Peças teatrais


Procura-se uma rosa

PROCURA-SE UMA ROSA
PEÇA EM UM ATO

 

[NOTAS DO PROGRAMA]

1. Este espetáculo é uma experiência dramática inteiramente inédita. Uma notícia de jornal foi entregue a três autores, para que cada qual escrevesse uma peça em um ato, dando sua interpretação pessoal daquele fato. Os autores escolhidos foram Pedro Bloch, Vinicius de Moraes e Glaucio Gill. E o espetáculo, à semelhança da nota publicada, tem por título Procura-se uma rosa. O texto da notícia que serviu de tema às três peças é o seguinte:

                                  FATOS DA CIDADE
                                  PROCURA-SE UMA ROSA
                                  Estava na estação. Eram três horas da tarde. Com a companheira pelo braço, preparava-se para o momento de embarcar. Tinham chegado juntos, ficaram juntos todo o tempo e juntos iam embarcar. Passava gente por todos os lados. E então, de um segundo para outro, Rosa perdeu-se de seu braço. Não sabe explicar como. Só sabe que Rosa sumiu como se tivesse sumido dentro de si mesma. Esperou acabar o movimento. A estação ficou deserta. Mas Rosa não apareceu. Voltou para casa e de novo pôs-se a esperar. Mas Rosa não apareceu. Foi então ao distrito policial e comunicou a ocorrência. E agora Lino dos Santos está percorrendo os jornais para avisar que oferece uma gratificação a quem encontrar a sua Rosa. Qualquer informação pode ser enviada à redação deste jornal.

2. A ideia de escrever uma peça em um ato, ao lado de dois autores nacionais, sobre um assunto tirado de uma notícia de jornal, interessou-me de saída. Quando fui procurado, nesse sentido, pelos corajosos realizadores do Teatro Santa Rosa, Leo Jusi, Hélio Bloch e Glaucio Gill, confesso que, em gozo de curta licença no Brasil, não dispunha de tempo para fazê-lo. Mas a generosidade da ideia que preside à criação desta Casa, aliada ao repto da proposta, predispuseram-me a aceitar a incumbência, sem qualquer espírito de desafio, bem entendido, com relação aos outros autores, ambos bons amigos meus. Desafio, se há, existe com relação a mim mesmo. Impus-me a disciplina de tentar extrair teatro de uma simples notícia do cotidiano carioca — uma notícia, é claro, cheia de perspectivas, mas que se enquadra perfeitamente dentro da temática urbana usual! Ao contrário de minha primeira peça, Orfeu da Conceição, que é um poema em forma de teatro e no qual o autor está profundamente presente, procurei, nesta segunda experiência, deixar o autor, tanto quanto possível, observar de fora os acontecimentos por ele próprio imaginados, sem se deixar levar senão pela necessidade de levantar, de um fato, da crônica policial da cidade, uma ponta do véu de mistério que existe em tudo quanto vive. Se o consegui ou não, compete ao público julgá-lo. De qualquer maneira, para mim a experiência foi válida, não só pelo seu ineditismo, como pela confirmação que me trouxe de que a poesia, como o ar que se respira, está em todos os lugares — até numa delegacia de polícia.

 

Personagens por ordem de entrada
Guarda no 1 (177), negro, vinte e cinco anos

Investigador no 1 (Canhoto), vinte e sete anos

Guarda no 2 (150), vinte e três anos

Mulher no 1, vinte e dois anos

Investigador no 2, vinte e cinco anos

Comissário, trinta e cinco anos

Escrivão, quarenta e cinco anos

Repórter policial, trinta e três anos

Louca da curra, dezoito anos

Rapaz da Rosa, vinte e um anos

Mulher no 2, negra, trinta e dois anos

Luzia, negra bêbada

Voz do delegado

 

Tempo

O presente

 

Cenário

Uma delegacia de polícia carioca, com toda a sua nudez e crueza. Entrada pela esquerda. O aposento em dois planos: à esquerda, a “recepção”, com bancos sem encosto ao longo das paredes, e ao fundo um pequeno cubículo onde fica o escrivão. À direita, dentro de um engradado, a mesa do comissário. Na direita alta, ao fundo, uma porta que, ao se abrir, dá vista sobre um pequeno trecho de xadrez. Na direita baixa, porta para o gabinete do delegado. Ambiente nu e desesperado, sem janelas. É o começo do crepúsculo, e as luzes ainda não foram acesas. Quando o pano levanta, uma cortina transparente, insinuando a rua fora, revela apenas a delegacia atrás, dentro da qual três figuras se movem irrealmente.

 

CORTINA

A LOUCA DA CURRA
Silêncio, silêncio
Que melancolia
Perdeu-se uma rosa
De dia, de dia.

Tristeza, tristeza
Que vida vazia
Perdeu-se uma rosa
Quem a encontraria?

Como era formosa
Que pele macia
Perdeu-se uma rosa
Morreu a poesia.

Ó rosa da aurora
Ó rosa do dia
Só a noite escura
Te receberia.

Se virem a rosa
Na sua agonia
Ó digam à bela
À rosa macia
Que a vida sem ela
Não tem alegria.

                                 Abre-se a cortina quando a louca da curra acaba de sair. O interior da delegacia.

GUARDA NO 1 (177)
É a louca da curra…

INVESTIGADOR NO 1 (Canhoto)
Que chata! Não dá uma folga…

GUARDA NO 2 (150)
Por que não põe ela na jaula?

                                  Alarido de mulheres no interior, no xadrez da delegacia. Impropérios.

INVESTIGADOR NO 1
Como? Como se tem trinta e onze mulheres aí dentro? O delegado mandou ela pro hospital de Alienados, o diretor lá rebateu pro Engenho de Dentro, o de lá tirou de letra e ela veio mesmo foi dar com os costados por aqui. Sabe como é, né? Esse delegado é um banana mesmo, fica dando comida pra ela…

GUARDA NO 2
Que é que ela fez?

INVESTIGADOR NO 1
Você ainda não estava aí. Foi um negócio feio, rapaz. Ela propriamente não fez nada, os outros é que fizeram. Eu estava de plantão quando trouxeram ela e os três caras da curra. Menino, foi a primeira vez que eu vi esse homem aí (aponta com o polegar para o gabinete do delegado) ficar louco. Vocês sabem como ele é, cheio de maneirismos: “Na minha delegacia não se bate em ninguém...”; “Não se cura a violência com a própria violência...”. E nhe-nhe-nhém. Pois, meu irmão, o homem se serviu. Um dos garotos, um massa, saiu do gabinete dele que nem te conto. A cara do cara parecia uma pasta de sangue.

