃO GRANDE (da porta)
Precisa mandar suspender essa cumeeira, mano…
Sai e depois de algum tempo ouve-se a sua risada, longe. Isaías Grande e Francisco guardam silêncio.
ISAÍAS GRANDE (docemente)
Que é que há?
FRANCISCO
Eu precisava falar com o senhor, seu Isaías. Quero lhe mostrar uma carta que eu escrevi para Maria José. Só posso ler pro senhor mesmo. Tá todo mundo contra mim, até meu próprio irmão...
ISAÍAS GRANDE (servindo dois copos de cachaça)
Tome, ande…
FRANCISCO (tomando o copo)
Ninguém pode saber, sabe, seu Isaías. Talvez só o senhor mesmo. Mas ninguém pode saber como eu sei. Eu sei que eu sou cabrão, mas ninguém pode me fazer acreditar que Maria José me pôs chifre porque ela quis.
ISAÍAS GRANDE
Eu também não acredito.
FRANCISCO (mais animado, bebendo)
O senhor não imagina que santa que Maria José era, seu Isaías. Por isso é que eu não posso entender. O senhor sabe o que é o senhor olhar nos olhos de uma mulher e ver até o fundo dela num olhar? Pois assim era Maria José comigo: o melhor amigo que eu tinha. Sempre me encorajando, sempre achando tudo bom. Às vezes eu desanimava, e já vinha ela com um sorriso, com uma animação, ou então cantava uma cantiga para me distrair, tão boa que mais parecia um anjo do céu. Quando ela tava parida e Inacinho nasceu, só o senhor vendo a coragem dela, mais coragem que muito homem! “É nosso filho, nosso bichinho!”, me dizia ela — e trincava os beiços de dor, mas não dava um gemido. Trabalhava de sol a sol, e até a seca matar tudo; quando não era Inacinho, era a enxada, era correr do milho pra horta pra ver se salvava qualquer coisa, a mexer na terra, a chorar igual ver se regava a terra com as lágrimas que derramava. A comida, me dava quase tudo, sempre a dizer que não tava com fome, e se eu brigava com ela, ela vinha e me beijava tão manso que eu nem sei lhe contar. Olhe, seu Isaías, eu preferia cortar minha língua do que dizer isso pra outro homem que não fosse o senhor: mas um homem sente mesmo que uma mulher é dele é na cama. Maria José era mais grudada comigo que carne com osso. Por isso é que eu não posso: eu tenho que ver ela, tenho que saber. Eu não quero ir lá agora pra não passar pela vergonha daquela gente ver a minha cara e cochichar mal de mim. Mas eu quero ver ela. Olhe aqui o que eu escrevi. (bebe um novo gole)
ISAÍAS GRANDE (bebendo também)
Vá, leia.
FRANCISCO (a voz cheia de sinceridade)
Eu não sou covarde não, seu Isaías. Se Maria José tiver me enganado mesmo, eu mato ela. Depois eu saio daqui e vou procurar tio Tomé de Paula nem que seja na boca dos infernos. Mas eu preciso saber antes. Olhe aqui o que digo para ela: “Maria José, eu estou lhe escrevendo para lhe dizer que você venha para o Rio de Janeiro no pau de arara de João Cansio, que deve voltar no mês próximo. Eu li sua carta e quero que você venha, porque se você for culpada você vai morrer pela minha mão, porque eu não aguento mais tanta desgraça. (a canção do “Quara-qua-quá” começa ao longe) Eu preciso saber pela sua boca de toda a verdade. Eu estou lhe esperando. Felizmente que Inacinho não está mais vivo para nunca poder se envergonhar do nome que tem. Arrume suas coisas e venha logo que é para eu resolver isso como homem. Seu ex-marido até saber toda a verdade — Francisco de Paula.”
ISAÍAS GRANDE
Muito bem dito. Isso mesmo que eu ia escrever, se fosse você. Muito bem dito!
FRANCISCO
O senhor acha mesmo, seu Isaías?
ISAÍAS GRANDE
Acho mesmo. E quem não achar não é homem direito. É homem safado, que só porque é homem pensa que o mundo é dele. Você faz muito bem, Francisco. Eu estou do seu lado.
FRANCISCO
O senhor compreende, não é? Mesmo que eu matasse Maria José na hora da raiva, eu não podia matar ela dentro de mim depois de tudo o que eu vi ela penar por minha causa. Não. Tem de ter uma explicação e essa explicação é só ela quem pode me dar. Eu vou ficar quieto, trancado por dentro, feito um homem morto, até ela chegar. Pode quem quiser falar, podem me chamar de cabrão feito meu irmão já me chamou. Podem até me cuspir na cara. Mas antes eu quero saber. Depois, seja o que Deus quiser e achar melhor!
Faz pausa para beber um novo gole.
Eu já mudei pro meu barraco. Bastião ficou com nossos primos. Diz que não quer olhar na minha cara enquanto eu não tiver vingado o nosso nome. (pausa) Paciência…
A mesma voz feminina que cantava o “Quara-qua-quá” começa a entoar “Roxa morena”. Francisco bebe mais.
Paciência. Eu vou ter paciência. Nem que crie uma pedra no meu peito eu vou ter paciência. Nem que esse olhos, e esses pés, e essas mãos não queiram ter paciência, eu vou ter paciência e esperar.
