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Três filmes europeus

Filme , 1 de Agosto de1949

Os mais importantes documentos cinematográficos contra o fascismo foram os revelados pelo olho da câmara dos cinegrafistas em missão na Europa. Nada nunca se aproximará, em intensidade dramática, da imagem dos esquálidos cadáveres de Belsen, Dachau e Buchenwald, estendidos em perspectiva nas fossas comuns dos campos de concentração alemães. Não foi à toa que o tribunal de Nuremberg usou o cinema como uma de suas principais peças de acusação no processo da história. É impossível esquecer a figura daqueles luminosos corpos esqueléticos, remanescentes das câmaras de tortura; como é impossível esquecer a figura das mulheres tchecas e austríacas saudando de braço levantado o invasor brutal, o rosto lavado em lágrimas; ou aquele cidadão de Paris, desfigurado de dor, vendo desfilar as bandeiras francesas em retirada; ou aquela mãe chinesa berçando o filhinho morto depois do bombardeio de Xangai. 

Tais imagens são indeléveis. Um dos momentos mais altos do cinema está para mim numa cena que vi num noticiário cinematográfico americano. Aparecia de início o fabuloso estádio de Nuremberg, depois de conquistada a cidade. Tudo vazio, com o grande altar nazista ao fundo, encimado pela cruz gamada. A recomposição pela memória das grandes concentrações do partido era inelutável: o Führer caminhando lentamente entre as milícias a lhe subjugarem seus pavilhões. Mas de súbito vê-se aproximar, ao longe, um sargento americano, ladeado por dois soldados, tal como fazia Hitler; somente desta vez os três homens desaparecem no corpo do altar por algum tempo para ressurgir depois, refazendo o caminho com o mesmo ar grave e marcial. Próximo à câmera eles se voltam. E pouco mais tarde uma explosão sacode em pedaços o símbolo famigerado, e onde existia a cruz gamada restava apenas o espaço imaculado e livre. 

Isso é cinema, no seu mais alto sentido. Em questão de cinco minutos, o cinegrafista desenrolou aos olhos do público toda a pavorosa farsa do nazismo, a sua trágica pantomima, para culminar com o clímax vitorioso da explosão. Foi aquilo uma tremenda síntese da história, urna legítima peça de gênio, num momento raro da expressão humana; da mesma forma que é síntese magistral da natureza as sete palavras com que Raul Bopp narra o aparecimento da aurora no fecho do poema "Serapião", de seu novo livro Poesias, que me mandou de Zurique: 

Deus mandou acender fogo 
Céu incendiou-se 
Madrugada 



Città aperta: O cinema na mão de uns poucos privilegiados, pode às vezes aproximar-se de uma tal autenticidade. É o caso dos filmes que vou comentar aqui, os dois primeiros de caráter eminentemente político, o último sobre o psicológico, mas a que não falta uma incursão nos domínios sombrios da tirania patológica. 

Vi pela primeira vez Cidade aberta (Città aperta) em Nova York, onde já estava rodando há meses. Vi e fiquei para a segunda sessão. No espaço de duas semanas voltei ao cinema várias vezes mais. Em Hollywood fui vê-lo novamente. E confesso que o poderei rever o resto da minha vida, tal é a qualidade da sua mensagem e a simplicidade com que é enunciada. 

Em primeiro lugar, o filme de Roberto Rossellini, novo diretor italiano (com um ótimo roteiro musical de seu irmão Renzo Rossellini), cumpre a missão primordial de qualquer obra de arte que queira permanecer além do seu tempo: revelá-lo com a sua linguagem própria pelo uso dos seus mais sentidos temas. Cidade aberta é uma história entre muitas do underground em Roma, depois da ocupação da cidade pelos nazistas. É a história de um homem, cuja direção de luta e cuja obstinação obriga a mover à sua volta uma série de valores humanos que o asilam na sua constante fuga e são arrastados a cooperar com ele na sua constante perseguição do fim que o move. A imagem do Revolucionário, excelentemente representado por um ex-jornalista, Marcello Pagliero, nos é dada aqui com uma discrição e justeza que toca as raias da perfeição. Junto a ele avultam algumas figuras de menor porte no plano, da ação, mas todas de grande intensidade cinematográfica, como a do seu amigo o tipógrafo Francesco, também um revolucionário, e sua mulher, a incomparável Anna Magnani, cujo trabalho, a meu ver, ganha, por cabeça, o da inglesa Celia Johnson, em Brief Encounter, situando-as como as duas maiores artistas de cinema em 1946. 