GUARDA NO 2
E aí?

INVESTIGADOR NO 1
E aí, quando ela voltou a si, já não tinha nem si, nem dó, nem ré. Ela estava matusca, sabe como é? (aponta para a cabeça) Também os caras tinham feito meséria com ela. Tudinho, sabe como é. Tudo, tudo, tudo.

GUARDA NO 1
Tudo?

INVESTIGADOR NO 1 (balançando a cabeça)
Não ficou faltando nada.

GUARDA NO 1
Eu ouvi dizer que mulher de curra vai pro céu.

GUARDA NO 2
Tu ouve cada bobagem... Francamente... Como é que pode ir pro céu se foi desvir-disginizada? Tu já viu mulher assim ir pro céu? Tu acha então que Nosso Senhor lá quer saber de rameira?

GUARDA NO 1
Pera aí, vamos com calma... Quem é que falou em rameira? Eu não falei em rameira... Eu falei em mulher que leva curra. São duas coisas muitíssimo diferentes. Rameira é uma coisa, mulher de curra é outra. Uma faz porque quer, a outra faz porque não quer. Morou?

GUARDA NO 2
Pois é. Casa com ela…

GUARDA NO 1
Quem falou em casar? Eu falei em casar? Eu não falei absolutamentes em casar. Casa você, uai! Eu só falei que ouvi dizer que mulher que leva curra vai pro céu. Só isso.

GUARDA NO 2
Pro céu... Logo pro céu... Você acha então, ó cara, que as onze mil virgens iam topar que uma mulher de curra ficasse circulando nas aragens delas? Você tem cada uma! Você nem parece um cara inteligente…

GUARDA NO 1 (começando a se queimar)
Não ofende não, hein... Vamos devagar, hein…

INVESTIGADOR NO 1
Vamos parar…

GUARDA NO 1
É esse cara aí, sempre de mas-mas…

INVESTIGADOR NO 1 (levemente ameaçador)
Vamos parar, já disse...

                                  O guarda no 1 resmunga qualquer coisa e sai, mal-humorado. O guarda no 2 põe-se a rir.

INVESTIGADOR NO 1
Você também é de morte... Não para de cozinhar o outro. E ele ainda diz que você é o melhor amigo que ele tem…

GUARDA NO 2
É. Nós somos amigos. Mas é que ele é um cara tão direito, mas tão direito, que às vezes dá vontade assim de dar um gozo nele. Pode essa mulher de curra ir pro céu, pode? Pois assim é ele. Não mora nos assuntos. Mas não há de ser nada... Ele é da minha cidade.

INVESTIGADOR NO 1
É. Mas você ainda acaba servindo de bainha pro punhal dele.

GUARDA NO 2
Não digo que sim. Mas também não digo que não. Nós somos amigos. Mas a gente pode brigar. Que é que se vai fazer... É a vida…

                                  A luz começa a fazer-se crepuscular. O guarda no 2 sai. O investigador no 1 espreguiça-se longamente. Ouve-se fora a voz da louca cantando um trecho da canção. O investigador no 1 escuta, a cabeça meio baixa, como meditando. Depois dá um enorme bocejo e a canção se interrompe a meio. Entra uma mulher.

MULHER NO 1
Vim dar uma queixa. O senhor é o comissário?

INVESTIGADOR NO 1
Você me acha com cara de comissário?

MULHER NO 1
Não, não acho não, senhor.

INVESTIGADOR NO 1
E então, que conversa é essa?

MULHER NO 1
É que eu queria ver o comissário para dar uma queixa.

INVESTIGADOR NO 1
O comissário ainda não chegou. Desembucha.

MULHER NO 1
É que eu vim dar uma queixa contra meu marido.

INVESTIGADOR NO 1
Por quê?

MULHER NO 1
Porque ele me bateu.

INVESTIGADOR NO 1
Por que é que você não larga ele?

MULHER NO 1 (tímida)
Porque ele é meu marido.

INVESTIGADOR NO 1
Vocês são todas umas sem-vergonha. Vocês gostam mesmo é de entrar na peia. Qual, mulher não tem jeito... Mas então, se você não quer largar ele, pra que é que vem dar queixa?

MULHER NO 1 (meio choramingando)
É porque ele me bateu muito. Me bateu muito. Eu estou cheia de marca. Até um pontapé ele me deu. Olhe aqui. (levanta o vestido e mostra a coxa magra, com uma enorme mancha-roxa) Me bateu, me bateu, me bateu, até eu desmaiar. Depois ele se aproveita de mim, depois de me bater. Eu não aguento mais. Um dia eu mato ele!

INVESTIGADOR NO 1
Mata nada. Eu te manjo. Você quer é movimento. Vai em frente. Imagina se eu vou chatear o comissário por causa de uma cascateira da tua marca... que gosta de apanhar do marido. Vai em frente, sua descarada! Some daqui senão eu te como no braço! Não quer mais apanhar, larga o homem, em lugar de vir aporrinhar. Some!

                                  A mulher chora um pranto aflito e, atemorizada, sai recuando de costas.

MULHER NO 1
Mas ele é meu marido. Eu não posso largar ele…

INVESTIGADOR NO 1 (brutalmente)
Some!

                                  A mulher vai saindo, a soluçar; depois seus soluços se transformam em estertores.

MULHER NO 1 (primeiro em cena, depois off-stage)
Mas um dia, eu mato ele, ele vai ver. Um dia eu mato ele, ah, isso eu mato. Um dia ele vai ver, ele vai ver... (sumindo)

                                  Um relógio bate sete horas. O guarda no 2 entra e interna-se na delegacia, pela porta do xadrez, que deixa aberta. Ouve-se o alarido das mulheres e depois uma voz negra e aguda começa a cantar o samba “Volta”.

VOZ DE MULHER (cantando agudissimamente; a partir da segunda parte, um coro de mulheres participa do samba)
Volta
Vem sentir o calor dos braços meus
Volta
Que é tristeza demais pra um coração
Volta, meu amor
Vem aninhar-te em meus braços
Morro de saudade
Dos teus lábios em flor
                                  — amor!

Solta
Do meu peito a canção mais comovida
Que
Tua ausência trancou dentro de mim
Volta, meu amor
Só com passagem de ida
Volta
Para sempre e sem fim
— Volta, meu amor
Mas volta por toda a vida
Volta
Inteirinho pra mim.

                                  Termina em tremenda batucada, as mulheres batendo em tudo, nas grades do xadrez, fazendo uma enorme algazarra. Súbito ouve-se um grito…

VOZ DE HOMEM (off)
Silêncio!