ISAÍAS GRANDE
Você faz bem. Você está certo. Todo mundo pensa que ser homem é puxar faca e sair cortando os outros a torto e a direito. É como quando uma pessoa bate na porta e a gente pergunta: “Quem é?” A gente devia perguntar mas é: “Quem foi?” Porque nem sempre o que uma pessoa faz é o que uma pessoa é. A vida é cheia de caminhos. Tem o caminho do mal e tem o caminho do bem. Às vezes uma pessoa pode estar no caminho do bem e ser mais safada do que se estivesse no próprio caminho do mal. Eu já vi disso. Eu já vi muita coisa. Eu já estive para matar um homem e fugi. Fugi com a minha humilhação de não ter matado ele porque ele me ofendeu. Mas se eu tivesse matado ele, eu nunca mais tinha me perdoado, porque ele foi bom para minha irmã Candinha, sua falecida sogra, e escondeu Zé Luís quando todos os coiteiros do coronel Pedroso tavam procurando ele depois da eleição. Um homem tem de ser também perdão. Não é só o sangue que vinga; o perdão também.
FRANCISCO (dando dois passos em direção a ele)
Seu Isaías…
ISAÍAS GRANDE
Diga, Francisco…
FRANCISCO
Posso beijar sua mão?
Corre para ele e antes que Isaías Grande possa contê-lo, beija-lhe a mão, ardentemente. Depois, numa corrida, sai porta afora. Isaías Grande deixa-se olhando a própria mão, com uma expressão singular. Depois, seu rosto se abre num amplo sorriso. Ele serve-se de um copo de cachaça, suspende-o até o olhar, mira-o atentamente e, de um só gole, entorna a bebida.
PANO RÁPIDO
Terceiro ato
CENA 1
O interior do novo barraco de Francisco de Paula, visto através da parede lateral vazada. Isaías Grande acha-se sentado junto à mesa, pensativo. Francisco de Paula, a mão contra o umbral, junto à porta, olha para fora. É fim de tarde, e a lua deve ir cambiando mansamente para um rubro crepúsculo de verão.
ISAÍAS GRANDE
É. É uma tragédia. A gente não sabe bem o que dizer. Nem o que fazer.
FRANCISCO DE PAULA (voltando-se)
Foi mais forte que eu, seu Isaías. Quando eu dei por mim, eu só pensava em matar ela, e o menino, e tudo…
ISAÍAS GRANDE
Ela tá desesperada, Maria José, tá desesperada. Fica ajoelhada no chão igual uma trouxa, a cabeça caída, sem falar nada. Ontem quando eu puxei por ela, só me disse que precisa voltar para o sertão. Fala no sertão. Igual quisesse mais bem ao sertão depois de toda sua desgraça. Igual estivesse seca. Feito a seca.
FRANCISCO DE PAULA
Não sei. Quando ela chegou, o senhor lembra, eu fiquei como louco. Só pensava em matar ela, apesar de tudo o que ela me disse, e que eu sei que é a verdade. Aquela barriga dela me deixava louco, tinha que fugir de casa pra não acabar com a raça dela…
Tem uma pausa, como para tentar compreender todo o horror em que vive.
ISAÍAS GRANDE
É. É danado!
FRANCISCO DE PAULA
Mas não tinha ânimo. Não tinha. Saía, ficava vagando de noite aí por essa favela, evitando encontrar Bastião e os primos, pensando nela. Ficava pensando em Maria José lá no sertão, tão boa, tão direita. E procurava entender, o senhor compreende? Eu sei como é difícil entender essas coisas, mas cada vez que eu me afastava dela, parecia que tinha uma coisa me puxando para ela. E aí, seu Isaías, eu lhe digo: precisava muito entendimento pra eu não varar meu coração com essa peixeira. E depois, não sei, eu fraquejava. Passava por perto de casa, ficava espiando a sombra dela pra lá e pra cá com aquela barriga grande dela. Tão sozinha ela me parecia, tão sozinha, que eu aí esquecia a minha vergonha, esquecia tudo. Perdia a cabeça, entrava correndo e abraçava ela e pedia perdão, e fazia toda sorte de papel feio, fazia, fazia. Ela chorava tanto, coitada, porque ela sabia tudo o que eu tava sofrendo. E aí eu ficava, jurava a ela que ia esquecer tudo e que ia tentar viver com ela igual vivia antes de vir pra essa maldição. Ela não dizia nada, o rosto sério me olhando. Parecia uma imagem de Nossa Senhora — que me perdoe eu dizer isso, mas parecia. Feito uma coisa triste, de pau.
Vai à mesa e vira um copo de cachaça.
Mas quando o menino nasceu, aí foi demais. Foi como se ele tivesse nascendo de dentro de mim e rindo de mim. Aí ficou positivo! Antes, era positivo mas também não era! Mas quando eu ouvi aquela criança chorando, aquele choro que mais parecia a voz do pecado de Maria José, que mais parecia a voz da minha vergonha, aí, seu Isaías, foi como se eu tivesse um caititu brabo dentro de mim, me mordendo, me unhando por dentro. Aí eu só queria ver o sangue dela e o sangue do menino. Aí eu bati nela, bati, bati, sem pensar no resguardo dela, nem nada. Ela pegou o menino assim, ficou me olhando e me disse: “Mate! Mate! Acabe logo com essa agonia!” Aí a comadre foi levando ela e eu fiquei com essas mãos paralisadas, olhando elas sem poder me mexer. Fiquei assim, igual sem pensamento.
