Crônicas de Cinema
LUZES DA CIDADE (III) (O GRANDE AMOROSO)
Vós, cidadãos homens, representantes de um mundo a que governais e de uma civilização a que destes forma; homens de todas as classes e profissões, que fazeis governos e os derrubais, que criais culturas e as deitais por terra, que fabricais guerras e morreis nelas, que vindes crescendo e vos aprimorando — ser heroico a perseguir a lua desde a treva das origens; vós, homens do tempo, criaturas solitárias incapazes de solidão, donos da criação e escravos de vós mesmos; vós, inventadores do tédio e do ressentimento, portadores da verdade e da mentira absolutas, perseguidos da tristeza, da alegria precária e efêmera, sempre contingenciados pelo vosso limite a que, no entanto, não aceitais...
Vós que sufocais a mulher, que a mantendes com pulso de ferro no nível que gostais de chamar “a sua inferioridade física e intelectual”; vós que amais a mulher nas suas algemas, porque temeis a sua liberdade para amar; vós, que, porque temeis a realidade da mulher, a desprezais e maltratais, e porque a desprezais recebeis em paga o artifício e a traição…
Vós, homens que não sabeis mais amar — ide ver amar Carlitos. É tal a sua devoção pela mulher amada que decerto isso vos tocará o coração. Seu abandono ao encanto da presença amada é tão grande que, estou seguro, isso vos envergonhará da vossa reserva. Seu préstimo é tão válido sempre que se trata de proteger a mulher amada, que, não há dúvida, isso vos fará sentir pequenos em vossa indiferença e egoísmo.
Carlitos ama a mulher amada desde que a vê, e quando nota que ela não pode vê-lo, na escuridão de sua cegueira sem amargura, não a ama melhor porque seu amor tem um fundo de bondade. Carlitos a ama porque ela é uma mulher, um ser genuíno e belo, e talvez um pouco porque ela o cria, em sua treva, à imagem do que ele gostaria de ser. Ele vem, pé ante pé, sentar-se ao seu lado, e se perde em sua contemplação até que ela o acorde com um jato d’água na cara, provindo do vaso que lava. Seu amor é feito de sonho, sim; mas nunca perde contato com o real. A realidade está sempre presente para humanizar a exaltação e o sonho. Ele lhe compra flores com o último níquel que possui, leva-lhe presentes capazes de lhe minorar a necessidade — um pato depenado, umas frutas, uma couve-flor: mas não deixará tampouco que a realidade retire à vida o seu elemento de poesia — colocará a couve-flor à lapela, num gesto que revela não só o seu sentimento de elegância como o seu profundo senso de humor e a sua imensurável bondade. Ele procura distrair sempre a mulher amada da solidão em que a mergulha a sua cegueira. Ser fragílimo, vai lutar box para poder pagar-lhe o aluguel vencido, e o faz com um medo que é a maior coragem do mundo. Arrosta conscientemente a prisão para que ela possa ser operada dos olhos — e nos apresenta, ao sair do cárcere, uma imagem de si mesmo que é a própria estátua da miséria e do desconsolo.
No final, ao reencontrá-la já curada, dona de uma pequena loja de flores no eterno canto de rua do filme, passa pelo vexame de ser humilhado e ofendido à vista da mulher amada por uns garotos jornaleiros que sempre o perseguem. E quando a vê, seu olhar traduz uma tal ternura que aquilo toca o coração da jovem, e ela lhe oferece uma moeda e uma flor.
Ele aceita, de longe, com medo de tocar a mulher amada, a flor que ela lhe estende. Mas ao depositar-lhe a moeda na mão, ela o reconhece pelo tato. “É você?...”, diz ela no auge da piedade e sofrimento de quem vê todo o seu sonho de Cinderela ruir por terra.
O olhar final que Carlitos lhe dá — de amor, temor, esperança e humildade totais — não é apenas um dos maiores momentos da arte de todos os tempos: é também uma mensagem, de que a vida não termina ali, de que ela segue sempre seu doloroso curso, com o sonho e a realidade eternamente abraçados, a aumentar a perplexidade dos homens e a desafiá-los a descobrir a verdadeira fórmula da vida.