                                  As vozes se calam. Depois se ouvem risadas perdidas, e uma aguda voz feminina, cínica, caçoa.

VOZ DE MULHER (off)
Ah, vem cá, neguinho, vem gritar aqui, vem, neguinho. Eu tou doida pra apanhar um homem. Vem, neguinho…

                                  O investigador no 1, sentado num dos bancos, enfia a cabeça entre as mãos com ar de profundo tédio. Cai um enorme silêncio dentro da delegacia, a ponto de se ouvir tiquetaquear o relógio na parede e o planger longínquo de buzinas de automóveis. Depois de um instante ouve-se uma descarga de latrina no interior da delegacia e pouco depois surge, abotoando a braguilha, o investigador no 2.

INVESTIGADOR NO 2 (bocejando)
Comé? Nada?

INVESTIGADOR NO 1 (abanando, melancólico, a cabeça)
Esse distrito está ficando de amargar. Que é que está se passando? Nunca se viu uma calma assim... Você não acha isso meio esquisito? Parece que fica tudo assim meio parado quando não há crime…

INVESTIGADOR NO 2
Eu só faço dormir. Que programa! Mas não houve nada-nada?

INVESTIGADOR NO 1 (sarcástico)
Teve um caso muito interessante. Uma palhaça que veio dar queixa do marido porque ele esquentou o couro dela. Eu nunca tinha ouvido falar de uma coisa assim, você já?

INVESTIGADOR NO 2 (com cara cômica de espanto)
Eu nunca! Chego a ficar todo arrepiado... Mas isso é caso pra se chamar o comissário…

INVESTIGADOR NO 1
Pois é. E ainda mostrou as coxas, para eu ver as marcas.

INVESTIGADOR NO 2
E que tal?

INVESTIGADOR NO 1
Uma marca roxa deste tamanho. (exagera o gesto)

INVESTIGADOR NO 2
E estou falando das coxas…

INVESTIGADOR NO 1
Galeto.

INVESTIGADOR NO 2
Eu não sei não. A gente é promovido para um distrito melhor, e é isso... Assim, palavra, eu vou pedir para ser despromovido. Na zona do crime o negócio é mais divertido, poxa! Ou bem o cara tem essa profissão decentemente, ou então é melhor trabalhar sentado feito chofer de táxi. Mas não é mesmo? Eu, tem seguramente um mês que não exercito meus músculos, não bato num cara, não faço bulhufas, só dar blitz nessas vadias...

INVESTIGADOR NO 1
Mas é mesmo. No meu antigo distrito, poxa…

INVESTIGADOR NO 2 (se animando)
O negócio era bom, era? (tem um gesto ligeiramente boxeador)

INVESTIGADOR NO 1
Bom? Pra não ir muito longe, você já ouviu falar em Zé Perturba?

INVESTIGADOR NO 2
Zé Perturba? Não brinca…

INVESTIGADOR NO 1 (aquiescendo modestamente)
O papai aqui…

INVESTIGADOR NO 2 (alvoroçado)
Garoto bom... Conta!

INVESTIGADOR NO 1
Foi nada. O papai já pegou piores... Mas pra você, que ainda é calouro no serviço, vou te contar. Foi assim: nós tínhamos uma dica de que Zé Perturba estava acoitado na favela de Barros Filho. Você sabe que lá só dá nordestino. Zé Perturba era um cara considerado uma fera, quase um rival de Canindé. Reuni uns homens e fui pra lá. Cercamos o barraco onde sabíamos que ele estava homiziado, de uma amásia dele chamada Ritinha, e eu chamei o homem às falas. Ele resistiu. Saiu cuspindo fogo, pulava mais do que um gato, as balas passavam por ele sem tocar, peco-peco-peco, ele negaceando, caindo, se levantando, ali tudo pelo terreiro…

                                  A esta altura, o guarda no 1, 177, chega e fica olhando, com um risinho nos olhos.

GUARDA NO 1
Cristo! Quanta bala!

INVESTIGADOR NO 1 (sem se dar por achado)
Sai pra lá, chiclete de leão... Claro, ele pôde se safar porque a noite estava um breu. Eu contei as balas do revólver dele — uma, duas, três, quatro, cinco, seis — porque eu moro no barulho de uma Smith & Wesson — e aí mandei os homens pararem de atirar. Nesse meio tempo ele tinha comido um guarda na faca, pois era revólver na canhota e peixeira na direita, um relâmpago de homem, estava na sua frente, atrás de você, por todos os lados, igual a um corisco. Mas eu queria fechar ele, por uma questão de moral, pois tinha ouvido dizer que ele tinha dito que eu não era de nada. Aí parti pro homem, ele me enfrentando, os olhos luziam iguais aos de um tigre, a boca escumava. Aí ele me passou uma rasteira (o guarda no 1, sempre meio caçoísta, desvia como se a rasteira tivesse sido dada nele) pra depois se servir com a faca, e aí…

                                  Entra o comissário, apressado, seguido pelo repórter policial. Faz um aceno rápido aos dois investigadores e vai para a sua mesa, cercada por um engradado de madeira. Ao ver o escrivão no seu posto, cabeceando sobre o livro de assentamentos, dá um murro em sua mesa que faz o outro dar um pulo. Sobressaltado, o escrivão se levanta aflito, vindo das profundezas do seu sono.

COMISSÁRIO
Eu estou ficando com a impressão de que você está precisando de um distrito bem longe e bem movimentado, que é pra você se curar desse sono que você tem... Não será não?

ESCRIVÃO (meio dormindo)
Desculpe, seu comissário, mas é que eu passei a noite em claro, a patroa com uma dor nos quartos, e esse calor que não deixa a gente dormir, eu peço desculpas…

COMISSÁRIO
Tá bom, tá bom. (dirigindo-se ao repórter, que sentou-se a seu lado) Pessoal de morte. (ao guarda no 2, que chegou à porta) Olhe aí, menino, vai aí no café em frente e traz uma cerveja bem gelada, estupidamente, e dois sanduíches de mortadela. Diz que é pra mim, senão eles põem mortedele em vez de mortadela. (ri contente com sua própria piada; o repórter passa devagar a mão no rosto, olhando para o público, como para exprimir sua paciência e caceteação) Esta não está má, esta não está má... (dirigindo-se ao repórter) Você sabia que eu sou formado em direito? Um dia você precisa botar isso numa reportagem. Sim, senhor, bacharel em direito. Legal, não? (o repórter concorda com ar vago) Ah, bons tempos!

REPÓRTER (para dizer alguma coisa)
Mas você nunca praticou, né?