ISAÍAS GRANDE
Você não vai poder nunca mais voltar para Maria José, Francisco. Isso é o que é mais triste. Porque ela não tem culpa, mas você também não tem.
FRANCISCO DE PAULA
Que é que eu vou fazer da minha vida, seu Isaías?
ISAÍAS GRANDE
Não sei. Não sei o que lhe diga. Talvez fosse melhor você arrumar suas coisas e ir embora. Trabalho por aí não falta. (pausa) É. Acho que é o melhor. Ir embora. Porque o seu caso não tem remédio não. Você não vai ter coragem de viver com Maria José por causa do menino. E se ela deixar o menino por sua causa, ela também não vai poder viver com você não, porque ela vai ficar pensando. Filho é danado. É feito se fosse a carne da gente, só que com mais sofrimento.
FRANCISCO DE PAULA (a voz perplexa)
E deixar ela…
ISAÍAS GRANDE
É. Deixar ela. No começo vai ser duro. Mas depois, a vida se encarrega de lhe fazer esquecer. Ainda mais que ela já não é a mesma mulher pura que você teve. Ainda mais que tem o menino. Eu, se fosse você, eu ia embora, ia embora.
FRANCISCO DE PAULA
Mas... e Maria José?
ISAÍAS GRANDE
Por enquanto não há problema. Ela está em casa da comadre Jovira, e eu sou parente, eu não vou deixar ela no abandono não. Sempre quis muito bem Maria José. Menina direita, honrada, trabalhadeira. Mas o destino não quer saber dessas coisas não. É feito quando se pisa num formigueiro. Quem tiver debaixo do pé do destino quando ele passa, se não morre, fica aleijado. A gente é pouca coisa. Mas deixe... Enquanto eu for vivo, Maria José tá garantida. Depois, quem sabe se com o correr do tempo essa ferida que você tem não sara, e você volta de coração limpo, feito esses homens que voltam, que voltam perdoando, esquecendo, tendo lástima…
FRANCISCO DE PAULA (indeciso)
Eu vou fazer isso então. Se o senhor diz... O senhor sabe melhor que eu…
Senta-se e põe a cabeça entre as mãos.
ISAÍAS GRANDE (pondo-lhe a mão no ombro)
Quando um homem já não sabe mais, Francisco, a única coisa que ele tem de fazer é ir embora. Vá. Esqueça, se você puder. A mulher não é mais só sua. Agora ela é sua e... de Deus. (pausa) Eu vou até comadre Jovira para espiar como vai tudo.
Sai deixando Francisco de Paula na mesma posição.
TREVAS
CENA 2
A pracinha. Jovira está enchendo uma lata de água. Isaías Grande vem chegando, com seu irmão João Grande.
ISAÍAS GRANDE
Tarde, comadre.
JOVIRA
Tarde, seu Isaías. Tarde, João.
ISAÍAS GRANDE
Como vai meu afilhado?
JOVIRA
Cada dia mais arteiro, seu Isaías. Agora começou o colégio.
ISAÍAS GRANDE
Até que foi bom me lembrar. Prometi uma merendeira pra ele. Quero dar, gosto do menino. Esse menino vai longe. Muito cheio de disfarce.
JOVIRA
Xi! O senhor nem imagina como a professora tá sastisfeita com ele... O que tem de travesso, tem de aplicado. Só tira nota boa. (a lata se enche, ela a coloca na cabeça, depois olha curiosamente os dois homens; João Grande, meio confuso, aproveita para beber água na concha da mão) Quer saber de Maria José, quer? Pois eu lhe digo. Ninguém sabe o mal que fizeram a essa menina. Ninguém. Ontem ela me olhou e disse assim: “Dona Jovira, eu quero lhe agradecer muito o que a senhora fez por mim, mas eu vou-me embora com o menino.” Depois ela pegou o menino, me olhou mais uma vez, e saiu. Eu fiquei tão assim que nem disse nada. Por causa da dor que ela tinha no olhar. Nunca vi dor tamanha. Depois ela saiu e, eu lhe juro, eu não tive ânimo de dizer nada para ela. Fiquei vendo só ela ir por aquele caminho entre aqueles barracos, de vez em quando dobrava a cabeça para olhar o menino, e aí apressava o passo assim. Foi ficando pequenina, pequenina, feito uma coisinha de Deus, até que sumiu.
ISAÍAS GRANDE (tristemente surpreendido)
Não me diga, comadre…
JOVIRA
Pois é. Foi o que fizeram com ela.
JOÃO GRANDE
Para onde ela foi, dona Jovira?
JOVIRA
Eu é que sei? Como é que ninguém pode saber para onde é que vai uma mulher que o marido enxota ela de casa? Ocê sabe, João? O senhor sabe, seu Isaías? Eu acho que nem Deus sabe…
ISAÍAS GRANDE (olhando na distância)
É. Eu não esperava outra coisa dela. Eu tava querendo me enganar, mas no fundo eu sabia. Um dia, ela era menina, na pior seca, a gente de mudança para Aracaju porque já não tinha mais nada que fazer, e ela entrou comendo um pedaço de broa. E aí chegou Morena, uma cachorra que tinha lá e que tava parida e ficou espiando ela comer, com aquele olhar triste de fome e amizade que cachorro tem quando vê o dono comendo. Eu estava observando Maria José para ver o que ela ia fazer, mas a verdade é que eu já sabia. Primeiro ela cortou a broa em duas e já ia jogar o outro pedaço pra Morena quando de repente ela jogou os dois pedaços — assim. E entrou pra dentro de casa, j’ouviu. E ficou muda toda a viagem, olhando só aquela seca toda, e aquelas ossadas de gado, e aqueles retirantes que a gente encontrava. E os urubus. Parecia até que estava se distraindo de ver os urubus rondando por ali tudo atrás de carniça. Menina muito feito uma coisa que não tem mais. Muito conforme.