Do porte do Revolucionário, no filme, existe apenas a figura do Padre. Será mesmo, sob certos aspectos, a personagem mais bem delineada em Cidade aberta, com a sua impressionante humanidade. Os dois homens tornam-se amigos, através da necessidade, e dessa amizade o diretor subtraiu habilmente qualquer especulação sobre materialismo dialético ou apologética, deixando ao Padre o mais completo livre-arbítrio e ao Revolucionário o mais completo determinismo, por assim dizer, nos caminhos da ação. O Revolucionário move-se sempre para a frente porque sente-se dirigido por uma força maior que ele, que o faz crer na remissão da miséria e na justiça social entre os homens. Seu ideal é amplo, mas as contingências do presente fazem seu movimento linear, quase esquemático. Sua expressão é humana, mas dura; ele fala pouco, age sem hesitação. O fim que o leva é maior do que ele, maior do que todos os que o rodeiam: dele não podem participar nem o medo físico nem quaisquer preocupação de ordem pessoal imediata, embora elas existam nitidamente na doce contenção com que planeja e executa a sua parte. Ele arrisca a vida de todos com quem se põe em contato, mas isso não o detém. Sua expressão presente é a luta contra o fascismo. Sua ficha mostra que lutou na Espanha contra a Falange, como luta agora contra o fascista italiano e o invasor nazista e como lutaria daqui a mil anos se fosse imortal. Mas sua voluntária discrição apaga-o mesmo diante da tortura física e da morte. Ele se deixa torturar e morre sustentando até o fim uma segunda identidade, que o chefe local da Gestapo, em última instância, aproveita "para não criar um novo mártir". 

Já o movimento do Padre é direito por linhas tortas, para usar da conhecida metáfora. A fé que o move impele-o ao socorro do seu semelhante, e ela é de qualidade bastante boa para dar-lhe pleno conhecimento do seu dever político. O Padre, na hora e meia de exibição da película, comete todos os pecados que se fazem necessários para que a verdade prevaleça sobre as forças do mal e da reação: falsifica passaportes e passa dinheiro falso, ministra o sacramento da extrema-unção em vão e agride com uma caçarola o pretenso moribundo para que ele não fale quando os nazistas se aproximam. Contra toda a Igreja, dá sua própria interpretação aos santos textos, na defesa de um ateu materialista; mas ele o faz sem um segundo de hesitação, embora sinta-se a sua timidez diante de Deus. Ao sádico agente da Gestapo que lhe anuncia ter meios para fazer falar o Revolucionário, o Padre diz duas palavras brotadas do mais fundo da sua convicção, que ficarão como um dos mais altos movimentos de fé já vistos: "Non parlerà", diz ele; e o repete obstinadamente, como um menino teimoso. O Revolucionário não falará. Não trairá ninguém. Num último impulso da sua carne massacrada pela brutalidade dos carrascos, cuspirá sangue na cara do nazista quando este, inclinado sobre ele, procura ainda acordá-lo para a traição que a dor, quem sabe, lhe poderia arrancar do inconsciente. 

Não me agrada a palavra realismo, para falar de Cidade aberta. Realismo dá sempre a impressão de uma superfetação da realidade, o que não é absoluto o caso aqui. Rossellini começou a rodar seu filme poucos meses depois da liberação de Roma, e o fez com o material de que podia dispor, inclusive celulóide apreendido aos alemães. Isso em nada impediu a grande qualidade fotográfica que o filme tem, nem a singeleza extrema da sua expressão cinematográfica, que lhe dá às vezes um ar documental, de verdadeira reportagem. A seqüência do cerco dos nazistas à casa de cômodos em que mora Francesco e sua mulher, culminando com a prisão do tipógrafo e a dramática morte de Anna Magnani, é de uma autenticidade de documentário. Dizer que Rossellini fez tudo isso sob o bom céu de Deus, com amadores apanhados ao azar. Quando se pensa em todos os recursos de que dispõe Hollywood, dá simplesmente vontade de atirar sobre ela uma grande bomba de gases hilariantes.
 
O filme está, aliás, destinado a ter a maior influência sobre o atual cinema. Essa influência, sob muitos aspectos, já começa a se fazer sentir, na crescente desglamourização de atores e no uso de ambientes autênticos, que têm caracterizado algumas das últimas produções, e sem dúvida as melhores, de Hollywood. A lição de Rossellini traz, inclusive, a evidência de que é possível fazer cinema bom e barato - Cidade aberta custou aproximadamente 2 mil contos - desde que se tenha esse amor essencial pelo que se está fazendo e a conseqüente paciência para dar-lhe um bom acabamento, mesmo quando falte o verniz para lustrar. 

