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Orfeu da Conceição

Tragédia carioca em três atos 




Susana de Moraes 
Minha filha 

Now strike the golden lyre again: 
A louder yet, and yet a louder strain. 
Break his hands of sleep asunder, 
And rouse him, like a rattling peal of thunder. 
Hark, hark! the horrid sound 
Has raised up his head; 
As awaked from the dead, 
And amazed, he stares around. 

John Dryden, "Ode in Honour of St. Cecilia's Day" 

...sin pan, sin música, cayendo 
en la soledad desquiciada 
donde Orfeo le deja apenas 
una guitarra para su alma 
una guitarra que se cubre 
de cintas y desgarraduras 
y canta encima de los pueblos 
como el ave de Ia pobreza. 

Pablo Neruda, "La Crema" 

Todas as personagens da tragédia devem ser normalmente representadas por atores da raça negra, não importando isto em que não possa ser, eventualmente, encenada com atores brancos. 
Tratando-se de uma peça onde a gíria popular representa um papel muito importante, e como a linguagem do povo é extremamente mutável, em caso de representação deve ela ser adaptada às suas novas condições. 
As letras dos sambas constantes da peça, com música de Antônio Carlos Jobim, são necessariamente as que devem ser usadas em cena, procurando-se sempre atualizar a ação o mais possível. 

PERSONAGENS 

ORFEU DA CONCEIÇÃO, o músico 
EURÍDICE, sua amada 
CLIO, a mãe de ORFEU 
APOLO, o pai de ORFEU 
ARISTEU, criador de abelhas 
MIRA DE TAL, mulher do morro 
A DAMA NEGRA 
PLUTÃO, presidente dos Maiorais do Inferno 
PROSÉRPINA, sua rainha 
O CÉRBERO 
GENTE DO MORRO 
OS MAIORAIS DO INFERNO 
CORO e CORIFEU 

AÇÃO: Um morro carioca 
TEMPO: 0 presente 

O MITO DE ORFEU* 

Orfeu teve desgraçado fim. Depois da expedição à Cólchida, fixou-se na Trácia e ali uniu-se à bela ninfa Eurídice. Um dia, como fugisse Eurídice à perseguição amorosa do pastor Aristeu, não viu uma serpente oculta na espessura da relva, e por ela foi picada. Eurídice morreu em conseqüência, e desde então Orfeu procurou em vão consolar sua pena enchendo as montanhas da Trácia com os sons da lira que lhe dera Apolo. Mas nada podia mitigar-lhe a dor e a lembrança de Eurídice perseguia-o em todas as horas. 
Não podendo viver sem ela, resolveu ir buscá-la nas sombrias paragens onde habitam os corações que não se enterneceram com os rogos humanos. Aos acentos melódicos de sua lira, os espectros dos que vivem sem luz acorreram para ouvi-lo, e o escutavam silenciosos como pássaros dentro da noite. As serpentes que formam a cabeceira das intratáveis Eríneas deixaram de silvar e o Cérbero aquietou o abismo de suas três bocas. Abordando finalmente o inexorável Rei das Sombras, Orfeu dele obteve o favor de retornar com Eurídice ao Sol. Porém seu rogo só foi atendido com a condição de que não olhasse para trás a ver se sua amada o seguia. Mas no justo instante em que iam ambos respirar o claro dia, a inquietude do amor perturbou o infeliz amante. Impaciente de ver Eurídice, Orfeu voltou-se, e com um só olhar que lhe dirigiu perdeu-a para sempre. 
As Bacantes, ofendidas com a fidelidade de Orfeu à amada desaparecida, a quem ele busca perdido em soluços de saudades, e vendo-se desdenhadas, atiram-se contra ele numa noite santa e esquartejam o seu corpo. Mas as Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, a correnteza jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde foram piedosamente recolhidas e guardadas. 

* Excerto de La leyenda dorada de los dioses y de los héroes, da autoria do helenista Mario Meunier. 

PRIMEIRO ATO 

CENA 

O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao longe. Platô de terra com casario ao fundo, junto ao barranco, defendido, à esquerda, por pequena amurada de pedra, em semicírculo, da qual desce um lance de degraus. Noite de lua, estática, perfeita. No barranco de Orfeu, ao centro, bruxuleiam lamparinas. Ao levantar o pano, a cena é deserta. Depois de prolongado silêncio, começa-se a ouvir, distante, o som de um violão plangendo uma valsa* que pouco a pouco se aproxima, num tocar divino, simples e direto como uma fala de amor. Surge o Corifeu. 

* Nesta peça deverá ser tocada, obrigatoriamente, a valsa "Eurídice" de millha autoria - Vinicius de Moraes. 


CORIFEU 
São demais os perigos desta vida 
Para quem tem paixão, principalmente 
Quando uma lua surge de repente 
E se deixa no céu, como esquecida. 
E se ao luar que atua desvairado 
Vem se unir uma música qualquer 
Aí então é preciso ter cuidado 
Porque deve andar perto uma mulher. 
Deve andar perto uma mulher que é feita 
De música, luar e sentimento 
E que a vida não quer, de tão perfeita. 
Uma mulher que é como a própria Lua: 
Tão linda que só espalha sofrimento 
Tão cheia de pudor que vive nua. 

CLIO (de dentro, a voz estremunhada) 
É o violão de Orfeu... Escuta, Apolo. 

APOLO (também de dentro, bocejando) 
Deixa-te estar, mulher... 

CLIO 
Acorda, homem! é o sangue do teu sangue 
Que está tocando! 

APOLO 
Então não sei? É boa! 
Ninguém como mulher para ter língua 
Para dizer as coisas... qual! Quem foi 
Que pegou no menino e ensinou ele? 
Quem teve a idéia? Quem pagou o dinheiro 
Pelo melhor violão? um instrumento 
T'esconjuro! que, às vezes, eu te juro 
Clio, tocava com o roçar do vento... 

CLIO 
É mesmo. Foi você que ensinou ele... 
Ele aprendeu, o meu Orfeu. Agora 
Ninguém toca com ele, nem o mestre 
Com quem ninguém tocava dantes. Ouve 
Apolo, que beleza! que agonia! 
Me dá uma vontade de chorar... 

APOLO 
Toca muito o meu filho, até parece 
Não um homem, mas voz da natureza... 
Se uma estrela falasse, assim dizia. 
Escuta só (dá risada). Até ofende a Deus 
Tocar dessa maneira. Olha que acordes! 
Quanta simplicidade! Sabes duma? 
Me lembro dele quando, pequenino, 
Ficava engatinhando no terreiro 
Nuzinho como Deus o fez; ficava 
De boca aberta, resmungando coisa 
Olhando as estrelinhas que acordavam 
De tarde, pelo céu... Esse menino 
Eu pensava, conversa com as estrelas... 
Vai ver conversa mesmo. 

