Crônicas de Cinema
Porque hoje eu estou de lua, e positivamente me recuso a fazer crítica da filmasnice que vi ontem, divagarei, divagarei, diva- garei. Não tenho em absoluto ideia do que vai sair daqui, mas a pressão mecânica do dedo sobre o teclado da máquina por certo me arrancará uma crônica qualquer. Seria talvez o caso de contar-te, leitor vespertino, uma memória dos meus cinco anos de Hollywood, mas tu não só podes pensar que eu estou mentindo, como há um sem-número de gente que fica dizendo que eu estou é querendo me mostrar, fazer o farol, essa coisa.
Mas que se danem estes. Vou te contar, leitor, como foi que eu vi pela primeira vez uma mulher por quem tive uma incrível paixão cinematográfica na juventude. Quando eu an- dava aí pelos meus dezessete, era para o retrato dessa mulher, preso à parede do meu quarto, que eu olhava todas as noites antes de dormir. Tinha por ela um amor cego, irreprimível, absoluto. Via-lhe os filmes oito, dez vezes.
Ela era grande, loura, branca, e tinha um olhar recuado que nunca chegava totalmente, como um misterioso convite a ir ver de perto, bem de perto. Sua fala era grave e doce, e ela cantava umas canções com uma falta de voz que era a voz mais linda do mundo. Quando ela sofria, ou se sur- preendia — porque ela nunca se aterrorizava... —, a íris dos seus olhos percorria o espaço branco agitadamente, mas tão vasto era esse espaço que dir-se-ia haver decorrido um século durante aquele movimento. Por ela fui, em sonhos, grande escultor, soldado da Legião Estrangeira, espião na Primeira Grande Guerra, príncipe hindu, milionário em férias de ca- baré, embarcadiço, tudo. Tivemos encontros em Marrocos, Cingapura, onde ela veio ter em avião especial para casar co- migo apesar dos protestos de minha mãe, que a achava meio vigarista. Mas ela casou comigo mesmo na raça, com flor de laranjeira e tudo, ali na igrejinha da rua Lopes Quintas, sen- do a cerimônia oficiada, se não me engano, pelo então vigário de São João Batista, monsenhor Rosalvo da Costa Rego. Houve ponche e doces caseiros depois do enlace, mas eu acordei — mal haja a luz do dia! — antes que a noite caísse sobre o nosso grande amor.
Essa mulher, essa das pernas longilíneas e luminosas, cha- ma-se, ou melhor, chamava-se Marlene Dietrich, e eu a vi há exatamente cinco anos, pela primeira vez. Depois deveria vê-la muitas outras vezes, mas nada como essa vez primeira.
Era noite, e eu estava sozinho e triste e resolvi ir ao Ciro’s, um famoso night club de estrelas e astros que existe em Sun- set Boulevard, no coração de Hollywood. Nele tocava uma orquestra de um pianista pífio chamado Carmen Cavallaro, que eu nunca tinha ouvido pessoalmente. Como estivesse desacompanhado, fiquei sentado ao bar, num dos banquinhos altos, a traçar o meu uísque e a ver dançar à meia-luz tantas caras conhecidas da tela.
Foi quando ela entrou. De início, não a reconheci. Vinha em companhia de um velho, e passou longe de mim, direta- mente para uma mesa reservada. Mas ouvi o comentário de um sujeito ao lado — Marlene... — e juro que meu coração bateu. Marlene... Levantei-me e fui espiá-la de perto. Era ela mesmo, leitor... Parecia haver absorvido toda a luz do mundo em sua face branca e em seus cabelos louros. Fiquei a olhá-la um sem-tempo, até que ela se virou e, dando comigo basba- que, teve uma sombra de sorriso.Fui reto ao maître. Passei-lhe uma gaita gorda, e ele me providenciou uma mesinha reservada bem perto dela, onde me sentei e fiquei o resto da noite, a olhá-la com ar de quem não quer. De quem não quer... Quem não queria nada era ela, leitor. Não me olhou mais uma só vez. Não me deu a menor bola. Conversou muito lá com o velhinho dela e no máximo me oferecia o perfil, de onde nascia um halo, e a sombra misteriosa dos olhos de imensas pestanas. Nem me ligou. E casada comigo, leitor, casada comigo...
1951