COMISSÁRIO
Não sei, não me senti bem no meio. A polícia tem um caráter de aventura, mais coragem pessoal. Calha melhor com o meu temperamento. Eu já te contei o nosso trote, quando eu entrei para a faculdade? (o repórter faz que não) Ah, menino… Imagina você que nesse ano estava fazendo o vestibular, nem sei como, o famoso Ataualpa da Lili, um valente famoso, com dois ou três crimes de morte nas costas mas que se safava sempre porque era filho de gente do governo. Nós éramos cerca de trezentos calouros, e havia mais de quinhentos veteranos esperando pela gente fora dos portões da escola. Já tinham passado arame nas grades e tudo, mas o Ataualpa — ô cara de morte! — foi de calouro em calouro, durante a prova de direito romano, e convenceu um por um que devíamos reagir. Saímos todos em bloco, e o Ataualpa ele próprio, com um alicate, foi cortando os arames, e a calourada já ia escalando os portões, e o resto empurrando, e vai não vai, e vai não vai, e aí foi mesmo — e lá fora o pau comeu. Uma briga de trezentos contra quinhentos, você sabe lá o que é isso? O Ataualpa, puxa! brigava com uns quinze ao mesmo tempo. Eu fiquei com a cara deste tamanho. Mas em compensação, não tomamos trote. Parece que foi a única turma da faculdade que escapou. O Ataualpa... Seis meses depois morria assassinado da maneira mais besta, por um garçom de uma leiteria que ficava ali na antiga Galeria Cruzeiro. O leite parece que não estava lá muito cristão, e ele obrigou o menino — um garoto de dezoito anos — a tomar o litro inteiro, depois de dar-lhe um par de bolachas. Resultado: o garoto tomou o leite, disfarçou, foi lá dentro, se armou de uma faca e espetou o Ataualpa por trás, no pescoço. Carótida. Carótida é fogo. Fo-go!

REPÓRTER (dirigindo-se ao investigador no 1)
Eh, Canhoto. Alguma novidade?

INVESTIGADOR NO 1
Mesérias. Durante o meu plantão um cara veio pedir garantias de vida contra um oficial que disse que ia fechar ele porque o tal tinha dado uma corrida no filho do outro. Depois, no plantão da tarde, esteve aí uma mulher para dar queixa contra o marido dela. (faz o gesto de bater)

REPÓRTER
Esteve aí o homem que procura a sua Rosa?

COMISSÁRIO
Ah, o caso da Central do Brasil... Parece que está dando uma certa onda de imprensa, não? Tudo quanto é mulher me pergunta sobre esse negócio. Ontem na boate foi um caso sério. Eu até estou precisando me inteirar, porque as moças todas estão excitadíssimas. Veja você…

REPÓRTER
É. O caso tem um lado gaiato. É, pelo menos, incomum, e tem um elemento... poético qualquer. O rapaz parece que anda correndo todos os distritos e fazendo uma onda danada.

INVESTIGADOR NO 2
Como é a história?

REPÓRTER
Um negócio gozado. O cara estava de braço com a noiva, na estação da Central do Brasil, às vésperas de se casarem, ambos muito felizes da vida, e de repente, quando o sujeito dá por si, a menina tinha desaparecido, uma moça chamada Rosa. E nunca mais ninguém pôs os olhos em cima dela. Ele bateu tudo, foi a todos os distritos, moveu céus e terras, e nada. Parece que as buscas estão começando a se estender inclusive a outros estados.

INVESTIGADOR NO 2
Gozado. Aqui ele ainda não apareceu…

COMISSÁRIO
Isto cheira demais a vigarice. Com certeza a tal de Rosa estava cheia do cara, e fez a pista. (dirigindo-se ao investigador no 2) Não te parece? Ou então o cara é louco, deve estar simulando, querendo publicidade. Você não se lembra do caso da caixa-d’água? Seis caras se apresentaram declarando-se culpados. É um negócio de doido, essa mania de publicidade... Todo mundo só pensa nisso. A gente está vivendo um período em que não há outra coisa a fazer — o sujeito tem de aparecer, senão entra pelo cano. (dirigindo-se ao repórter) Você tome o meu caso, por exemplo. Eu, poxa, sou um bacharel. Um cara formado em direito. Estudei direito romano, direito constitucional, direito penal, direito administrativo, sei lá mais o quê. Quer dizer, não sou qualquer toco de vela. Pois bem: para chegar a este distrito, um dos melhores da cidade, não tive de recorrer à imprensa, ter minhas amizades nos jornais, meter umas boas becas, fazer um pouco de public relations, ir pras boates, pegar umas mulheres, até fazer samba eu já fiz! Não meti uma parceirada com um crioulo do Pasmado — o samba, eu reconheço, não é lá essas coisas... mas não está aí gravado? E por quê? Porque o filho do diretor da fábrica de disco gosta de agasalhar umas rolas, e eu já safei a onça dele duas vezes. Agora você me diga: como é que um cara pode viver a não ser na base do café-society, do toma lá dá cá, da autopromoção e toda essa coisa? Isto é: se o cara quiser viver uma vida decente, ter o seu apartamento, a sua hi-fi, a sua geladeira, o seu bom uísque, e pegar umas mulheres que não cheirem — poxa, a cebola, a trabalho... É ou não é? Você me diga: eu tenho ou não tenho razão?

REPÓRTER (aparentando uma cara caceteadíssima)
É, você tem toda a razão.

COMISSÁRIO
Claro! Agora você me diga: como é que um cara pode acreditar que um outro cara perca a noiva na estação da Central do Brasil, e ela desapareça, e o sujeito fique procurando ela mesmo no duro porque gosta dela? Ninguém gosta de ninguém. Eu sempre digo isso à patroa lá em casa, que você conhece, é aquela Amélia, aquela mulher-batata... Imagina se Isaura ia fazer um papel desses, desaparecer assim no fog de Londres... Claro que ela tem de estar enfurnada em algum canto com algum cafifa, já devia estar tudo combinado, então o papai aqui não sabe... Ou então esse cara da tal de Rosa está querendo publicidade. Não tem conversa... Isso é mais um bolha que anda por aí. E depois, poxa! Central do Brasil... Isso deve ser mulher de subúrbio... Qual a graça que tem? Eu não vejo... Imagina você, você nessas boates, com essas mulheres cheirando bem, cheirando lindo, e vem um bolha desses com essa conversa de que perdeu a sua Rosa na estação da Central... Deixa isso pra lá!