CLIO 
Se conversa! 
Mas fica quieto, peste.É até pecado 
Ficar falando com Orfeu tocando. 

(A músíca, em acordes, desenrola-se solta, cada vez mais próxima. Já agora ritmos de samba começam a marcá-la, aqui e ali, ritmos saudosos que enchem a noite. Às vezes chegam de longe sons, um cantar agudo de mulher, uma voz de homem que chama, pedaços soltos de um ensaio de batucada. Mas o violão cristalino predomina sempre. Num dado momento, a noite faz-se subitamente muito escura, como se uma nuvem espessa tivesse encoberto a Lua. Ao clarear a cena, Orfeu acha-se no topo da escada, o violão a tiracolo.) 

ORFEU 
Toda a música é minha, eu sou Orfeu! 

(Dá uma série de acordes e glissandos à medida que se aproxima da amurada. Vindas, ninguém sabe de onde, entram voando pombas brancas que logo se perdem na noite. Próximo uivam cães longamente. Um gato que surge vem esfregar-se nas pernas do músico. Vozes de animais e trepidações defolhas, como ao vento, vencem por um momento a melodia em pianíssimo que brota do violão mágico. Orfeu escuta, extático, Depois recomeça a tocar, enquanto, por sua vez, cessam os sons da natureza. Ficam nesse desafio por algum tempo, alternando vozes, até que tudo estanca, vozes ruídos e música.) 

ORFEU 
Eu sou Orfeu... Mas quem sou eu? Eurídice... 

(Voltam por um momento os sons, os uivos de cães que se lamentam, o chilrear patético de pássaros nos ninhos. Depois a melodia do violão se retoma como um carinho.) 

ORFEU 
Eurídice... Eurídice... Eurídice... 
Nome que pede que se diga coisas 
De amor: nome do meu amor, que o vento 
Aprendeu para despetalar a flor 
Nome da estrela sem nome... Eurídice... 

(Tenta executar, em glissandos, o nome por que chama. Depois ri beatificamente, balançando a cabeça.)

CLIO (de dentro) 
Orfeu? Meu filho, és tu? Que estás fazendo? 
Estás falando sozinho, filho meu? 

ORFEU 
Mãe, ainda não dormiu? 

CLIO 
Mas que pergunta! Dormindo eu não estaria perguntando. Onde está com a cabeça, Orfeu? 

ORFEU (baixinho) 
No céu. 

(Ouve-se barulho dentro do barracão, e pouco depois surge Clio à porta. Fica parada, espiando o filho sem ser vista. Mais tarde aparece Apolo e os dois deixam-se estar, atentos aos menores gestos do tocador.) 

ORFEU (num sussurro) 
Eurídice... Onde está você, Eurídice? 

(Não pára um segundo de tocar, como atendendo a uma música íntima. Mas de repente se volta, como sentindo-se observado.) 

ORFEU (a voz meio agastada) 
Mãe? Pai? Que é isso? Já prá dentro! 
Sair da cama quente com esse tempo 
Frio... Não têm juízo? 

CLIO 
Quem não tem 
Juízo? O que pergunta ou o que responde? 
O que quer dar um pouco do que é seu 
Ou o que tinha juízo e que perdeu 
E que nem sabe onde? 

ORFEU (como para si mesmo) 
Sabe onde. 
Sabe onde! Minha mãe, neste momento 
O juízo de Orfeu tem outro nome 
Um nome de mulher... Neste momento 
O juízo de Orfeu canta baixinho 
Um poema de Orfeu que não é seu: 
É um nome de mulher... Neste momento 
O juízo de Orfeu, todo de branco 
Sobe o morro para encontrar Orfeu! 

CLIO 
Meu filho 
Que é isso? Onde está o meu Orfeu? 
Estou te estranhando tanto... 

APOLO 
Não te mete 
Mulher, deixa o menino... 

ORFEU 
Não, meu pai 
Foi bom até puxar o assunto. Eu... 

CLIO 
Tu estás tocando muito hoje, meu filho... 
Tu sempre tocas muito, eu sei; mas hoje 
Teu violão entrou pelo meu sono 
Como uma fala triste. Que é que há 
Com você, filho meu, que tua mãe 
Sabe e não quer saber, e que agonia 
A negra velha? 

ORFEU (carinhoso) 
Minha velha... (corre a beijá-la) 
Mãezinha, como pode?... 

CLIO 
Uai, podendo! 
Pois a gente não é de carne e osso 
Não bota filho neste negro mundo 
Não sofre, não capina, não se cansa 
Não espreme o peito até dar leite e sangue 
Não lava roupa até comer o sabugo (olha Apolo de lado) 
Não sustenta um malandro, um coisa-ruim 
Que só sabe contar muita garganta 
E beber sem parar no botequim? 
Pois a gente não é mãe, não cria um filho 
Pra ser, como eu criei, absoluto 
Pra ser o tal, querido e respeitado 
Por homens e mulheres? 

(Apolo olha Orfeu, levanta os ombros e interna-se no barracão. Ao emudecer sua mãe, o músico põe-se a tocar baixinho, em acordes nervosos.) 

ORFEU 
Ah, minha mãe 
Minha mãe, que bobagem! e para quê 
Ofender o meu velho, homem tão bom 
Quanto músico, ele que me ensinou 
Tudo o que eu aprendi, da posição 
À harmonia, e que se nada fez 
É porque fez demais, fez poesia... 

CLIO 
Ah, que eu já estou muito chata desta vida 
Tomara já morrer... 

ORFEU 
Morrer sem ver 
O filho de seu filho, que vai ser 
O maioral dos maiorais? 

CLIO (chegando-se a ele) 
Que conversa esquisita é essa, meu filho? 

ORFEU (pondo-lhe as mãos nos ombros) 
Tão grande minha mãe, e ainda tão boba! (recomeça a tocar) 
Minha mãezinha, eu quero me casar 
Com Eurídice... 

CLIO (a voz desesperada) 
Com Eurídice, meu filho? 
Com Eurídice, nego? Mas... pra quê? 

ORFEU (dedilhando docemente) 
Eu gosto dela, minha mãe; é um gosto 
Que não me sai nunca da boca, um gosto 
Que sabe a tudo o que de bom já tive... 
Aos seus beijos de mãe quando eu menino 
À primeira canção que fiz, ao sonho 
Que tive de chegar onde estou hoje... 
Um gosto sem palavras, como só 
A música pode saber... 

(Dedilha o violão, como à procura da expressão que lhe falta.) 

Minha mãe 
Eu quero Eurídice e Eurídice me quer 
Teu Orfeu, minha mãe, também é homem 
Precisa uma mulher... 

