Crônicas de Cinema
Tenho que Grande Otelo é o maior ator brasileiro do mo- mento, incluindo gente de teatro, cinema, rádio e o que mais haja. O danado tem realmente uma bossa fantástica para re- presentar — e o certo é que se trata de uma vocação no mais justo sentido da palavra, quanto haja vista o modo como Ote- lo tem progredido de dentro dos seus próprios recursos, orga- nicamente, e bem para cima, como as árvores mais dignas. É certo que a experiência de cassinos, o trato com o público oblíquo e entediado dos grill rooms o devem ter ajudado mui- to a se defender sozinho das dificuldades e dos imprevistos cênicos, mas, por outro lado, que mal não lhe poderia isso ter feito! Em vez, não. Quando Orson Welles filmava as cenas de morro do seu filme brasileiro, tive oportunidade de con- versar com ele sobre Grande Otelo. Orson Welles o achava não o maior ator brasileiro, mas o maior ator da América do Sul. Não o dizia gratuitamente, tampouco. Um dia me expli- cou longamente o temperamento artístico desse pretinho tão genuíno que nem os sofisticados sambas pseudopatrióticos, nem o contato diário com os piores cantores e autores de cas- sinos conseguiu estragar. Dizia-me haver nele um trágico de primeira qualidade e lamentava não poder exercitá-lo melhor nesse sentido.
No quadro das artes cênicas brasileiras, é efetivamente de admirar um caso como o de Grande Otelo. Ainda outro dia eu conversava com Aníbal Machado sobre o assunto. Aníbal é um dos poucos homens conscientes do estado em que vive o nosso palco e o nosso cinema, e anda empenhado até os olhos em ajudar o desenvolvimento do nosso teatro dentro de novas perspectivas. Falar verdade, não sei como é que ele vai se sair desta, mas eu gostaria de chamar a sua atenção como a dos nossos bons diretores e dirigentes para o caso de Otelo, que é um valor estupendo muitíssimo mal aproveitado.
Ainda não vi Moleque Tião, o filme que o Vitória no mo- mento exibe e no qual Otelo tem o papel preponderante. Te- nho certeza, de antemão, que o seu trabalho deve ser bom. Otelo tem essa naturalidade rara do grande ator, e o que me espanta é ser tão modesto. Trata-se de uma peça rara. Eu, pessoalmente, tenho com Otelo relações que não chegam a ser de amizade, mas confesso que muito me alegraria se sou- besse que ele gostaria que fôssemos amigos. É uma pessoa especialmente rica como criatura humana, de um formidá- vel patético e com uma extraordinária capacidade de ternura, que se esconde sob uma certa ironia e verve. Um “boa-praça”, como diz Rubem Braga. Por falar em praça, como é possível deixar de querer-lhe bem, ele que deu, de parceria com He- rivelto Martins, o grande e triste samba do Rio, cujas notas cantam como gemidos para o coração da cidade: “Vão acabar com a praça Onze...”.
1943