                                  Neste momento soa imperiosamente o sinal do dictafone. O comissário se assusta e abre a conexão, dizendo para os outros, em voz mais baixa:

COMISSÁRIO
O homem está aí…

VOZ DO DELEGADO
Boa noite, comissário. Alguma novidade?

COMISSÁRIO
Bom dia, doutor. Nada, nada. Tarde calma. Depois do plantão do dia, só houve uma mulher que veio dar queixa de que o marido bateu nela.

VOZ DO DELEGADO
A queixa foi registrada?

COMISSÁRIO
Não, doutor. (pisca o olho para o investigador no 1) Achei desnecessário, em vista de ela dizer que é um hábito do marido, e que ela não quer se separar dele... Um caso de rotina.

VOZ DO DELEGADO
O senhor chama de rotina o fato de um ser mais forte espancar outro mais fraco?

COMISSÁRIO (gaguejante)
Bom, não é bem isso, doutor... É que o senhor sabe: marido bate em mulher. Se a gente fosse atender...

VOZ DO DELEGADO
O senhor fez muito mal em não registrar a queixa. Da próxima vez, faça-o, e mande um dos homens assustar o culpado. Assim ele pensará duas vezes antes de bater novamente em sua mulher. O senhor não acha que é um ato covarde bater numa mulher?

COMISSÁRIO
Bem, achar eu acho. Mas acontece que há umas que gostam…

VOZ DO DELEGADO
Isso não tem nada a ver com o assunto, comissário. O senhor não vai justificar o crime só porque ele existe. Pelo menos enquanto eu estiver à testa desta delegacia. O senhor compreendeu? O exercício da autoridade não exime ninguém de espírito de compreensão, humanidade e cortesia.

COMISSÁRIO
Compreendi doutor…

VOZ DO DELEGADO
A moça da curra esteve aí?

COMISSÁRIO
Passou pela porta cantando aquele troço da Rosa que ela canta todo dia. Desculpe aqui, hein, doutor — mas o senhor não acha que essa mulher já está enchendo?

VOZ DO DELEGADO
Ela volta, quando lhe der fome. Mande o 177 dar-lhe um pouco de leite e uns sanduíches, quando ela aparecer. Ele pode mandar apanhar aí no café em frente. Na minha conta.

                                 A ligação é interrompida. O comissário deixa-se um momento no ar, depois balança a cabeça.

COMISSÁRIO (entre dentes, furioso)
Essa não... Essa não…

REPÓRTER
Qual é a bossa?

COMISSÁRIO (perplexo)
Esse cara... Eu não entendo esse cara. Ele está me deixando louco. Veja você: isso aqui é uma delegacia de polícia. É ou não é? Ou será que eu estou enganado? É possível que esteja virando boate, ou uma agência da Liga em prol da Moralidade, ou sei lá o quê. Você manja? Eu não manjo. Que é que esse cara quer? Qual é a novidade? Bossa nova? Mania de ser original? Então por que é que não sai e não vai ser padre ou um troço qualquer assim? Eu não sei. NÃO SEI MESMO! Mas não é? Agora me veja você: o 177 de ama-seca da louca da curra. Hein, ô 177? Que é que você me diz, você de ama-seca da louca da curra, levando ela no café pra ela tomar leitinho? Que é que você me diz, hein, ô 177? Que é que a turma aí no café acha, hein, ô 177? Devem te gozar um bocado, hein, ô 177? (ri perversamente, mas a mão contraída sobre a testa não esconde sua raiva impotente e para disfarçar ele mexe nuns papéis sobre a mesa e abre umas gavetas como para dar-se um ar de importância e trabalho. O repórter assovia suavemente um samba, olhando-o com um ar cínico)

REPÓRTER
Deixa o homem pra lá. Cada louco com a sua mania.

                                 Tocam o telefone. O comissário atende. Dentro uma das presas canta o final do samba “Volta”.

COMISSÁRIO (ao repórter)
Para você…

REPÓRTER (tomando o telefone)
Alô? (com alegria na voz) Olá, há quanto tempo! Eu? Não, você deve estar enganada. Sempre aqui, minha filha, a estas horas, e depois, à hora de sempre, de madrugada. O quê? (ri gostosamente) Não, impressão tua... (pausa) Pode ser, pode ser... Mas só depois das duas; até lá é pedreira, minha filha, não há nada a fazer. (pausa grande) Tenho. Uma meia garrafinha, dá para a partida. Se faltar, manda-se buscar embaixo, não há de ser nada. (ri novamente) Assim é que eu gosto, com essas boas disposições... (o samba “Volta” para) E o Albertinho? (pausa grande) Não me diga! (dá uma gostosa gargalhada) Eu disse a você, você não quis me escutar... Não pode, minha filha, um sujeito que come mortadela não pode... (olha de soslaio para o comissário) Não é para uma moça fina feito você; tão fina que chegou a desaparecer três meses... Você acha isso direito? E esse pobre repórter sofredor aqui, penando suas mágoas por essa Copacabana tão vazia de mulheres e de crimes? Uma tristeza!... Mas não há de ser nada... Hoje daremos uma volta... O quê? Não, o melhor é você ir diretamente para lá, a chave continua no mesmo lugar. É, você se serve um uisquinho, põe um disco na vitrola, se quiser pode tirar uma torinha enquanto seu lobo não vem. Eu estarei chegando, eu estarei chegando... Não se impaciente... O quê? (a partir deste momento ouve-se fora a canção da louca da curra) NÃO ME DIGA! Em São Paulo? Poxa, menina... Que horror... Você lembra aquela noite na boate, em que ela disse que ia se matar?... Que coisa, hein?... Coitada! Não era má mulher não, embora fosse burra, coitadinha. E chata, hein? Quando bebia ficava o fim... que Deus a tenha. Essa pelo menos não chateia mais ninguém, a coitada... Tá bom, neguinha. Aí por volta das duas e meia. Até.

                                 Desliga e fica pensando. O comissário, que prestara ouvido a toda a conversa, toca-o curioso, com o dedo.

COMISSÁRIO
Más notícias?

REPÓRTER (meio alheio)
É. Uma mulher que foi amante minha em São Paulo, o ano passado... (faz um gesto característico) Desligou.

COMISSÁRIO (de modo ausente)
Troço chato, hein?

REPÓRTER
É. Só que com um detalhe horrível. A Carminha, essa aí do telefone, estava me contando. A mulher, depois de tomar um vidro de sonífero, enfiou uma meia de náilon na cabeça para ter a certeza de que não vomitaria de volta a sua própria morte.