CLIO (embargada) 
Uma mulher?! 
Qual a mulher que Orfeu não pode ter? 
É só chamar... Meu filho, o morro é teu 
É só você; desde sua mãe, que é tua 
Até a última mulher... Pra que 
Ir se amarrar, meu filho? Pensa um pouco 
Você nasceu para ser livre, Orfeu! 
Orfeu prisioneiro... 

ORFEU 
Você não entende, não; não sou mais eu 
É ele, minha mãe... Orfeu é Euridíce 
A música de Orfeu é como o vento 
E a flor; sem a flor não há perfume 
Há o vento sozinho, e é triste o vento 
Sozinho, minha mãe... 

CLIO 
Escuta, filho 
Eu sei, tudo isso eu sei; minha conversa 
É outra, Orfeu. Não é que eu seja contra 
Você gostar de Eurídice, meu filho 
Não tem mesmo mulata mais bonita 
Nem melhor, neste morro - uma menina 
Que faz gosto, de tão mimosa... mas 
Pra quê? Eu te conheço bem, Orfeu 
Eu que sou tua mãe, e não Eurídice 
Mãe é que sabe, mãe é que aconselha 
Mãe é que vê! e então eu não estou vendo 
Que descalabro, filho, que desgraça 
Esse teu casamento a três por dois 
Tu com essa pinta, tu com essa viola 
Tu com esse gosto por mulher, meu filho? 
Ouve o que eu estou dizendo antes que seja 
Tarde... Não que eu me importe... Mãe é feita 
Mesmo para servir e pôr no lixo... 
Mas toma tento, filho; não provoca 
A desunião com uma união; você 
Tem usado de todas as mulheres 
Eu sei que a culpa disso não é só tua 
O feitiço entra nelas com tua música 
Mas de uma coisa eu sei, meu filho: não 
Provoca o ciúme alheio; atenta, Orfeu 
Não joga fora o prato em que comeste... 
Você quer a menina? muito bem! 
Fica com ela, filho... - mas não casa 
Pelo amor de sua mãe. Pra que casar? 
Quem casa é rico filho; casa não! 
Quem casa quer ter casa e ter sustento 
Casamento de pobre é amigação 
Junta só com a menina; casa não! 

(Enquanto sua mãefala, Orfeu não pára um só instante de tocar, como se discutisse com ela em sua música, às vezes com a maior doçura, às vezes irritado ao extremo. Ao ver, no entanto, a face dolorosa com que Clio termina a sua exortação, corre a ela e abraça-a.) 

ORFEU 
Minha velha! 

CLIO (chorando) 
Meu filho, casa não! 

(Põe-lhe os braços sobre os ombros, trazendo-lhe a cabeça, e beija-o rudemente sobre a testa. Orfeu conserva-se assim por um instante, meio curvo. Ao recuperar-se novamente, está sozinho. Olha à toa, atônito. Seu violão, como perdido, responde ao estado de alma que o toma em acordes lancinantemente dissonantes. A frase musical correspondente ao nome de Eurídice reponta pungente em seu dedilhado agônico. Ele aproxima-se da amurada, voltado para as luzes da cidade. Uma lufada de vento traz sons como de harpa, que parecem enunciar o nome de Eurídice. Tudo é Eurídice na mecânica do instante, e a presença da mulher amada deve manter-se com uma força e fatalidade inenarráveis.) 

ORFEU 
Eurídice! Eurídice! Eurídice! 

(O violão responde com três acordes semelhantes. Aos poucos, uma melodia parece repontar, com ritmos mais característicos, da massa informe de música que brota do instrumento. Orfeu, atento ao chamado, dedilha mais cuidadosamente certas frases. Aos poucos o samba começa a adquirir forma, enquanto a letra espontânea, a princípio soletrada, vai se adaptando à música.) 

ORFEU (cantando) 
Um nome de mulher 
Um nome só e nada mais... 
E um homem que se preza 
Em prantos se desfaz 
E faz o que não quer 
E perde a paz. 
Eu por exemplo não sabia, ai, ai 
O que era amar 
Depois você me apareceu 
E lá fui eu 
E ainda vou mais... 

(Repete a melodia algumas vezes, cantando entre dentes e fazendo uns passinhos de samba. Quando acaba ri sozinho.) 

ORFEU 
Eh! sambinha gostoso! estou te vendo 
Descer o morro, meu samba... Ó turbilhão 
De música em mim! lh, já tem outra 
Pronta para sair! Sossega, idéia! 
Calma violão! assim não adianta! 
Vamos mais devagar... Deixa ver essa (dedilha) 
Melodia... Frase para uma canção... 
Uma canção a se chamar... 

EURÍDICE (que já se achava presente há algum tempo a observá-lo) 
...Eurídice! 

ORFEU 
Foi você que falou, violão? ou foi 
O nome dela no meu coração 
Que eu disse sem saber?... 

EURÍDICE 
Foi não, foi não! 
Foi o amor mesmo que chegou, Orfeu! 
Sou eu, neguinho... 

ORFEU (voltando-se, dá com ela e recua como ofuscado) 
Eurídice! Visão! 

EURÍDICE 
Como passou o meu amor sem mim? 
Pensou em mim? (suspira) Três horas e quarenta 
Minutos sem olhar o meu amor 
Ah! meu amor mais lindo... 

(Correm um para o outro e se abraçam apaixonadamente.) 

ORFEU 
Só sofrimento! 

EURÍDICE 
Ouve o meu coração 
Como bate, neguinho. Vim correndo... 

ORFEU (põe-se a soluçar, a cabeça oculta no colo da amada) 
Mulher, eu já nem sei o que me mata 
Se é o amor que te tenho, tão maior 
Que esse meu doido peito, ou se a vontade 
Impossível de amar-te mais ainda. (afasta-se para olhá-la) 
Ah, meu amor, como você é linda! 

EURÍDICE 
Só uma coisa no mundo é linda: Orfeu! (beija-o) 

ORFEU 
Alguém chora de bobo… não sou eu! 

EURíDICE (beijando-lhe os olhos) 
Lágrimas do meu imenso amor, lágrimas 
Tão puras... sobre a tua pele escura 
Lembram estrelas de noite... deixa eu ver 
Quero beber uma por uma as lágrimas 
Me embriagar de estrelas... 

ORFEU 
Ah! neguinha 
Quanta saudade! 

Eurídice, dizer 
Que eu nasci antes de você nascer! 
Como é que pode ser? o que é que eu era 
Antes de Eurídice? um feixe grande de ossos? 
Um bocado de carne e pele escura? 
Dois pés e duas mãos? E o sentimento 
A idéia, o que eram? Nada! O nascimento 
De Orfeu foi quando Eurídice nasceu! 

EURíDICE 
Doçura do meu peito! fala mansa 
Que toda me arrepia! desgraçado 
Que me matas de gosto! tentação! 
Ah não me fala assim tão doce não 
Ainda não, ainda não, senão Eurídice 
Vai ser tua antes de ser... 