Última Hora, 6 de dezembro de 1951
LUZES DA CIDADE (III) (O GRANDE AMOROSO)
Vós, cidadãos homens, representantes de um mundo a que governais e de uma civilização a que destes forma; homens de todas as classes e profissões, que fazeis governos e os derrubais, que criais culturas e as deitais por terra, que fabricais guerras e morreis nelas, que vindes crescendo e vos aprimorando — ser heroico a perseguir a lua desde a treva das origens; vós, homens do tempo, criaturas solitárias incapazes de solidão, donos da criação e escravos de vós mesmos; vós, inventadores do tédio e do ressentimento, portadores da verdade e da mentira absolutas, perseguidos da tristeza, da alegria precária e efêmera, sempre contingenciados pelo vosso limite a que, no entanto, não aceitais...
Vós que sufocais a mulher, que a mantendes com pulso de ferro no nível que gostais de chamar “a sua inferioridade física e intelectual”; vós que amais a mulher nas suas algemas, porque temeis a sua liberdade para amar; vós, que, porque temeis a realidade da mulher, a desprezais e maltratais, e porque a desprezais recebeis em paga o artifício e a traição…
Vós, homens que não sabeis mais amar — ide ver amar Carlitos. É tal a sua devoção pela mulher amada que decerto isso vos tocará o coração. Seu abandono ao encanto da presença amada é tão grande que, estou seguro, isso vos envergonhará da vossa reserva. Seu préstimo é tão válido sempre que se trata de proteger a mulher amada, que, não há dúvida, isso vos fará sentir pequenos em vossa indiferença e egoísmo.
Carlitos ama a mulher amada desde que a vê, e quando nota que ela não pode vê-lo, na escuridão de sua cegueira sem amargura, não a ama melhor porque seu amor tem um fundo de bondade. Carlitos a ama porque ela é uma mulher, um ser genuíno e belo, e talvez um pouco porque ela o cria, em sua treva, à imagem do que ele gostaria de ser. Ele vem, pé ante pé, sentar-se ao seu lado, e se perde em sua contemplação até que ela o acorde com um jato d’água na cara, provindo do vaso que lava. Seu amor é feito de sonho, sim; mas nunca perde contato com o real. A realidade está sempre presente para humanizar a exaltação e o sonho. Ele lhe compra flores com o último níquel que possui, leva-lhe presentes capazes de lhe minorar a necessidade — um pato depenado, umas frutas, uma couve-flor: mas não deixará tampouco que a realidade retire à vida o seu elemento de poesia — colocará a couve-flor à lapela, num gesto que revela não só o seu sentimento de elegância como o seu profundo senso de humor e a sua imensurável bondade. Ele procura distrair sempre a mulher amada da solidão em que a mergulha a sua cegueira. Ser fragílimo, vai lutar box para poder pagar-lhe o aluguel vencido, e o faz com um medo que é a maior coragem do mundo. Arrosta conscientemente a prisão para que ela possa ser operada dos olhos — e nos apresenta, ao sair do cárcere, uma imagem de si mesmo que é a própria estátua da miséria e do desconsolo.
No final, ao reencontrá-la já curada, dona de uma pequena loja de flores no eterno canto de rua do filme, passa pelo vexame de ser humilhado e ofendido à vista da mulher amada por uns garotos jornaleiros que sempre o perseguem. E quando a vê, seu olhar traduz uma tal ternura que aquilo toca o coração da jovem, e ela lhe oferece uma moeda e uma flor.
Ele aceita, de longe, com medo de tocar a mulher amada, a flor que ela lhe estende. Mas ao depositar-lhe a moeda na mão, ela o reconhece pelo tato. “É você?...”, diz ela no auge da piedade e sofrimento de quem vê todo o seu sonho de Cinderela ruir por terra.
O olhar final que Carlitos lhe dá — de amor, temor, esperança e humildade totais — não é apenas um dos maiores momentos da arte de todos os tempos: é também uma mensagem, de que a vida não termina ali, de que ela segue sempre seu doloroso curso, com o sonho e a realidade eternamente abraçados, a aumentar a perplexidade dos homens e a desafiá-los a descobrir a verdadeira fórmula da vida.
Última Hora, 6 de dezembro de 1951