Crônicas de Cinema


A volta do terceiro homem

Quando eu vi O terceiro homem pela primeira vez — e esta é a quarta — já tinha lido a novela do romancista inglês Graham Greene, sobre a qual foi feito o filme. A novela é seca, nervosa e ágil, carregada de conflito, mas a tensão que o desenvolvi- mento esquemático e furbo da trama provoca provém sempre de algo que fica em suspenso — nunca diretamente do con- flito ele mesmo. Neste particular situa-se Greene na terceira ponta do triângulo do moderno romance ocidental, sendo as outras duas ocupadas por Gide e Kafka — e excluindo aqui o romance social. Mas Greene não pratica, como Gide, psi- cologia pura, a psicologia pelo prazer da psicologia, na qual o paciente é mera cobaia de seu prazer de pô-lo a nu, mas não de curá-lo; nem como Kafka faz trepanações lá onde nenhum cirurgião se arriscaria, mas já aqui com o intuito de salvar o seu doente embora arriscando abreviar-lhe a vida. Greene não é nem tão lucidamente frio como Gide, nem tão santamente louco como Kafka. Ele é um meio-termo.
Radiografa os seres e lhes fornece os termos do conflito particular que os aflige, depois os larga de mão, certo de que ao expor-lhes o seu mal — ou o mal — os está pondo ato contínuo a caminho de um novo conflito que vai fatalmen- te nascer do conhecimento do primeiro. Pois para Greene o conflito é o homem, e o mal, o seu caminho natural. Mas por isso mesmo que ele é no fundo um ser moral, e, dos três romancistas citados, o mais ético; Greene, ao revelar o mal, deixa claro que o bem existe, por abstração. Donde podemos ponderar que, relativamente ao ser humano, Kafka e Greene são romancistas positivos, enquanto Gide é negativo. E outra não é a razão, num tão grande escritor como o último, da sua influência sempre deletéria.
Pode parecer estranho eu fazer todas essas considerações numa crônica de cinema, mas o caso é que, ao ver O tercei- ro homem desta última vez, senti a novela superar o filme, apesar do brilho deste e do esquecimento aparente daquela. De início tive a impressão de que o filme ampliara a novela; dera-lhe novas dimensões. Mas qual. A história é que “re- vela”, não a sua visualização. O diálogo poderia ser somente escutado, de olhos fechados, e creio que a carga emocional estaria presente. Pretendo, aliás, fazer a experiência. São as palavras que insinuam o conflito, que o propõem — poucas vezes a expressão, a mímica, o gesto, a ação cinemática. Há, é claro, cenas inteiras que valem puramente como cinema, e estas são aquelas raras em que Greene descreve, para não dizer “escreve”. Mas a experiência, de qualquer modo, só va- leria para quem já tivesse lido a novela e visto o filme como uma espécie de prova dos noves da superioridade sobre a sua visualização cinematográfica.

Sim, positivamente Greene é um artista superior — muito maior do que Carol Reed é cineasta.

1951