ORFEU (tomando-a nos braços) 
Paixão! 
Paixão que me alucina e me dá vida! 
Mulher do meu amor aparecida 
Eu te quero pra mim! 

EURíDICE 
Ainda não! 
Por favor, meu amor, um segundinho 
Só; daqui dois dias nos casamos 
Como se combinou; já está tratado 
O casamento e tudo; já cosi 
Meu vestido de noiva, comprei véu... 
Vamos fazer assim como Deus quer 
Não é mesmo? 

ORFEU (abraçando-a violentamente) 
Paixão, paixão, paixão 
Paixão por ti, mulher! 

(Beijam-se num embate irresistível, enquanto novamente o céu escurece como se uma nuvem ocultasse a Lua. Sons como vozes informes parecem vir do vento, em meio dos quais repontam subitamente os gemidos agoniados de Eurídice.) 

EURíDICE (a voz embargada) 
Não, meu neguinho. Pelo amor de Deus 
Ainda não! ainda não! 

(A luz da Lua volta a iluminar a cena. Orfeu desembaraça-se lentamente do abraço da namorada.) 

ORFEU 
Perdão, Eurídice 
Se é que é possível o amor pedir perdão. 
Dois dias mais... é tanto tempo, Eurídice (muda de tom) 
Tá bem. Faço das tripas coração 
Morro de amor, tá bom?... porque a morena 
Não me quer... 

EURíDICE (num gemido) 
Peste, demônio, coisa ruim! me mata 
Mas não me fala assim... 

ORFEU 
Minha adorada 
Eu estou brincando, bem-querer... 

EURÍDICE 
Desculpa 
A culpa é minha, eu sei... 

ORFEU 
Ninguém tem culpa 
Minha neguinha... é só amor - mais nada... 

EURÍDICE (suspirando fundo) 
Poxa! estou com a cabeça revirada... 

(Riem gostosamente. Depois novamente se abraçam, mas desta vez com infinita ternura.) 

ORFEU (berçando a namorada) 
O meu amor tão bom... Meu bem... Meu bem... 

EURÍDICE 
Diz que mulher tem alma de gato. Tem. 

(Riem mais, abraçados. Depois Eurídice desenlaça-se.) 

ORFEU 
Já, neguinha? 

EURíDICE 
É preciso, meu amor... 
Preciso dar uma chegada em casa 
Ver mamãe. 

ORFEU 
Vê se volta, por favor... 
Tenho um sambinha novo pra mostrar 
E quem sabe se até você voltar 
Não sai outro... 

EURÍDICE (dirigindo-se ao violão) 
Me diga... sai, violão? 

(Orfeu dedilha o instrumento à solta.) 

ORFEU 
Ele disse que faz o que ocê manda 
Meu coração. 

EURÍDICE (benzendo-se) 
Cruz credo! até parece 
Que essa viola fala de verdade... 
Vai ver fala de fato. 

(Orfeu, brincando, exprime coisas que lhe quer dizer, coisas súplices que fazem a namorada rir.) 

Até, neguinho. 
Volto num instante. 

(De repente retorna o vento, e os rumores estranhos da noite. O violão toca agitado por alguns instantes enquanto Eurídice se afasta.) 

ORFEU (num grito) 
Eurídice! 

EURíDICE (voltando-se assustada) 
Que foi, Orfeu? alguma 
Coisa, meu bem-querer? 

ORFEU 
Não sei. Me deu 
De repente uma coisa, uma agonia 
Uma vontade de te ver... 

(A cena clareia de modo fantástico, como se a intensidade do luar tivesse aumentado sobrenaturalmente.) 

Querida! 
Não vai não! 

EURÍDICE 
Meu neguinho, que bobagem! 
É um instantinho só. Volto com a aragem... 

ORFEU 
Por que você está assim, filhinha? 
O que é que você tem? 

EURÍDICE 
É a Lua, coração. 
É a luz da Lua, não é nada não. 

ORFEU 
Ai, que agonia que você me deu 
Meu amor! que impressão, que pesadelo! 
Como se eu te estivesse vendo morta 
Longe como uma morta... 

EURíDICE (chegando-se a ele) 
Morta eu estou. 
Morta de amor, eu estou; morta e enterrada 
Com cruz por cima e tudo! 

ORFEU (sorrindo) 
Namorada 
Vai bem depressa. Deus te leve. Aqui 
Ficam os meus restos a esperar por ti 
Que dás vida! 

(Eurídice atira-lhe um beijo e sai.) 

Mulher mais adorada! 
Agora que não estás, deixa que rompa 
O meu peito em soluços! Te enrustiste 
Em minha vida; e cada hora que passa 
É mais por que te amar, a hora derrama 
O seu óleo de amor, em mim, amada... 
E sabes de uma coisa? Cada vez 
Que o sofrimento vem, essa saudade 
De estar perto, se longe, ou estar mais perto 
Se perto, - que é que eu sei! Essa agonia 
De viver fraco, o peito extravasado 
O mel correndo; essa incapacidade 
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso 
Que é bem capaz de confundir o espírito 
De um homem - nada disso tem importância 
Quando tu chegas com essa charla antiga 
Esse contentamento, essa harmonia 
Esse corpo! E me dizes essas coisas 
Que me dão essa força, essa coragem 
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice 
Meu verso, meu silêncio, minha música! 
Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada 
Sou coisa sem razão, jogada, sou 
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice... 
Coisa incompreensível! A existência 
Sem ti é como olhar para um relógio 
Só com o ponteiro dos minutos. Tu 
És a hora, és o que dá sentido 
E direção ao tempo, minha amiga 
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada! 
A beleza da vida és tu, amada 
Milhões amada! Ah! Criatura! Quem 
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu 
Cujo violão é a vida da cidade 
E cuja fala, como o vento à flor 
Despetala as mulheres - que ele, Orfeu 
Ficasse assim rendido aos teus encantos! 
Mulata, pele escura, dente branco 
Vai teu caminho que eu vou te seguindo 
No pensamento e aqui me deixo rente 
Quando voltares, pela lua cheia 
Para os braços sem fim do teu amigo! 
Vai tua vida, pássaro contente 
Vai tua vida que estarei contigo! 

(Às últimas linhas o violão de Orfeu já começa a afirmar uma nova melodia, que o músico retoma. O samba se vai pouco a pouco revelando, enquanto a letra se forma naturalmente, ao sabor do ensaio. Orfeu canta.) 

Vai tua vida 
Teu caminho é de paz e amor 
A tua vida 
É uma linda canção de amor 
Abre os teus braços e canta a última esperança 
A esperança divina 
De amar em paz... 
Se todos fossem iguais a você 
Que maravilha viver! 
Uma canção pelo ar 
Uma mulher a cantar 
Uma cidade a cantar 
A sorrir, a cantar, a pedir 
A beleza de amar... 