JOÃO GRANDE
Coragem ela tem. Não é por ser minha sobrinha não. Coragem ela tem. Foi mesmo azar.
JOVIRA
Ocê chama azar, João Grande, o que o tio do Chico fez com ela, chama? Eu não chamo não. Eu chamo de pouca-vergonha, de maldade, de frio na alma. Tá certo homem procurar mulher, a gente é para isso mesmo. Mas tudo tem um limite.
JOÃO GRANDE (exaltando-se)
Eu queria ter esse velho da peste no alcance da minha peixeira... Ah, velho safado... Não era por ser velho que ele ia escapar não... Fazer isso com a minha sobrinha!
ISAÍAS GRANDE
Não adianta nada falar. Seu Tomé de Paula tá longe. Melhor esquecer. Ninguém pode com o destino não. O destino é mais forte que qualquer homem. (vendo João Sebastião que se aproxima) Vam’bora, João.
Uma nordestina velha, de xale negro à cabeça, passa lentamente, pitando um cachimbo de barro e apoiada a um bastão. Ela olha várias vezes, em seu percurso, para os homens que conversam, sempre meneando a cabeça e rezingando umas coisas incompreensíveis. Depois sai.
JOÃO GRANDE
Eu fico.
ISAÍAS GRANDE
Vam’embora, já disse…
JOÃO GRANDE
Eu não vou dar parte de fraco não!
ISAÍAS GRANDE (imperativo)
Vamos, já disse!
Pega-o pelo braço e sai com ele.
JOÃO SEBASTIÃO (trocadilhando para Pernambuco, postado em sua tendinha)
Dois Grandes para um pequeno... E ainda saem assim... Eu não queria fazer mal para eles não, não é mesmo, dona Jovira? (em tom debochativo) Com vai a “senhora” de tio Tomé?
JOVIRA (saindo com sua lata na cabeça)
Ocê devia ter mais respeito, João Sebastião. Nem que fosse pelo santo do seu nome.
Sai
JOÃO SEBASTIÃO (rindo)
Homes! Xentes! Que é que eu fiz, hein, Pernambuco?
PERNAMBUCO
Deixe essa gente quieta, Bastião! Já não chega está tudo brigado? Deixe cada um com sua vida... e venha cá tomar uma bicada. (João Sebastião aproxima-se. Pernambuco serve-o) Parece que tá tudo ruim da cabeça, xentes! O melhor é aproveitar a vida enquanto é tempo.
JOÃO SEBASTIÃO
Essa gente não é de nada, não. Se fosse, já dava tempo de dar tudo em Bom Conselho, e tio Tomé debaixo de sete palmos de terra com uma cruz em cima. (bebe) Mas antes disso, tio Tomé já tinha rasgado os dois de alto a baixo, porque tio Tomé não é de brincadeira não. Tio Tomé é homem pro que der e vier. (pausa) Que é que eles tavam aí de manigância com essa bruxa aí, eh, Pernambuco?
PERNAMBUCO (sonso)
Nada. Tavam só falando.
JOÃO SEBASTIÃO
Falando o quê, hein? Diga logo, velho!
PERNAMBUCO
Falando umas coisas.
JOÃO SEBASTIÃO
Que coisas, diga, diga…
PERNAMBUCO
De dona Maria José.
JOÃO SEBASTIÃO
Pode tirar o dona. Essa não é mais dona de nada não.
PERNAMBUCO
Eles tavam falando... Dona Jovira tava dizendo que Maria José deu no pé…
JOÃO SEBASTIÃO (surpreso)
Deu no pé?
PERNAMBUCO
Deu no pé. Pegou no menino e deu no pé.
JOÃO SEBASTIÃO
E aquela poia de bosta que eu tive a infelicidade de ter por irmão deixou ela ir assim?
PERNAMBUCO
Que é que ocê queria que ele fizesse? Ela fugiu, saiu andando, caiu no mundo!
JOÃO SEBASTIÃO
Bem feito para não ouvir o que eu — seu irmão mais velho — e os primos dele dissemos para ele. Devia ter matado ela primeiro. Assim ficava com a consciência tranquila. Agora bem feito! Vai ter a mulher puta duas vezes. A primeira com o tio Tomé e agora com quem quiser. (entra Zefa) Porque isso é o que ela queria: ela queria era vir para o Rio de Janeiro para ser rapariga. Pensa que eu não sei... Eu bem que nunca fui com a cara dela. Uma cara de mulher disfarçada... Bem feito para aquele cabrão aprender como é que se trata mulher. Mulher tem que ser tratada no relho, porque só tem um pensamento na cabeça — abrir as pernas e dar a “perseguida” pro primeiro que pedir. Bem fiz eu que nunca me casei! (mudando de tom) Mas também, quando chego em Bom Conselho, pergunte pra Crisanto: aquelas rameiras de lá ficam igual um galinheiro quando entra galo novo. Um divertimento! E você quer saber duma coisa, Pernambuco: (baixa um pouco a voz) olhe aqui, não é pra me gabar não, mas minha cunhada andava de parte comigo, eu lhe juro. Andava de coisa. Um dia se encostou toda em mim assim como quem não quer, e eu fui saindo porque eu não gosto dessas confianças comigo... Taí no que deu. Bem feito!