COMISSÁRIO (com ar entendido)
E pra se sufocar também! Essa bossa eu manjo. Essa queria morrer. Taí: uma cara assim eu admiro. Não é feito essas vigaristas que tomam remédio pra dormir já com a mão no telefone, ou então cortam o pulso na hora em que ouvem alguém entrando. Essa não... (pausa) Mas que foi? Negócio de homem?

                                 O repórter olha-o com uma cara positivamente de nojo.

REPÓRTER (com entono, depois maquinalmente)
Negócio de muito homem. Muito homem e muito álcool. Menina de gente humilde que quis subir. No fim não podia mais ficar sozinha em casa. Eu já peguei ela nessa batida. Trezentos mil homens, quatrocentas mil boates. Depois, cocaína, surubas, essa coisa... Depois…

COMISSÁRIO
É.

                                 A louca da curra para a canção e entra na delegacia.

COMISSÁRIO
Já está ela aí, manja só…

REPÓRTER (constatando)
Pobre mulher…

COMISSÁRIO
Poxa, mas podia ir cantar em outra freguesia... (dirigindo-se à louca) Que é que há, minha filha?

LOUCA (maquinalmente)
Estou com fome.

COMISSÁRIO (fazendo-se de interessante)
Não diga! Onde é que eu já ouvi essa antes?

LOUCA
Estou com fome. Era de tarde, mas ninguém viu, só eu. Eu e Nossa Senhora. Ele caiu assim e ficou me olhando, parecia um menino, tinha uns olhos azuis cheios de lágrimas, depois gritava, gritava. Estou com fome.

COMISSÁRIO
Ô 177!

GUARDA NO 1
Seu comissário...

COMISSÁRIO
Tá na hora de você entrar nas suas funções de ama-seca.

GUARDA NO 1 (com a voz feliz)
Pode deixar que eu levo ela, seu comissário. Sabe, ela é boazinha, fica só cantando…

COMISSÁRIO
É. O delegado mandou dar leite a ela, e uns sanduíches. Tudo como sempre, na conta dele.

GUARDA NO 1
Pode deixar que eu me encarrego, seu comissário.

COMISSÁRIO
Depois vê se encaminha ela pra direção contrária à do distrito. Me faz esse favor…

GUARDA NO 1
Não adianta, seu comissário. Ela volta…

COMISSÁRIO
Então vê se amarra uma pedra no pescoço e atira ela no mar, joga ela debaixo de um bonde, faz qualquer negócio…

GUARDA NO 1
Eu, hein, seu comissário?

COMISSÁRIO
É, você mesmo, ó cabeça de bagre.

GUARDA NO 1
O senhor tem cada uma, doutor…

                                 Pega docemente a louca pelo braço e sai com ela, com a maior delicadeza. Do lado de fora a mulher recomeça a cantar e seu canto vai se perdendo ao longe. O ambiente da delegacia é de quase penumbra, e ninguém parece dar por isso. Há qualquer coisa como um clima de desespero em tudo. Ao cessar ao longe o canto da louca, entra um rapaz. Está humildemente trajado, mas de gravata. Traz a barba por fazer.

INVESTIGADOR NO 1
Que é que há?

RAPAZ
Estou procurando minha noiva que desapareceu.

INVESTIGADOR NO 1
Ah, você é o tal que anda procurando a sua Rosa... Custou a dar por aqui, hein?... (dirigindo-se ao comissário, entretido em conversar baixo com o repórter, que passa os olhos num vespertino qualquer, sem lhe dar muita atenção) Eh, comissário! Chegou o nosso dia. Tá aí o cara que procura a sua Rosa.

COMISSÁRIO (erguendo rapidamente a cabeça)
Ah, sei... (dirigindo-se cortesmente ao rapaz) Chegue aqui, meu amigo... (dirigindo-se ao repórter) Isso é um bom caso, está dando o que falar na imprensa. Os comentaristas da Zona Norte têm dado várias notas, você tem visto? (novamente ao rapaz) O que é que há, meu amigo?

RAPAZ (infantilmente)
Estou procurando minha noiva que desapareceu do meu braço, na estação da Central do Brasil. Nunca mais ninguém soube dela. (baixa a cabeça e começa a chorar mansamente)

COMISSÁRIO (ligeiramente perturbado)
Que é isso, meu amigo... Onde é que já se viu um homem chorar?... Eu já ouvi falar de sua história... Vamos, chegue-se mais para cá! (o rapaz aproxima-se, tira um lenço do bolso e se assoa profusamente, enxugando depois os olhos) Conte tudo como é que se passou.

RAPAZ
Eu não sei. Nós chegamos do interior, porque nós fugimos, o senhor sabe, para vir casar aqui no Rio, porque lá na roça tudo era tão difícil, e o pai e a mãe de Rosa não queriam porque eu estava desempregado, mas nós viemos, porque eu tenho uma tia muito boa que mora no Encantado e que podia tomar conta da Rosa até eu arranjar um emprego, porque nós queríamos fazer tudo como Deus manda, eu nunca tinha tocado na minha Rosa, o senhor compreende... (recomeça a chorar de manso) Mas aí eu arranjei um empreguinho como prático de farmácia, e tudo começou a nos sorrir, e minha Rosa estava tão feliz, e a tia também, e eu também, e já estava até tirando os papéis, quando nesse dia a Rosa quis ir ao Jardim Zoológico, maldito dia, e nós estávamos na estação, o senhor compreende, esperando o trem, e aí saltou aquele povaréu bem em cima de nós, e eu senti que a minha Rosa não segurava mais o meu braço e aí o trem partiu, e eu fiquei procurando a minha Rosa para lá e para cá no meio daquele mundo de gente, depois a estação ficou vazia e nada da minha Rosa, ela tinha se perdido de mim, a minha Rosa, feito uma coisa que desaparece, assim sem explicação, e eu não entendo por que a minha Rosa e eu, nós íamos nos casar dali a uma semana, e ela estava feliz como um passarinho, e eu já tinha levado ela na minha farmácia, e o farmacêutico, um homem muito bom o farmacêutico, falou com ela e tudo que se eu fosse bom rapaz e aplicado, que eu ia longe, porque ele estava muito contente comigo, e ali é zona de muito doente, muita gente pobre precisando de remédio, e eu já estava começando a dar injeção e tudo, e minha Rosa estava tão contente que vivia cantando, e a tia e ela cosiam o tempo todo, porque o farmacêutico já tinha me dado um adiantamento que era para o enxoval, e ela comprou um véu bonito e tudo, e a tia já estava mandando até pintar o nosso quartinho porque eu disse à tia que pagava o aluguel direitinho, que é para não dever favor, apesar da tia ser tão boa, porque a tia adorava a minha Rosa e eu até já tinha prometido à tia que quando eu tivesse mais um dinheirinho eu pagava uma viagem a ela para ela ir lá na roça explicar tudo ao pai e à mãe, que é para eles nos darem a bênção e perdoar de a gente ter fugido, mas agora a minha Rosa desapareceu, e eu já fui a quase todos os distritos e ninguém acha ela, ninguém acha a minha Rosa, onde andará minha Rosa que não conhece ninguém e é tão fraquinha e tem medo de tudo... (seu pranto faz-se mais forte e ele oculta a cabeça nas mãos para chorar)

COMISSÁRIO (ligeiramente comovido)
Eh, rapaz, para com isso, seu. Que negócio é esse? Você é um homem ou não é? Fica firme que nós vamos encontrar a sua Rosa.