Como o sol, como a flor, como a luz 
Amar sem mentir nem sofrer 
Existiria a verdade 
Verdade que ninguém vê 
Se todos fossem no mundo iguais a você! 

(Às últimas linhas, entra Mira.) 

MIRA 
Tá bom, deixa… Sambinha novo, Orfeu? 

ORFEU (olhando-a casualmente) 
É. Samba novo. Como vai? Adeus. 

MIRA 
Ah, gostei muito da recepção... 
Antes não tinha disso não, violão. 

ORFEU 
É. Boa noite. Vê se eu estou na esquina. 
Se eu não estiver vem logo me contar. 
Não me encontrando, eu estou em algum lugar. 

MIRA (mudando de tom) 
Que é isso, coração? me desprezando? 
Antigamente ocê era diferente... 
Me lembro um samba teu chamado "Mira": 
Se lembra? 

ORFEU 
Desse lado de cá não escuto nada 
De tanto que escutei conversa fiada. 
Joga pro alto! 

MIRA 
Te manca aí, benzinho 
Se fosse outra pessoa que falasse 
Você escutava direitinho... 

ORFEU 
Some 
Sacode o lombo, vira fada, voa! 

MIRA 
Tu com essas partes todas, coisa à-toa 
Não faz um ano andava me pegando... 
Se esqueceu? 

ORFEU 
Me esqueci. Ora essa é boa! 
Que é que há pra lembrar que eu não lembro? 
Sou esquecido, esquecido... 

MIRA 
Talvez você precise 
De alguém para refrescar sua memória 
Alguma suja, alguma descarada 
Alguma vagabunda sem-vergonha 
Alguma mulatinha de pedreira 
Metida a branca! 

ORFEU (voltando-se furioso) 
Mete o pé, ferida 
Senão eu te arrebento de pancada 
A boca carcomida! 

MIRA (enfrentando-o) 
É? Arrebenta 
Se ocê é homem! 

ORFEU (chegando-se a ela) 
Vai-te embora, mulher, enquanto é tempo 
Não me põe louco! faz o que eu te digo! 

MIRA (rindo sarcástica) 
Bancando o seu abob'ra... Nem te ligo... 
Quem sabe até não quer me convidar 
Para madrinha? 

ORFEU (como para si mesmo) 
Que é isso, Orfeu... 
Muita calminha... Calma, homem, calma... 

MIRA (olhando-o com desprezo) 
É. Vou buscar 
O calmante, tá bom? Dizer que isso 
Já foi o tal! Que é que te deu, Orfeu 
Te puseram feitiço? 

ORFEU 
Vai levando... 
Desaparece, Mira! Estou querendo 
É paz, é muita paz. Não me chateia 
Pelo amor de sua mãe, some! 

MIRA (cuspindo) 
Ferida! 
Ferida és tu, seu mal-agradecido 
Desprezar essa negra que te deu 
Tudo o que tinha, tudo! 

ORFEU 
Calma, Orfeu 
Muita calma... 

MIRA 
Vendido! Porcaria! 
Filho duma cadela! Vai pro mato 
Pegar a tua Eurídice! 

(A essas palavras Orfeu avança sobre ela e agride-a a bofetadas. A mulher reage e os dois lutam violentamente por um instante. Numa separação momentânea, Mira, atemorizada, recua.) 

CLIO (de dentro, a voz assustada) 
Orfeu? Orfeu? 

(Orfeu se retoma e por um momento deixa-se estar na mesma posição, ofegante, enquanto a mulher, apavorada, foge lentamente de costas, até desaparecer numa carreira.) 

ORFEU (a voz alterada) 
Pode dormir quietinha, mãe. Sou eu. 

CLIO (no entressono) 
Não fica muito tempo nesse frio 
Meu filho, vem dormir. 

ORFEU 
Já vou, mãezinha. 

(Pega no violão e põe-se a tocar agitadamente. Depois vai serenando, em acordes que aos poucos se vão fazendo mais e mais alegres. Por fim o ritmo do samba já reponta. Dá uma sonora gargalhada.) 

Mulher... ah, mulher! 

(O instrumento parece repetir a frase. Orfeu assovia. Depois o samba começa a aparecer.) 

Mulher, ai, ai, mulher 
Sempre mulher dê no que der 
Você me abraça, me beija, me xinga 
Me bota mandinga 
Depois faz a briga 
Só pra ver quebrar! 
Mulher, seja leal 
Você bota muita banca 
E infelizmente eu não sou jornal. 

Mulher, martírio meu 
O nosso amor 
Deu no que deu 
E sendo assim não insista, desista 
Vá fazendo a pista 
Chore um bocadinho 
E se esqueça de mim. 

(Ri gostosa, sonoramente. Enquanto a sua risada se prolonga, chega novamente, informes, os ruídos da natureza, misteriosos como falas. A cena escurece como anteriormente. Orfeu, olhando em torno, sai, lentamente de cena, repetindo seu samba ao violão. Passados alguns segundos, entra soturno Aristeu.) 

ARISTEU 
Eu me chamo Aristeu, pastor de abelhas 
Mas não há mel bastante neste mundo 
Para adoçar a minha negra mágoa... 
Aristeu, Aristeu, por que nasceste 
Para morrer assim, cada segundo 
Desse teu negro amor sem esperança? 
Ah, Eurídice, criança! que destino 
Cruel pôs-te, fatal, no meu caminho 
Com teu corpo, teus olhos, teu sorriso 
E tua indiferença? Ah, negra inveja 
De Orfeu! Ah, música de Orfeu! Ah, coração 
Meu, negro favo crepitando abelhas 
A destilarem o negro mel do crime! 
Orfeu, meu irmão, por quê? por que teu vulto 
Em forma de punhal no meu caminho? 
Por que te fez tão belo a natureza 
Para não a Aristeu, amar-te Eurídice? 
Por que razão te dizes meu amigo 
Orfeu, se praticaste a crueldade 
De seres como és, e sendo Orfeu 
Seres mais bem amado? Ah, desgraçado 
Aristeu, pobre vendedor de mel 
Do mel de Orfeu! Tu, Orfeu, deste a colmeia 
Que um dia, entre as abelhas, de repente 
Abriu na cera ao ninho da serpente 
Que há de picar Eurídice no seio: 
Negro seio que nunca há de dar leite... 

(No final do monólogo entra Mira que, escondida, deixa-se a observar Aristeu.) 

MIRA 
Não é verdade, Aristeu: o seio negro 
De Eurídice, daqui mais nove meses 
Estará escorrendo leite branco 
Para o filho de Orfeu! Eu sei, Aristeu 
Eu sei porque eu ouvi! 

ARISTEU (voltando-se) 
Quem está aí? 