Bebe de um só gole, com jactância, como para se afirmar dentro da própria mentira. Zefa, uma prostituta nordestina da favela, deixa-se a encher sua lata, ouvindo a conversa.
PERNAMBUCO (imparticipante, mas gozador)
Veja! Tem de tudo neste mundo! Isso é que ainda é bom. Se todo mundo fosse corajoso, não ia ter nenhum covarde pra contar a história... Se todo mundo dissesse as coisas direito, como é que a gente ia se distrair ouvindo uma mentirinha ou outra... Não é mesmo, Bastião?
JOÃO SEBASTIÃO (sem entender, e já meio alto)
Pois então eu não sei... Pois então eu não sei…
ZEFA (indo até a tenda e batendo com a mão no balcão)
Salte uma, seu Pernambuco. (bebe de um só gole, com uma careta, e pede mais) Olhe aqui, Bastião, eu não tenho nada com isso não, mas eu ouvi o que ocê tava dizendo. Ocê tá com a razão. A gente feito eu, que só faz bem aos homens, dá prazer, dá divertimento, a gente apanha, a polícia prende, chamam a gente de puta e tudo o mais. E por quê? me diga. Porque a gente tem uma profissão honrada, ganha o seu dinheiro dando pros homens o que eles precisam. Tá direito? Num tá não! Essa sua cunhada é mais puta do que eu ou do que qualquer uma, porque essa enganou o marido dela quando ele tava longe e tinha vindo procurar trabalho pra sustentar ela mais o filho. (bebe mais) E ainda mais com o tio do marido! Homes vou-te! Numa assim eu nunca ouvi falar não! Me dá até uma coisa! Eu se fosse ocês, se juntava tudo e tirava o couro dela, porque isso é mulher que não vale nada.
JOÃO SEBASTIÃO (para Pernambuco)
Eu não tou lhe dizendo? Até uma rameira dessas é melhor do que Maria José. Muito bem dito, Zefa! Tome mais uma e deixe por minha conta! Gostei do que ocê disse! Tá direito! É isso mesmo!
Zefa toma mais uma, limpa a boca com as costas da mão, põe a lata d’água na cabeça e sai. Chegam Crisanto, Cristino e Cristóvão, de semblante fechado. A nordestina velha, de xale negro à cabeça, passa lentamente de novo apoiada a seu bastão. Ela olha os homens reunidos e depois desaparece.
CRISANTO
Já tá na branquinha, hein, primo…
JOÃO SEBASTIÃO
Deixe eu. Tou sastifeito. Quer dizer: tou e não tou.
CRISANTO
Por quê, diga…
JOÃO SEBASTIÃO
Maria José…
CRISANTO (atento)
Que é que tem?
JOÃO SEBASTIÃO
Capinou…
CRISTINO E CRISTÓVÃO (quase em uníssono)
Capinou?
CRISTÓVÃO
Não me diga! E Chico?
JOÃO SEBASTIÃO (fazendo graça)
Chico tá com os galhos presos no teto da casa, não pode sair mais não…
Ri torpemente.
CRISANTO (com nervosismo)
Mas que é que foi? Diga, vamos!
JOÃO SEBASTIÃO (bebendo, a língua ligeiramente trôpega)
Nada. Ocê não tá sentindo a brisa correr mais limpa? Não vê como a tarde tá mais bonita? Não sente assim o ar mais cheiroso? Pois foi ela que foi embora, primo... Bateu os cascos. Que é que eu sempre disse? Quem é que tinha razão? Ela queria era ganhar mundo…
CRISTINO (a voz embargada)
Essa eu não esperava... Saiu assim, limpa, sem uma mancha de sangue. Essa até parece história... Qual o quê, seu menino... Esse mundo assim não vai não... Eh, gente frouxa!
Pernambuco serve aos homens. Todos bebem. Uma voz de homem canta o samba “Sai de mim” ao cavaquinho. A conversa executa-se sobre a música.
CRISANTO (fechado)
Sair assim, deixando o nosso nome sujo! Que homem esse seu irmão Francisco, hein, seu João Sebastião de Paula. Que é que o senhor me diz a isso, hein, seu João Sebastião de Paula?
JOÃO SEBASTIÃO
Pois é, primo. Mas esse não é mais meu irmão. Esse eu cuspo na cara. Esse não merece nem viver, quanto mais o nome que tem. Esse é uma porcaria ambulante que anda por aí pior que um mascate, e que um dia há de sucumbir de tanta vergonha, tão certo como Deus estar céu.
CRISTÓVÃO
Porquera…
CRISANTO (ferozmente)
A gente tem de fazer alguma coisa. Se não pagar ela, que pague a raça maldita dela. Eu não quero ficar com o meu nome sujo por causa dessa rameira sua cunhada e sobrinha de seu Isaías Grande e João Grande. Eu não quero. Eu sou homem de brio. Alguém tem de pagar por isso!
JOÃO SEBASTIÃO (puxando a peixeira)
Vamos lá!
CRISANTO
Espere. Vamos conversar primeiro. Isso tem de ser feito na limpeza. Seu Isaías Grande é um homem que eu respeito, tirante o nome. Nós vamos…
Nesse momento entra, gritando, Jovira, a mulher de pouco antes. Ela para diante dos homens.
