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Por volta de 1948,... (s/ título)

1 of January of 1940

Por volta de 1948, o crítico Jean Desternes ouviu uma série de diretores sobre a questão do realismo, entre os quais o americano Orson Welles, o alemão Pabst e os italianos Lattuada e Castellani. De início, tanto Welles como Pabst procuraram colocar a questão em termos léxicos. "É preciso distinguir entre realismo e realidade", diz o primeiro. "Entre a realidade e o realismo diz Pabst," é preciso fazer inicialmente a distinção que nós temos em língua alemã."". 

De fato; em nossa sociedade o conceito não é exatamente fácil de definir. Numa sociedade criada em novos moldes, como é o caso da União Soviética ou da China, não há propriamente problema quando se coloca a questão do realismo socialista. Pode-se aceitar ou não, mas há que convir que se trata de um conceito sem pruridos léxicos, de uma tentativa de valorizar a realidade de novas forças em ascensão de um modo amplamente popular. Mas do lado de cá da linha, os realizadores da arte ocidental se têm de haver com uma infinidade de paradoxos estéticos que lhes foram legados por muitos séculos de uma formação econômica e intelectual não menos paradoxal. Na verdade, se o realismo é a transcrição, ou melhor, recriação tanto quanto possível direta da realidade, como poderão eles considerá-la direta se ela é uma transcrição ou recriação - uma transcrição ou recriação que se apóia em elementos fragmentários dessa mesma realidade: os sons, as imagens, as cores, as palavras? - e sobretudo se ela parte do princípio da escolha de uma realidade específica entre muitas para se exprimir? 

O fotógrafo Henri Cartier-Bresson, que é para mim um dos maiores artistas do nosso tempo, diz que é partindo do olho do fotógrafo, do olho humano em última instância, que começa para cada um de nós o espaço que vai se alargando até o infinito, o espaço presente que nos fere com maior ou menor intensidade e que se vai imediatamente ocultar em nossa memória e aí se modificar. A realidade é, pois, um fotograma instantâneo, que quando desaparece é impossível fazer reviver. Por isso, diz ele, de todos os meios de expressão a fotografia é o único que fixa o instante preciso. Mas mesmo aqui, através de um processo mecânico que modifica essa realidade, que a retranscreve, recria ou transfigura - pois que ela está sujeita a uma série de acidentes que lhe são estranhos. A realidade transcrita numa fotografia está sujeita, por uma questão de um centésimo de segundo, a não ser mais aquela entrevista pelo olho do fotógrafo e já estar transformada em memória na sua lembrança. A perspectiva de um espaço real pode se modificar, no momento da tomada, por um tremor da mão, um balanço do corpo, uma flexão do joelho. Do ponto de vista da cor da realidade, lida o fotógrafo seja com a convenção do preto-e-branco - que Cartier-Bresson chama "uma deformação, uma qualidade abstrata", seja com processos coloridos de desenvolvimento técnico ainda precário, que dependem da velocidade das emulsões, e obriga o fotógrafo ou a motivos estáticos, ou, para contornar essa dificuldade, ao uso de luzes artificiais intensas - isso sem falar nos azares da impressão posterior. 

Nisso tudo, onde fica o realismo? Eis porque, de um ponto de vista orgânico, vital, o problema da escola me parece supérfluo, do mesmo modo que parece supérfluo aos criadores do chamado "neo-realismo italiano". Castellani confessa considerar certas partes mais obviamente realistas de seus filmes como charges do neo-realismo. Lattuada confessa buscar a linha pura sob o pitoresco da realidade. Luchino Visconti é fundamentalmente um estilista; um artista absolutamente consciente do binômio forma-conteúdo, ou seja, a organização plástica rigorosa da concepção e da emoção a transmitir. Rossellini, exceção feita talvez de Roma, cidade aberta e Alemanha, ano zero, é um artista antes temático, despreocupado da forma em beneficio da mensagem que quer transmitir. De Sica é um lírico total, um chapliniano, para quem a realidade é apenas um ponto de partida na procura de algo melhor. Onde fica, pois, nisso tudo o realismo como escola? 

Nisso talvez que todos esses homens fizeram da vida, cada qual a seu modo, da vida como ela é (mas não como ela é na concepção de Nelson Rodrigues), o grande assunto de suas criações individuais diversas mas aparentadas; e do homem - o seu semelhante e irmão que, naquele momento especial sofria a amarga experiência do após-guerra - a grande personagem de suas histórias simples e emocionantes. 

Seu realismo foi assim a inelutável maneira que tiveram de provar sua fé na vida e no homem. Ao mostrá-lo em sua miséria, souberam também revelar instantes especiais de sua grandeza. E só com este ato de fé no homem abriram um caminho entre cadáveres para que gente nova, gente viva pudesse passar depois.