Que milagre é esse, nos tempos que correm? Que milagre é esse de uma obra que não é cópia de nenhum modelo, não é um número na produção em massa, não vem acompanhada de nenhum slogan de propaganda, não leva nenhum cromo ou polimento de superfície, mas pelo contrário é feita com a nobre madeira do cinema, da qual se vêem todos os veios? 

Como sempre, a iniciativa de um homem, um Rossellini, capaz de espírito e determinação bastante para convencer um grupo de boa vontade. Quando Rod Geiger, o ex-GI americano que trouxe o filme para a América, encontrou o novo diretor, já este tinha completado cerca de 25% do trabalho de filmagem, com os parcos recursos de que dispunha. Geiger entrou para a produção e ofereceu o lançamento de Cidade aberta nos Estados Unidos. Desde aí não houve stop ao sucesso da empreitada. O filme tem quebrado recordes, como no World de Nova York, que acusou por muito tempo uma entrada de US$ 900 por dia, numa casa cuja renda é em média de US$ 600 a $ 700. No Esquire, em Hollywood, rodou um tempo ótimo, para um celulóide europeu. Assim tem sido em todas as cidades americanas, com exceção de Buffalo. Para Geiger, foi o começo de novas tentativas no mesmo gênero; ainda na Itália, à testa de uma nova companhia, filmou ele Paisà, também com Rossellini, um estudo cinematográfico das relações entre civis italianos e soldados americanos estacionados. A produção, como no caso de Cidade aberta, é falada em diferentes línguas, conforme os protagonistas. Alguns críticos que viram o filme, colocam-no sem favor ao lado do primeiro. 

Para Rossellini, de saída, já foi a cantada de sereia de Hollywood. Espero que ele saiba resistir, ou será possivelmente mais uma cruz a acrescentar no cemitério já grande de diretores estrangeiros na terra do quem-dá-mais. 
E agora, uma palavra sobre os atores. Já falei do Aldo Frabrizi, o extraordinário Padre da película. Fabrizi é considerado o maior comediante do teatro e do cinema italiano de hoje. Com sua atuação em Cidade aberta, passa, sem dúvida, à categoria de ator universal, de recursos dramáticos que o colocam ao lado dos famosos Emil Jannings, Werner Krauss, Fritz Körtner, John Barrymore, Charles Laughton, Orson Welles, Harry Bayer e Raimu. 

Marcello Paglicro, que faz o Revolucionário, tem um ótimo desempenho, favorecido por uma boa máscara, sóbria e de grande virilidade. Já o papel de Maria Michi, que faz a sua imprudente namorada, é bem mais difícil - e para uma novata devemos confessar que se saiu muito bem. Na seqüência em que contracena com os dois homens, depois da morte de Anna Magnani, não há dúvida que rouba o melhor da atenção para a sua patética imagem de mulher sem caminho. 

Mas a grande revelação do filme é Anna Magnani. Não me lembro de desempenho feminino mais admirável, desde Lillian Cish ou Elizabeth Bergner. Sua beleza de madona italiana, seu físico farto, como um pão da terra, sua desenvoltura perfeita, o calor íntimo que transmite a tudo o que diz e faz, naquela voz meio sensual meio cansada, situam-na num plano completamente à parte na produção. A ela deve o filme a maioria de seus melhores momentos. 



L'Espoir: Apesar de certos defeitos técnicos irremediáveis, oriundos sem dúvida das circunstâncias sob as quais André Malraux filmou a adaptação que fez de dois episódios de seu romance L'Espoir, o filme é uma grande obra de cinema. Dói-se ter que atestá-lo, agora que Malraux, levado pelo individualismo cego que o fez herói de algumas das aventuras mais perigosas do século, traiu miseravelmente a causa da revolução social pela posição de intelectual de confiança do reacionário De Gaulle. Preferiria muito que o filme fosse ruim, para reduzi-lo ao passar-lhe ao largo. Mas trata-se de um grande filme. Porque o mais triste é saber que essa mesma obra que nos faz vibrar fibras insuspeitadas, que nos reassegura tanto em nossa posição de antifranquistas, que nos faz execrar ainda mais definitivamente a figura glabra, odiosa, alvar do caudilho espanhol e a caterva que o rodeia, foi feita sem raízes verdadeiras na revolução, mais como uma aventura física e intelectual que como uma expressão verdadeira de luta. 