                                 Entra o guarda no 2 com uma negra bêbada pelo braço.

GUARDA NO 2
Seu comissário. A Luzia de novo...

COMISSÁRIO
Mas essa negra sem-vergonha não para de chat... (lembra-se de repente da recomendação do delegado, levanta-se, vai até a mulher, caindo de bêbada, pega uma cadeira, e com a maior cortesia fá-la sentar-se)

COMISSÁRIO
Ó, mas que prazer em vê-la, minha senhora! Sente-se, por favor. O que deseja tomar, um uisquezinho? Ou quem sabe prefere um (caprichando a dicção) crème de menthe? Há quanto tempo não tinha o prazer de vê-la! Já dois dias... Mas a senhora precisa aparecer com mais frequência, madame. (o repórter começa a rir gostosamente) Não se acanhe…

MULHER (sem compreender)
Eu, hein... Eu, hein…

COMISSÁRIO
Teremos sempre o maior prazer em servi-la. Agora, se a senhora me permite, eu vou mandá-la descansar um pouquinho, só até amanhã pela manhã, pois não, que é para a senhora se livrar dos vapores etílicos que lhe embriagam a brilhante inteligência. Quer dar-me o prazer de acompanhar aqui este distinto membro da nossa força policial até o seu apartamento? E se precisar de alguma coisa, não deixe de tocar a campainha, por favor, hein? Qualquer coisa... Um chazinho... O que desejar...

                                  Ela vai sendo conduzida até o xadrez.

REPÓRTER (ao comissário)
Posso fazer umas perguntas a ele?

COMISSÁRIO (confidencialmente ao repórter)
Vai em frente. Taí: isso é um bom assunto para você. Você pode mesmo dizer que nós vamos envidar todos os nossos esforços para encontrar a Rosa do rapaz, que o comissário está pessoalmente interessado no caso pelo seu lado... humano, você compreende. Você melhor que ninguém pode fazer disso uma grande reportagem, seu!

REPÓRTER (sem dar muita atenção ao comissário, dirigindo-se bem íntimo ao rapaz e procurando esconder a emoção)
Ouça aqui, meu amigo. Eu gostaria de fazer-lhe algumas perguntas. Eu sou repórter de um grande vespertino, você sabe, e se você prometer que responde a tudo o que eu lhe perguntar, eu lhe garanto que vou dar uma grande cobertura ao seu caso, e nós vamos fazer tudo para encontrar a sua Rosa, você está compreendendo?

                                  O rapaz, o rosto metido entre as mãos, faz que sim.

REPÓRTER
Agora me diga uma coisa: que dia foi e que horas eram?

RAPAZ
Era um sábado, e deviam ser umas três da tarde, mais ou menos, na estação da Central do Brasil.

REPÓRTER
A sua Rosa estava segurando você pelo braço?

RAPAZ
Estava sim, senhor. A Rosa estava sempre segurando no meu braço, o senhor sabe... Ela nunca me largava, tinha medo de tudo, ainda mais assim quando a gente saía, porque nós somos lá da roça, o senhor sabe, e a minha Rosa era a primeira vez que ela saía comigo assim para vir à cidade, ela ficava sempre em casa com a tia, as duas costurando e ouvindo rádio…

REPÓRTER
E aí o trem chegou. Vocês estavam muito perto da beira da plataforma, ali onde o trem para?

RAPAZ
Estávamos sim, senhor. Eu me lembro que a porta abriu e saiu aquele povaréu assim, despejado em cima de nós. Aí eu senti que a mão da minha Rosa tinha largado do meu braço e procurei ela em volta, mas tinha tanta gente saindo e outras entrando que eu não vi mais ela, e então eu comecei a andar procurando ela, mas nada. De repente o trem saiu e eu só vi ele indo embora, e a estação ficou vazia, só comigo e mais um empregado da estação. Eu corri para ele e perguntei, mas aí ele me disse que ele lá ia saber onde é que estava a minha Rosa, e saiu andando assim. Aí eu fui ao distrito e o comissário me disse que a minha Rosa devia ter entrado no trem, com certeza naquela enxurrada de gente, mas eu fui ao chefe da estação e perguntei e fui ao jornal e disse tudo, e estou correndo todos os distritos para ver se acho a minha Rosa e ninguém acha.

REPÓRTER
Você deu a descrição dela em todos os distritos e jornais? Quer dizer: como ela é?

RAPAZ
Dei, sim, senhor. Disse que ela é assim (faz um gesto tímido) meio pequenina, e tem um cabelo preto e solto assim, que vem até aqui. (faz o gesto) Ela estava com um vestido amarelo com florzinha verde e um colar branco, que eu dei a ela, até comprei de um camelô em Mariano Procópio. Ela estava de sapatinho branco e com uma bolsa da mesma cor, tudo eu que dei a ela. (com os olhos fixos no vácuo) Ela era bonita, a minha Rosa.

REPÓRTER
E você não soube mais absolutamente dela? Ninguém lhe telefonou nem nada?

RAPAZ
Telefonou sim, senhor. Aliás telefonaram duas pessoas lá para a venda do seu Armando, sabe, perto da casa da tia. Eu fico lá a manhã toda, porque eu dei o telefone de lá para os jornais e também na polícia, e aí anteontem telefonou uma mulher para dizer que eu não desesperasse porque ela tinha feito uma promessa para santa Luzia que se eu encontrasse a minha Rosa ela mandava rezar uma missa e até me deixou o telefone dela para eu avisar, uma senhora muito boa. E ontem telefonou um homem para me dizer que tinha visto a minha Rosa pegando homem em Copacabana, aí eu xinguei ele no telefone, porque a minha Rosa não merece que se diga isso dela.