MIRA (aparecendo) 
Eu, Mira 

ARISTEU (voltando-se possesso) 
Mentira! É uma mentira! (agarra-a) 
Fala, mulher! 

MIRA 
Se você me sufoca 
Assim, como é que eu vou poder falar? 

ARISTEU 
Então cala! 

MIRA 
Isso não! Vou te contar 
Tudo o que ouvi Orfeu dizer a Eurídice 
E Eurídice a Orfeu... Não banca o otário 
Aristeu! 

(Põe-se a sussurrar-lhe ao ouvido, depois olha em torno. Afastam-se rapidamente. Poucos segundos depois, aparece Orfeu acompanhando no violão um choro que se executa longe no morro. A lua ilumina a cena. Mas de súbito tudo escurece, como anteriormente. Orfeu estaca e pára de tocar. Logo, do fundo da sombra, cresce uma voz soturna, enorme, como ecoando numa câmara de eco.) 

A DAMA NEGRA 
O homem nasce da mulher e tem 
Vida breve. No meio do caminho 
Morre o homem nascido da mulher 
Que morre para que o homem tenha vida. 
A vida é curta, o amor é curto. Só 
A morte é que é comprida... 

ORFEU 
Quem falou? 

(A cena clareia, enquanto surge da escada, lenta, uma gigantesca negra velha, esquálida, envolta até os pés num manto branco, e trazendo nas mãos um ramo de rosas vermelhas.) 

A DAMA NEGRA 
Sou eu, Orfeu; a Dama Negra! 

ORFEU (as mãos sobre os olhos, como ofuscado) 
Quem sois vós? Quem sois vós, Senhora Dama? 

A DAMA NEGRA 
Eu sou a Dama Negra. Não me chamo. 
Vivo na escuridão. Vim porque ouvi 
Alguém que me chamava. 

ORFEU 
Não chamou! 
Ninguém chamou aqui! 

A DAMA NEGRA 
Chamou, Orfeu 
E eu vim. 

ORFEU 
Não veio! Aqui quem manda é Orfeu! 
Mando eu! 

A DAMA NEGRA 
Hoje alguém me chamou que vai comigo 
Para o fundo da noite vai comigo 
Alguém que me chamou. 

ORFEU 
Não chamou! 
Este é o meu reino, aqui quem manda é Orfeu 
Digo que não chamou! 

A DAMA NEGRA 
O mundo é meu 
Orfeu, o mundo é meu. Tenho um instante 
Para ficar, Orfeu. Depois, Orfeu 
Tenho que ir adiante... 

ORFEU 
Vá embora 
Senhora Dama! eu lhe digo: vá embora! 
No morro manda Orfeu! Orfeu é a vida 
No morro ninguém morre antes da hora! 
Agora o morro é vida, o morro é Orfeu 
É a música de Orfeu! Nada no morro 
Existe sem Orfeu e a sua viola! 
Cada homem no morro e sua mulher 
Vivem só porque Orfeu os faz viver 
Com sua música! Eu sou a harmonia 
E a paz, e o castigo! Eu sou Orfeu 
O músico! 

A DAMA NEGRA 
Orfeu, eu sou a Paz. 
Não sou de briga, Orfeu... 

ORFEU 
Orfeu é forte! 
Vá embora, Senhora Dama! 

A DAMA NEGRA 
Não. 
Alguém chamou. Aqui esperarei. 

ORFEU 
Orfeu é muito forte! Orfeu é rei! 
Vá embora, Senhora! 

(Põe-se a tocar furiosamente em seu violão, em ritmos e batida violentos. Os sons, à medida que se avolumam, vão criando uma impressão formidável de magia negra, de macumba, de bruxedo.) 

E vá dançando! 

(A Dama Negra, ao ritmo que se desenvolve cada vez mais rapidamente, põe-se a dançar passos de macumba, a princípio lenta, depois vertiginosamente, na progressão da música.) 

Dança, Senhora Dama! Dança! Dança! 

(O movimento segue assim, num crescendo infinito, até que, exausto, Orfeu pára, com macabro e demoníaco som do violão. A cena escurece totalmente. Quando clareia, vê-se Eurídice no mesmo lugar onde se achava a Dama Negra, também com um ramo de rosas na mão.) 

EURÍDICE 
Orfeu! Querido! Que é que aconteceu? 

ORFEU (olha-a como se não a reconhecesse) 
Eurídice? Que sonho tive eu 
Minha Eurídice! 

EURÍDICE (corre até ele) 
Tado do meu neguinho! 
Eu demorei demais. Também mamãe 
Não queria que eu viesse, deu conselho: 
Menina, toma tento! espera um pouco 
Sossega com esse fogo, se resguarda 
Patati-patatá. E eu conversando 
Ela, dizendo que era só um instante 
Que eu só queria te dizer boa noite. 
Desculpa, meu amor... 

ORFEU 
Minha adorada 
Perto de ti não penso mais em nada 
Foi um sonho, passou... 

EURÍDICE 
Fez algum samba? 

ORFEU 
Fiz dois. 

EURÍDICE 
Fez algum para mim, Orfeu? 

ORFEU 
Tudo o que sai do violão é teu 
Mulher... 

EURÍDICE 
Que mais aconteceu? 

ORFEU 
Nada. Mira veio me ver. Me provocou 
Quase dou-lhe na cara uma pregada. 

EURÍDICE (rindo) 
Bobo! Brigando à toa! Ciumada... 

ORFEU 
É. Perdoa a bobagem... 

EURÍDICE (beijando-o) 
Perdoada. 

(Orfeu prende-a num beijo e os dois amorosos se enlaçam estreitamente, enquanto volta o vento e com o vento os sons misteriosos da noite. Mas eles nada percebem, entregues à força da sua paixão.) 

ORFEU 
Mulher, não me maltrata assim, malvada 
Não me maltrata assim... 

EURÍDICE (abandonada) 
Neguinho 
Neguinho meu! 

ORFEU 
Ô que paixão danada! 
Ô que paixão ruim! 

(Enlaça-a pela cintura.) 

Minha adorada 
Por quê? 

EURÍDICE 
Meu bem... 

ORFEU 
Por quê? Por quê? 

EURÍDICE 
Quer a sua morena tanto assim? 

ORFEU (a voz estrangulada) 
Não é nem mais querer... é coisa ruim 
É morte! 

EURÍDICE (pensativa) 
Morte? Morrer... E se eu morresse? 
Você ia sentir muito? Ou ficava 
Quem sabe, até bastante aliviado? 

ORFEU (num soluço) 
Cala a boca, querida! Se eu 
Te perdesse eu iria te buscar 
Fosse no Inferno, tanto que te quero! 

EURÍDICE 
Acaso pensa que eu também não quero? 

ORFEU 
E então, por que, meu bem? 

EURÍDICE 
Você me quer? 

ORFEU 
Nada no mundo eu quero mais, mulher 
Amor de minha vida... 