JOVIRA (para João Sebastião)
Bastião, Bastião! O Chico tomou formicida. Tá morrendo! Tá morrendo!
CRISANTO
Deus te livre! Onde?
João Sebastião sai correndo. Todos rodeiam Jovira para saber, falando ao mesmo tempo. Ela conta, a respiração entrecortada.
JOVIRA
Lá, no barraco dele! Seu Isaías tá lá com ele.
PERNAMBUCO
Virgem Nossa! E ele comprou o formicida aqui na minha tenda! Eu ainda perguntei pra que é que ele precisava, e ele me disse que tava com muita formiga em casa!
JOVIRA
Pois é! Ele tá estrebuchando assim, e seu Isaías tentando fazer ele devolver: mas tá com um jeito ruim…
CRISANTO (para os outros)
Vamos lá!
CRISTÓVÃO
Vamos!
PERNAMBUCO (para um moleque)
Ô Tintura! Toma conta aqui um instante que eu tenho de sair.
O menino acorre. Os outros saem.
O MENINO
Posso comer um chiclete?
PERNAMBUCO
Pode! Mas um só, viu!
O MENINO (dando um pulo de alegria)
Oba!
Saem todos precipitadamente.
TREVAS
CENA 3
A mesma da Cena 1. Quando os homens chegam, seguidos de Jovira, Isaías Grande e João Sebastião estão debruçados sobre o corpo de Francisco de Paula estendido numa enxerga. O rapaz acabou de morrer e Isaías fecha-lhe os olhos. No chão, os cacos de um copo e um resto de líquido derramado. Todos param interditos. Isaías Grande deixa-se estar de costas, mirando o corpo, sem parecer dar pelos recém-vindos.
ISAÍAS GRANDE
Que Deus tenha a sua alma…
A nordestina velha, envolta em seu xale negro, assoma à porta e fica olhando.
JOVIRA
Amém!
ISAÍAS GRANDE (voltando-se e dando com os circunstantes)
Ele morreu…
JOÃO SEBASTIÃO (atordoado)
Chico morreu…
ISAÍAS GRANDE (olhando a todos, como sem ver ninguém)
Não deu tempo. Quando eu falei pra ele que Maria José tinha ido embora, ele levantou assim, foi lá dentro e, quando voltou, já tava bebendo o veneno. Nem pôde acabar. Sentou junto da mesa, a mão na boca do estômago e os olhos que pareciam que iam pular. Mas não deu um gemido. Foi caindo assim.
Jovira aproxima-se do cadáver de Francisco. Faz o sinal da cruz e, depois de ajoelhar, reza uma ave-maria em voz alta. Os homens conservam-se de cabeça baixa e repetem, no final, o “amém”, persignando-se. No meio da reza chega João Grande, que, vendo a cena, aproxima-se de Isaías Grande, que lhe conta tudo em voz baixa. Ele persigna-se também. Ao terminar Jovira diz:
JOVIRA
Preferiu o sossego…
Deixa-se rezando em voz baixa. Os homens se entreolham, interditos.
CRISANTO (quebrando o silêncio)
Eu não tenho lástima, não…
ISAÍAS GRANDE (olhando-o)
Ocê não tem lástima de nada. Seu coração é duro como o de seu tio Tomé de Paula, o causador de toda esta desgraça…
Os irmãos, instintivamente, se agrupam. João Sebastião olha interdito por um momento, depois aproxima-se do grupo formado pelos De Paula, enquanto João Grande aproxima-se de Isaías Grande.
CRISANTO
Olha aqui, seu Isaías Grande. Com todo o respeito que lhe é devido, Chico de Paula devia de morrer, mas não era assim não. Ele devia morrer na ponta da peixeira de um homem, porque isso que ele fez é muito fácil. Ele devia de ter matado Maria José pra limpar o nome dele e o nosso nome, e depois, se fosse homem, devia voltar pro sertão e ajustar contas com tio Tomé. Porque isso é que é de homem. E aí é que ele ia encontrar o sossego, na ponta da peixeira de tio Tomé, porque tio Tomé dava cabo da raça dele, que tio Tomé é homem pra quatro…
JOÃO GRANDE (avançando)
Retire o que disse!
CRISANTO (medindo-o de alto a baixo)
Não retiro. Tudo o que eu disse fica dito. E quem for homem que venha fazer eu me calar…
ISAÍAS GRANDE (detendo João Grande que quer avançar)
Não. Aqui não. Respeitem os mortos. (para Crisanto) Ouça aqui, menino. Você não sabe o que está dizendo, j’ouviu! Você sabe menos o que está dizendo que aquele morto que está ali sabia o que estava fazendo. Tudo isso é loucura, é desesperação! Não me façam isso pelo amor de Deus! Chega de morte, chega de desgraça! Eu vim aqui para trabalhar e para encontrar sossego, ocês compreendem? Sossego! Me deixem em paz pela estima que vocês tinham à finada dona Candinha, mãe de ocês, que não criou vocês para estarem se matando uns aos outros, vocês ouviram! Me deixem em sossego!
João Grande olha-o assombrado. Os irmãos De Paula, Crisanto sobretudo, miram Isaías Grande com uma indisfarçada surpresa e depois desprezo.