COMISSÁRIO (meio enciumado do repórter)
E você disse que nunca tinha tocado nela... Você está mentindo, rapaz. Então vocês fogem juntos, metem o pé no mundo e você vem dizer pra mim que a sua Rosa era virgem, rapaz…

RAPAZ
Eu juro pela Mãe Santíssima que está no céu, quero que minha língua caia de podre e meus olhos não possam mais ver a minha Rosa se eu toquei nela com segunda intenção! O senhor não compreende?... Nós íamos casar direitinho como Deus quer. Ela gostava de mim e eu dela…

COMISSÁRIO
É. Eu sei como são essas coisas, vocês são todos muito inocentes…

REPÓRTER (interrompendo-o)
Deixa isso pra lá... O rapaz está dizendo a verdade, você não vê? Você quer ou não quer uma boa cobertura desse troço?

COMISSÁRIO (ressabiado)
Acho-te uma graça... Então você engole esse negócio?

REPÓRTER (meio agressivo)
Mas está na cara que o garoto está dizendo a verdade... Onde é que está teu curso de direito e tudo o que você aprendeu? Poxa!...

COMISSÁRIO (acovardando-se)
É, meu filho. Eu confio, desconfiando, você compreende? Desconfiando. Já tenho visto de tudo nesse mundo. De tudo!

REPÓRTER (sarcástico)
Menos gente direita... (para o rapaz) Escuta, filho, o negócio é o seguinte: você já deu todas as dicas a todo mundo, a polícia está avisada, os jornais também, e etc. e tal. Amanhã eu vou falar com amigos meus do rádio e da televisão, e nós vamos fazer uma onda danada até achar a sua Rosa. Tá?

RAPAZ (infantilmente)
Tá.

COMISSÁRIO (querendo estar na parada)
Pois é. Nós estamos aqui mesmo. Faremos tudo, você vai ver. Agora, meu filho, você vai ali naquele canto, lá onde está aquele moço, e dá o serviço todo pra ele, ouviu? Não precisa se assustar não, ele é escrivão. Você diz tudo a ele como foi, que é só pra ele ir escrevendo. Tá?

RAPAZ (mais animado)
Tá. (dirige-se para a mesa do escrivão, ao fundo, ficando de costas para a assistência. Entra a louca da curra, pelo braço do soldado)

GUARDA NO 1
Tá pronto, seu comissário. A moça já tomou o leite dela e comeu dois sanduíches de presunto. Agora disse que queria falar com o moço bom. (aponta com o dedo para dentro)

COMISSÁRIO (irônico)
Ah, ela quer falar com o moço bom, não é? Ótimo. Vamos chutar ela pra ele. (aperta o botão do dictafone) Doutor, a louca da curra está aqui querendo falar com o senhor.

VOZ DO DELEGADO
Peça ao 177 que traga ela aqui. Alguma novidade?

COMISSÁRIO
Só o rapaz que perdeu a Rosa, o senhor sabe, aquele caso lá da Central do Brasil, é que está aqui, depois de ter corrido quase todos os distritos. Está agora com o escrivão.

VOZ DO DELEGADO
Ele deu a descrição da moça?

COMISSÁRIO
Deu sim, senhor.

VOZ DO DELEGADO
Faça passar imediatamente à Torre Central.

COMISSÁRIO
Perfeitamente. Alguma coisa mais?

VOZ DO DELEGADO
Nada. Ficarei aqui até as oito, depois irei jantar em casa. Qualquer coisa, o senhor ligue para lá.

COMISSÁRIO
Ô 177. Leva a moça aí até o gabinete do delegado.

                                 O guarda pega a moça pelo braço e encaminha-a, de tal modo que ela passa pelo rapaz depondo justo no momento em que este se volta e dirige-se novamente para a mesa do comissário.

RAPAZ
Pronto, seu comissário.

COMISSÁRIO
Está bem, meu amigo, agora você pode ir. Qualquer coisa nós lhe avisaremos.

RAPAZ
Será que o senhor me deixava ficar aqui, um pouquinho, pra ver se a minha Rosa aparece?

COMISSÁRIO
Pode. Senta aí, meu filho.

                                 O rapaz vai e senta-se, como ordenado, num banco. A atmosfera cai em ponto morto. O comissário boceja. Depois de alguns segundos, liga o rádio. Um samba qualquer de sucesso finaliza, e entra a “Barcarola”, de João Gilberto.

REPÓRTER
Aquela tua com a negra Luzia não estava má... Mas imagina se o bom samaritano lá dentro te pega numa dessas, dando um gozo nele... Pensa só que fria...

COMISSÁRIO (com bazófia)
Se pegar, azar dele. Eu não vou dar cartaz pra esse cara não. Veja só você... Agora, de padrinho dessa louca... Não duvido nada que esteja acabando de dar o serviço nela lá dentro, terminando o que os outros começaram. Eu, de moralistas assim, espero tudo. Tu-do. Esse cara é um hipócrita, não paga dez.

REPÓRTER
Olha essa língua…

COMISSÁRIO
Deixa ele comigo... E não sou só eu não. O pessoal todo tá cheio dele. Deixa a política mudar um pouco, que ele vai ver uma coisa comigo. Só sabe dar ordem. Eu não sei não. Um dia ainda pego esse cara.

                                 O rapaz da Rosa, que adormecera no banco, estremece um pouco a uma guinada que dá com a cabeça.

REPÓRTER
Coitado desse garoto…

                                 O telefone toca. O comissário atende.

COMISSÁRIO
Alô! Distrito policial. Como?! No Morte Lenta? Tá bom! Tá bom! (desliga, dirige-se ao investigador no 1) Vamos já, Canhoto. Reúne a turma e vamos pro Morte Lenta. Diz que é o pessoal da lambreta. O pau tá comendo! Enfim, qualquer coisa.

INVESTIGADOR NO 1
Oba!

                                  Partem os dois afobados. Entra a louca da curra com o 177. Ela olha para o rapaz que está dormindo, tem um estremecimento e começa a cantar baixinho.

LOUCA (a voz bem trêmula, como choramingando)
Silêncio, silêncio
Que melancolia…

                                 O comissário segura a louca e leva-a em direção às celas. Ao ouvir a voz da louca, as outras presas retomam a balada, mas agora em ritmo de samba, e fazendo uma grande algazarra.

PRESAS (em batida de samba e acompanhando-se com tudo o que houver para fazer barulho)
Perdeu-se uma Rosa
De dia, de dia…

                                 O comissário volta à cena, deixa-se estar, um momento, depois tapa os ouvidos com as mãos.

COMISSÁRIO (esmurrando violentamente a mesa, grita, quase no tom da balada)
Silêncio! Silêncio!

 

CAI O PANO INSTANTANEAMENTE