De qualquer modo, aí está o filme, e o que mostra é muito bom, apesar daqueles defeitos técnicos. Filmou-o Malraux em Barcelona, em 1938, num dos três estúdios existentes na cidade, com aparelhagem moderna mas meio desmantelada. Tinham, ele e o cinegrafista Louis Page, que mandar os rolos de celulóide para serem revelados na França, criando soluções de continuidade no processo da produção que muito devem ter dificultado a sua criação artística. Freqüentemente, passava-se um mês antes que o copião pudesse voltar-lhes às mãos para nele trabalharem. Além do mais, o equipamento de sons arrebentou-se em meio à filmagem, o que o obrigou à regravação de todo o material sonoro. Uma quantidade de cenas foi filmada às pressas, entre os bombardeios constantes da cidade. Posteriormente, em janeiro de 1939, Malraux, temendo cair prisioneiro das tropas de Franco que se aproximavam da cidade, fugiu para a França onde Darius Milhaud compôs o excelente roteiro musical que acompanha a película : de grande beleza algumas vezes, sobretudo no final. Mas a censura francesa, então sob a influência do pacto de Munique, proibiu a exibição do filme. Durante a ocupação alemã esteve ele escondido, só se tendo completado o corte e a coordenação depois da França liberada. L'Espoir recebeu o prêmio francês "Louis Delluc", equivalente ao da Academia de Hollywood. 

Tudo isso aparece no filme, é claro. Sem embargo, há momentos de grande cinema ao longo da sucessão. Sobretudo o que é belo na história é que foi feita com o povo que lutava, com a cara maravilhosa do povo cuja determinação e ódio aos fascistas espanhóis se lhes parece saltar das expressões cruas. L'Espoir é a história de um grupo de aviação, cuja missão é bombardear uma ponte estratégica na sierra de Teruel, que é aliás o nome do filme em espanhol. Para tanto, teve o cinegrafista Page que criar uma instalação especial para a sua câmera no único bombardeiro de que dispunha no momento o exército republicano. 

Mais uma vez a câmera mostrou de que é capaz quando se trata de revelar simplesmente a ação. O que aparece, dá realmente a impressão do que foi, diria melhor, do que é. Os homens são alonzos, migueis, juans não contrafações do homem do povo. Há força em suas cataduras, em seus silêncios e em suas palavras asperamente ejaculadas. Há beleza em suas barbas e em seus maus dentes. Há tradição em suas rugas e destino em seus olhos ariscos. A cena em que a população da cidade vem entregar à junta revolucionária os utensílios de que dispõe - latas, garrafões, penicos, tudo - para a manufatura de bombas, é tremendamente efetiva. A revolta do povo se faz mais válida ainda quando se sabe da carência de armas com que lutava, e sua disposição se torna ainda mais uma coisa de grandeza. 
E depois, há a grande, fundamental solidão da Espanha eterna no meio de tudo, dos campos, dos seres, dos horizontes. Tudo isso foi revelado pela câmera malgrado a imperfeição da fotografia. 0 desenvolvimento do raid é excelente, desde o seu árduo início, com os automóveis a iluminar o campo de decolagem, até o desastre, muito bem cortado por aquela incrível, silente, profundíssima imagem de amanhecer. Não há dúvida que o talento de Malraux mais uma vez revelou-se, com a mesma agudeza do seu primeiro e a meu ver melhor romance, La Condition humaine. 

O final é evidentemente inspirado no Couraçado Potemkin, de Eisenstein. A seqüência seria monótona, com a interminável fila de povo a acompanhar os corpos dos mortos e feridos que descem a montanha, se não fosse bela pela própria condição de monotonia que lhe é intrínseca. 

Sem querer ou de propósito, L'Espoir constitui uma peça forte no julgamento do fascismo de que Malraux se fez agora aliado. Mostra a luta do povo espanhol numa de suas fases mais dramáticas, já próximo à derrota provisória - porque a luta não terminou, pelo contrário - a sua rude, simples, instintiva guerra contra a tirania franquista. Que isso pese como chumbo na consciência de Malraux, até o fim de sua vida, é o meu mais ardente voto de sincero inimigo e admirador. 



Hets (Torment): Premiado no Festival Cinematográfico de Cannes como o melhor filme de 1946, o celulóide sueco Hets (que tem em inglês o título de Torment) é um estudo lírico da adolescência que de certo modo lembra o famoso Raparigas de uniforme, de Leontine Sagan, com a belíssima falecida Dorothea Wieck no papel principal. O filme tem, para mim, o mesmo fascínio de experiências literárias como Les Faux monnayeurs, de André Gide, Le Grand Maulnes, de Alain Fournier, ou certas coisas de Robert Francis em La Chûte de la maison de verre. Tudo o que há de puro e ardente na adolescência parece se ter transmutado para a figura de Alf Kjellin, que tem o papel principal da película e que Hollywood, naturalmente, já contratou. 