CRISANTO
Tá bem, seu Isaías. A gente deixa o senhor ter o sossego que o senhor quiser. Mas deixe aqui que eu lhe diga: isso que o senhor tá fazendo, eu não esperava do senhor não. Isso não é de homem.
João Grande quer novamente atirar-se contra o outro, mas Isaías Grande o detém.
ISAÍAS GRANDE
Sua opinião pouco me interessa. Nem a esse morto que está aqui. Agora saiam todos!
Os homens saem, empurrando brutalmente a nordestina velha que está à porta. Dentro de um instante, Crisanto volta.
CRISANTO (chegando bem perto de Isaías)
Olhe aqui, seu Isaías Grande. Toda essa conversa pode ser muito boa, mas para mim ela não quer dizer nada não. A conversa lá no sertão é outra. Chico que está ali preferiu a solução mais fácil, não teve vergonha nem coragem para limpar o nome dele e o nosso nome. Mas eu sou homem. E o senhor é homem que eu sei. Isso que o senhor tá dizendo pode fazer sentido pro senhor, mas pra mim não faz não. Ninguém vai ter sossego assim não. Essa vergonha toda, só o sangue pode limpar ela. O senhor tem o nome de Grande, eu tenho o nome de De Paula. Esses dois nomes não podem existir mais dentro do mesmo terreiro não. Eu vou sair e lhe dar cinco minutos. Se dentro de cinco minutos o senhor não estiver diante da Tendinha pra gente resolver isso de homem pra homem, o senhor e João Grande, eu juro que volto aqui e, diante daquele morto, eu cuspo na sua cara e na cara de seu irmão.
Volta-se bruscamente e sai. Cai um silêncio mortal sobre tudo até que uma voz feminina, em algum ponto da favela, começa a cantar o “Lamento de Dalva”. Isaías Grande baixa a cabeça, depois sacode-a repetidas vezes e finalmente crispa os punhos, devagar.
ISAÍAS GRANDE
Não podia ser... Tanta coisa boa junta não podia ser... Maria José com Francisco, Inacinho crescendo, a gente trabalhando, a casa de variante, a oficina... Não podia ser... Ninguém tem direito a tanta felicidade…
JOÃO GRANDE
Vamos, Isaías, senão eu vou sozinho…
ISAÍAS GRANDE (crescendo o tom, à medida)
Vamos. Se é o que eles querem, se é o que eles estão querendo, sangue, morte, então vamos, que eles vão ter o que estão querendo! (voltando-se para Jovira, depois de apanhar um punhado de dinheiro no bolso) Olhe aqui, minha comadre: cuide do enterro de Francisco, j’ouviu! E reze por ele e por Maria José. Por mim não reze não, que eu não vou me tornar num assassino…
A canção prossegue plangente, ao longe. Isaías Grande pega a sua peixeira e a coloca no cinto, João Grande verifica se a sua está no lugar, e, depois de um último olhar para o morto, ambos saem.
TREVAS
CENA 4
A Tendinha. A notícia já se espalhou, de que os homens vão lutar, e uma pequena multidão de curiosos se aglomera por ali. Várias pessoas bebem, comentando ad lib. A nordestina velha acha-se encostada ao balcão de Pernambuco, tomando uma cachaça.
JOÃO SEBASTIÃO (bebendo)
Aposto como seu Isaías não vem. Mais fácil João vir. Aquele velho não é de nada…
CRISANTO (para Pernambuco)
Quantos minutos, velho?
PERNAMBUCO
Falta um minuto só…
CRISANTO
Aquele velho! Será que ele não vem? Ele tem de vir! Seu Isaías não é disso…
CRISTÓVÃO (afiando a peixeira numa pedra)
É. Não é disso, mas largou o sertão pra não matar o coronel Cantídio que ofendeu ele na pior coisa que se pode ofender um homem…
CRISANTO
Mas é diferente... O coronel Cantídio tinha antes protegido seu Zé Luís e dona Candinha, todo mundo sabe disso. Seu Isaías se sentiu mal e preferiu dar no pé pra não ter de matar ele. Eu tinha matado de qualquer maneira…
PERNAMBUCO
Faltam só trinta segundos…
CRISANTO (ingerindo a sua cachaça de um só gole)
Vamos lá!
Vai sair quando chegam Isaías Grande e João Grande. Os homens param e se defrontam.
ISAÍAS GRANDE (para Pernambuco)
Me vira duas aí, Pernambuco…
Pernambuco serve. Faz-se um grande silêncio. Isaías Grande e João Grande vão até a Tendinha e pegam os copos. A cantiga prossegue, na distância.
ISAÍAS GRANDE (erguendo o copo em direção aos inimigos)
À saúde de quem morrer…
Vira o copo e saca a peixeira. João Grande imita-o.
ISAÍAS GRANDE (com um duro gesto inquisitivo)
Quem vai ser o primeiro?
CRISANTO (sacando a peixeira)
Eu e... (olha em volta) e João Sebastião. João Sebastião é irmão de Chico, mas tá do nosso lado!
JOÃO SEBASTIÃO (a voz pastosa de bebida)
Tou…
ISAÍAS GRANDE
Preferia um menos frouxo…
Isaías Grande olha bem para ele, depois para os outros, e de repente desata numa enorme gargalhada. Os quatro homens olham-se interditos e logo depois, com fúria incontida, investem contra ele, a peixeiradas. Isaías Grande num salto ágil afasta João Grande dele num repelão e se põe a salvo. Os homens retrocedem e começam a mover-se felinamente, procurando a ocasião para encaixar um golpe. Isaías Grande, de súbito, começa a cantarolar o “Quara-qua-quá”, meio entre dentes. De repente, novo encontro, num feixe de homens que logo reflui. João Sebastião sobra, com um horrível corte no pescoço.