EURÍDICE (brincalhona) 
Mas depois 
Não vai cansar de mim? 

ORFEU 
Depois, vai ser só um - nunca mais dois: 
Eurídice e Orfeu. 

EURÍDICE 
Querido, escuta... 
Mas onde? 

ORFEU 
No barracão de Orfeu. 
Na cama que Orfeu tinha preparado 
Para a mulher que Deus lhe deu. 

EURÍDICE 
E os outros 
E sua mãe, seu pai? 

ORFEU 
Tudo arrumado. 
Tenho lá meu quartinho separado. 
A cama é um pouco dura, sonho meu... 

EURÍDICE 
Hoje Eurídice é cama para Orfeu. 

(Beijam-se de novo, ternamente, e entram juntos no barraco. À sua entrada a noite se faz imensamente clara e pássaros noturnos chilreiam invisíveis, enquanto melodias parecem vir da voz do vento. Mas logo surge de trás de um dos barracos o vulto de um negro alto e esguio, que se esgueira sorrateiramente e se vem plantar, num gesto dramático, em frente à casa dos dois amantes. Coincidindo com o seu gesto, e com uma nova música, patética, que vem dos ruídos da noite, a Dama Negra surge da sombra.) 

ARISTEU (a voz soluçante) 
Eurídice! 

A DAMA NEGRA 
Eurídice morreu. 

ARISTEU 
Quem falou? Quem falou? 

A DAMA NEGRA 
Eu, Aristeu! 
A Dama Negra, Aristeu... 

ARISTEU (num grito selvagem) 
Eurídice! 

A DAMA NEGRA 
Tarde vieste, Aristeu. A tua Eurídice 
A tua Eurídice morreu! Naquela casa 
Entre os braços do homem que a perdeu 
Entre os braços de Orfeu, a tua Eurídice 
A tua Eurídice morreu, Aristeu! 

ARISTEU 
Não, não morreu! 
Está viva! Morrerá do braço meu! 
Quero o seu sangue! 

A DAMA NEGRA 
Ela morreu, Aristeu! 
Dentro daquela casa, a tua Eurídice 
Tudo o que tinha deu a seu Orfeu 
Aristeu! 

ARISTEU 
Cala-te! Ela ainda não morreu! 
Está viva, eu é que vou matar, sou eu! 
Ou minha ou de ninguém! 

A DAMA NEGRA 
Qual, Aristeu... 
Tudo o que a tua Eurídice guardava 
Já entregou a Orfeu. 

(Aristeu, como um louco, investe para a casa, brandindo os punhos. Nesse momento ouvem-se as vozes confusas dos dois amantes e ambos, Aristeu e a Dama Negra, recolhem-se furtivamente à sombra. A porta se entreabre para deixar passar Eurídice. Orfeu surge, a meio corpo, apenas, entre os umbrais. Beijam-se demoradamente.) 

EURÍDICE 
Boa noite, meu amor. 

ORFEU 
Boa noite, amiga. 

EURÍDICE 
Como o corpo meu que foi teu, também 
Meu pensamento está contigo! 

ORFEU 
Doce bem... 
Pensa em mim, pensa bastante em mim! 

EURÍDICE (beijando-o) 
Meu 
Homem! Meu adorado! 

ORFEU 
Todo teu 
Todo teu, todo teu, o corpo, a alma 
E a música de Orfeu! 

EURÍDICE 
Ah, que saudade! 

ORFEU 
Nem me fales, mulher (beija-a), amor de Orfeu! 

EURíDICE 
Dor mais gostosa só morrer no céu... 
Meu homem! 

ORFEU 
Meu amor! 

EURÍDICE 
Meu doce Orfeu! 
Boa noite, preciso ir... 

ORFEU 
Leva contigo 
O meu amor... 

EURÍDICE 
Contigo fica o sangue 
Do meu amor: amor, adeus... 

ORFEU 
Vai em paz, meu amor, toma cuidado 
Pelo caminho! (olha a noite) A lua foi amiga 
Não foi, amiga? 

EURIDICE (beijando-o) 
Foi, amigo. Adeus! 

ORFEU (beija-a) 
Adeus! 

(Entra. Ao voltar-se Eurídice, Aristeu, surgindo do escuro, um punhal na mão, mata-a espetacularmente. Eurídice cai.) 

EURÍDICE (ao morrer) 
Adeus. 

ARISTEU (fugindo embuçado) 
Adeus, mulher de Orfeu! 

(A cena vai escurecendo lentamente, enquanto a Dama Negra surge do canto onde se ocultara. Tudo é silêncio. Com um gesto largo a Dama Negra tira o grande manto que a veste e cobre com ele o corpo de Eurídice morta enquanto cai o pano.) 

SEGUNDO ATO 

CENA 

No interior do clube Os Maiorais do Inferno, num fim de baile de 
terça-feira gorda. Cenário e ambiente característicos do nome, 
com grande margem para a sugestão de um ballet, sem prejuízo, 
no entanto, do equilíbrio clássico que deve ser mantido no 
decorrer da ação. Pares e indivíduos isolados dançam pelo salão 
sem música, entre as sombras rubro-negras de refletores a insinuar 
a presença do fogo. Todas as figuras secundárias, homens e mulheres, 
vestem-se com o uniforme da sociedade carnavalesca, sendo que no caso 
destas últimas a indumentária faz lembrar vivamente Eurídice. 
Como nas orgias gregas, os homens perseguem as damas, que aceitam 
e refugam, ao sabor do movimento. Bebe-se fartamente, com unção, 
na boca das garrafas. Num trono diabólico, ao fundo, sentam-se Plutão 
e Prosérpina, com uma corte de mulheres à volta. Esse casal mefistofélico 
deve se caracterizar pelo tamanho e gordura, gente gigantesca, risonha, 
desperdiçada, a aproximar comparsas solitários, a gritar, a beber, 
insinuando, criando a festa. 

PLUTÃO (às gargalhadas, em tom altíssimo sugerindo o samba negro) 
Aproveita, minha gente, que amanhã não tem mais! Hoje é o último dia! Aproveitem, meus filhos, que amanhã é Cinzas! Não quero ninguém triste, não quero ninguém sozinho, não quero ninguém a seco! Encham a cara que a morte é certa! Amanhã é Cinzas, hoje é alegria, o último dia da alegria! Afinal de contas, quem é que manda aqui? 

PROSÉRPINA (vivando) 
É o rei, é o rei! 

TODOS (em coro) 
É o rei, é o rei! 

PLUTÃO 
Quem dá bebida dá alegria dá samba dá orgia? 

TODOS (marcando o compasso) 
É o rei, é o rei! 

PLUTÃO (erguendo-se em toda a estatura) 
Quem é o rei? 

TODOS (aplaudindo vivamente) 
É O REI! É O REI! 