A velha pátina da fotografia européia, que o público americano tanto estranha e tão erroneamente confunde com falta de técnica, satura de autenticidade todas as imagens. O filme é a história de um estudante, Jan-Erik Widgren, cujo destino prende-se a uma patética jovem de nome Bertha (admiravelmente feita pela atriz Mai Zetterling, que J. Arthur Rank também já contratou para a Inglaterra). Ao encontrá-la, numa noite, bêbada na rua, não sabe o rapaz que a moça é física e moralmente vítima de um professor do colégio, a quem todos chamam Calígula, espécie de tirano cujo sadismo o leva a torturar tudo o que encontra de moço e de vivo, como compensação às próprias frustrações. Os jovens se apaixonam fundamente, até que o típico egoísmo masculino de Widgren o leva a abandonar a menina, ao lhe contar ela que uma noite, sub-repticiamente, o monstro havia voltado.
 
A cena entre os dois é cruel, ela sem ter o que dizer, totalmente desamparada, e o rapaz ferido em seu mundo de pureza e em seu amor adolescente. Arrancam-se um do outro. A tragédia segue-se inevitável. Um dia, desesperado, Widgren volta ao pequeno quarto pobre onde sua vida se iluminara, mas encontra a namorada morta, e a um canto, trêmulo de pavor, o odioso Calígula. O rapaz acusa-o, mas não tinha sido ele. Bertha morrera de alcoolismo, possivelmente de dor. Calígula é solto pela polícia e torna às suas funções no colégio. Mas Widgren é expulso. Na acariação, em frente do diretor, o rapaz agride Calígula num acesso de fúria. O final é carregado de tristeza, com a formatura dos colegas, que Widgren, de um canto de rua, vê sair alegres pela chuva. A falta da jovem companheira, o contato direto com a miséria do mundo, o remorso de sua própria covardia, o sentimento da expulsão do colégio, tudo isso abre no coração adolescente uma ferida que só se fecha depois visita paternal que lhe faz o diretor, ao longo de uma noite de agonia desespero totais, quando tudo nele extravasa em desconsolo, em remorso, em lágrimas. 

O filme termina com a chegada da manhã, que restitui ao mundo um Widgren ainda desolado, mas cuja face revela mais compreensão e experiência. A volta do rapaz para a cidade, vista do alto da colina onde se encontra, constitui uma imagem de grande pureza, que me traz outra não menos pura: a do final de Cidade aberta, quando os meninos voltam para Roma, que se vê ao longe, depois do fuzilamento do Padre. São ambas tremendamente afirmativas revelando, senão otimismo, pelo menos uma dura confiança no futuro e uma fé nos destinos do homem. 

A história de Hets não apresenta nada de especialmente original. É um pedaço da vida de um adolescente em crise, quando todas as suas energias são experimentadas. O que, por um estranho paradoxo do tempo, é original em Hets, é a simplicidade com que a história é narrada pela câmera, na melhor tradição de Sjostrom e Stiller. Desde o grande close-up inicial, que permanece durante o correr dos letreiros, tudo no filme é dito com singeleza, com a singeleza essencial ao tema. Não há qualquer sofisticação, qualquer intenção de "fazer inteligência" qualquer vontade brilhar. As cenas de amor entre Bertha e Widgren podem se cont entre as mais delicadas que já foram feitas. O tratamento da personagem de Calígula, o tarado professor, muito bem representado pelo ator Stig Jarrel, é levado avante sem recursos desnecessários à angulação ou a exagero de preto a branco, tão comuns nos filmes alemães expressionistas e post-expressionistas do mesmo gênero. Hets diz tudo o que quer em poucas palavras, para não dizer imagens. A atuação das três personagens centrais é modelar, recomendando-se especialmente a da atriz Maï Zetterling; a direção de Alf Sjöberb, seguríssima, e a fotografia de Martin Bodin, como já disse, na melhor tradição européia. O cenário, de Ingmar Bergman, sofre de uma certa descontinuidade, que a mim, que sou bastante contra o abuso de continuidade em cinema, me pareceu de ótimo resultado. Não resta dúvida que os cineastas europeus estão dando um banho de cinema em Hollywood.