JOÃO SEBASTIÃO (caindo e ao morrer)
Velho da peste! (morre)
Isaías Grande salta sobre uma e outra perna, com uma agilidade imprevista. Depois de um silêncio recomeça a cantarolar. Novamente os três restantes desabam sobre os dois irmãos. João Grande fere Cristóvão com uma facada certeira, mas ao voltar-se é atingido nas costas, com enorme fúria, pela peixeira de seu próprio irmão, Isaías Grande, que corta a torto e a direito. Os dois homens caem, um sobre o outro, e continuam a lutar no chão. Finalmente, Cristóvão acaba com João Grande e caído sobre ele morre também. Isaías Grande continua a sua dança fantástica em volta de Crisanto e Cristino, sempre cantarolando. Novo embate, Crisanto atinge Isaías Grande, mas não mortalmente. Os homens estão cobertos de sangue, e parecem feras a se espreitar, a fluir e refluir no corpo a corpo, quando se cortam ferozmente. O silêncio é total entre a multidão. Somente a cantilena e a voz de Isaías Grande que, em meio à orgia de sangue, cantarola como um possuído, quase docemente, o “Quara-qua-quá”. Súbito, novo embate. Isaías Grande fere Cristino mortalmente. O homem cai estorcendo-se e morre.
ISAÍAS GRANDE (cantarolando)
Agora você, cabra safado…
Investe cegamente. Os dois homens golpeiam-se horrível, cegamente. Depois, com uma ágil peixeirada de baixo para cima, Isaías Grande atinge Crisanto. Ele o levanta até o alto, com o poder de seus braços, a peixeira encravada até o cabo na barriga do inimigo, então solta-o como se fosse um fardo.
ISAÍAS GRANDE (caindo sobre um joelho depois do esforço)
Era o que você queria, não era, Crisanto de Paula?
Olha com um olhar terrível a multidão em volta, coberto de sangue, a peixeira em riste. Passa a mão no rosto cortado, limpando-se do sangue que lhe escorre, e olha os cadáveres à sua volta, batendo por duas ou três vezes com os braços contra o corpo, em sinal de desespero. Depois vai saindo, trôpego, por entre o casario.
ISAÍAS GRANDE (gritando para a distância)
Agora você, Tomé de Paula!
Ouve-se sua voz que se afasta, às vezes cantarolando o “Qua- ra-qua-quá” com uma expressão terrivelmente dramática e logo depois, já mais longe:
ISAÍAS GRANDE (a voz bem distante)
Agora nós, Tomé de Paula!
A multidão não se move. De súbito, a nordestina velha, envolta no xale negro, surge do meio de um grupo e se aproxima do proscênio. É a Morte. Ela pisa horrorizada entre os cadáveres, enquanto se eleva o coro de lamentações das mulheres presentes, que deve se intercalar com a sua tirada final.
CORO — PRIMEIRA MULHER
Foi a terra que secou…
CORO — SEGUNDA MULHER
Foi o leite que secou…
CORO — TERCEIRA MULHER
Foi o choro que secou…
CORO — QUARTA MULHER
Foi a fome do menino…
CORO — PRIMEIRA MULHER
Foi a seca…
CORO — SEGUNDA MULHER
Foi o destino…
CORO — TERCEIRA MULHER
Não! Foi o abandono…
CORO — QUARTA MULHER
O abandono daquela gente…
CORO — PRIMEIRA MULHER
A pobreza, a tristeza…
CORO — SEGUNDA MULHER
O martírio do nordestino…
CORO — TERCEIRA MULHER
Um menino morrendo de fome…
CORO — QUARTA MULHER
Um homem com fome de mulher…
CORO — PRIMEIRA MULHER
Uma mulher que não tem outro jeito…
CORO — SEGUNDA MULHER
O marido longe, ela sozinha…
CORO — TERCEIRA MULHER
Na seca, tudo seco, a terra, o céu, o leite…
CORO — QUARTA MULHER
Foi o coração dos homens que secou…
A MORTE (pisando horrorizada por entre os cadáveres, naquele mar de sangue)
Não são homens! São feras! São feras! Não é assim que eu queria não! São eles que vêm me buscar, essas feras! Eu não queria que fosse assim não, eu não tenho nada a ver com isso não. Eu queria é que as pessoas acabassem como um fogo, porque é assim que é direito. Mas essas feras não me dão sossego, eu não tenho mais sossego, é só gente a se matar, a matar os outros, a querer sangue, a querer morte! Eu não posso mais! Eu não aguento mais! É trabalho demais para mim! Não precisava ser assim não! Eu queria que as pessoas vivessem e fossem acabando como um fogo, até sua própria cinza. Não precisava ser isso não, essa chacina, esse sangue! Não são homens.
SÃO FERAS!
SÃO FERAS!
O pano vai caindo sobre esta tirada da morte, enquanto ao longe termina a cantilena e se ouvem, cada vez mais distantes, os gritos de Isaías Grande partindo para matar Tomé de Paula, o último remanescente da sua vingança agora inevitável.
CORTINA
Petrópolis, domingo, 10 de abril de 1961, duas e meia da madrugada)