(Dispersam-se como doidos, a marcar o tempo com palmas e sapateados, enquanto dançam ao sabor da frase, sempre repetida: "É o rei! é 
o rei!" Plutão e Prosérpina riem-se de morrer. A seus pés as mulheres riem-se também, a se rolar sensualmente.) 

PLUTÃO (no mesmo tom agudo) 
Triste de quem não quer brincar, que fica a labutar ou a pensar o dia 
inteiro! Triste de quem leva a vida a sério, acaba num cemitério, trabalhando de coveiro! 

TODOS (em coro, marcando o compasso) 
Acaba num cemitério, trabalhando de coveiro! 

PROSÉRPINA (bêbada, erguendo-se) 
E viva a orgia! É o reinado da folia! É hoje o último dia! E viva! 

TODOS 
E viva! 

PLUTÃO 
Quem é que marca o tempo, meus filhos? 

TODOS 
É o bumbo! 

(Ouve-se o som monstruosamente ampliado de um bumbo.) 
PLUTÃO 
Quem é que marca o ritmo? 

TODOS 
É o tamborim! 

(O mesmo, com um tamborim.) 

PLUTÃO 
Quem é que marca a cadência? 

TODOS 
É o pandeiro! 

(O mesmo, com um pandeiro.) 

PLUTÃO 
Quem é que faz a marcação? 

TODOS 
É a cuíca! 

(O mesmo com uma cuíca.) 

PLUTÃO 
Quem é que anima a brincadeira? 

TODOS 
É o agogô! 

(O mesmo, com um agogô.) 

PLUTÃO 
Então, o que é que faz a batucada? 

TODOS 
É o bumbo é o tamborim é o pandeiro é a cuíca é o agogô! 

PLUTÃO 
Então como é como é como é? Sai ou não sai esse samba? 

(Ouve-se o apito. Depois o primeiro e em seguida o segundo e terceiro 
tamborins. Logo entra a cuíca, num crescendo.) 

PLUTÃO (altíssimo, superando a marcação) 
É o samba ou não é? 

TODOS 
É! 

PLUTÃO 
É gostoso ou não é? 

TODOS 
É! 

PLUTÃO 
É do diabo ou não é? 

TODOS 
É! 

(O som atinge proporções fabulosas, enquanto todo o mundo se põe a dançar, batendo com os pés a marcação. Plutão e Prosérpina dançam também, sobre o estrado, entre as mulheres que rolam bêbadas. A cena conserva-se, assim, por um tempo razoavelmente grande. De repente insinua-se, a princípio longínquo, depois numa amplitude cada vez maior, a dominar a batucada, o som cristalino de um violão que plange. Uma após outra, todas as figuras vão se imobilizando nas posturas originais do samba, e o som do batuque decresce, à medida que o das cordas aumenta. Só Plutão se ergue, como atônito e se inclina para ouvir. O instrumento corre escalas dulcíssimas, em trêmulos e glissandos que se aproximam mais e mais. De vez em quando, em meio à música, uma voz chama. É a voz de Orfeu.) 

A VOZ DE ORFEU (longuissimamente) 
Eurídice! 

(Cada vez que a voz chama, cria-se um silêncio provisório do violão. Esses chamados alternam-se com a expressão carinhosa da música, da qual participa freqüentemente a frase musical correspondente ao nome da mulher amada. Em breve as mulheres apenas, não os homens, vão saindo do letargo em que se achavam e como desabrochando da imobilidade.) 

A VOZ DE ORFEU 
Eurídice! Eurídice! 

(À medida que o nome vai sendo repetido, as mulheres renascem totalmente, dando lugar então a que se ouça um prenúncio de coro, coisa fragílima, espécie de sussurro ou frêmito vocal, como uma crepitação de vento, repetido dissonantemente pelas mulheres, em escalas sucessivas, até desaparecer, de tão tênue. Esse eco coral desdobra o patético do nome que a voz de Orfeu trouxe de longe.) 

A VOZ DE ORFEU 
Eurídice! 

CORO DAS MULHERES 
Eurídice… rídice… ídice… dice… ice… ce… eee… 

A VOZ DE ORFEU 
(tristíssima) 
Eurídice... 

CORO DAS MULHERES 
Eurídice... rídice... ídice... dice... ce... 

A VOZ DE ORFEU 
Mulata... 

CORO DAS MULHERES 
Ai... ai... ai... ai... ai... ai... ai... 

PLUTÃO (erguendo-se arrebatadamente) 
Continua a festa! Continua a festa! 

(A essas palavras imperativas as mulheres se imobilizam, enquanto os homens começam a despertar. Insinua-se, em meio ao som do violão, o toque da batucada.) 

PLUTÃO (bradando) 
Alegria! É o reinado da alegria! Amanhã é Cinzas! Hoje é o último dia! E viva Momo! E viva a folia! 

PLANO DE CÉRBERO 

Vê-se Orfeu que vem, tocando seu violão, uma grande expressão de mágoa estampada no rosto. Ele busca Eurídice em meio à loucura do carnaval. Dirige-se para o clube dos Maiorais do Inferno, onde se processa, infernalmente, a batucada. Mas, súbito, vê seu caminho barrado pelo Cérbero, o leão-de-chácara do clube, o grande cão de muitos braços e muitas cabeças, que investe contra ele ameaçadoramente, e só não o trucida porque Orfeu não pára de tocar sua música divina, que o perturba. Quando o Cérbero avança, Orfeu recua, sempre tocando, e ante a música é o Cérbero que, por sua vez, recua, sem saber o que faça. Pouco a pouco a música de Orfeu domina o Cérbero, que acaba por vir estirar-se a seus pés, apaziguado. 

(A batucada prossegue em crescendo, dominando aos poucos os sons do violão. Assim permanece por alguns instantes. De repente, ouve-se um brado desesperado, um grito inarticulado, como de horror. Deve ser tão sobre-humanamente alto e súbito que o seu efeito seria o de traumatilzar completamente a assistência.) 

ORFEU 
Eurídice! 

(Logo após esse grito aumentam os reflexos vermelhos do fogo, e em seguida faz-se a escuridão. Uma luz branca projeta-se sobre a porta de entrada onde surge Orfeu, o violão a tiracolo. Ali se deixa extático, por um tempo suficientemente grande para que se realize no espaço o silêncio evocado por aquele monstruoso grito. Ao soar seu violão, acendem-se as luzes e o músico ingressa na sala. Toca um choro triste, ao som do qual dançam as mulheres, somente elas, em passos lânguidos, isoladamente. Orfeu passeia pela sala, e durante esse passeio as mulheres o requestam com os gestos de sua dança.) 

PLUTÃO (pondo-se de pé, num brado) 
Quem sois tu? 

ORFEU (parando de tocar, enquanto se imobilizam as mulheres) 
Eu sou Orfeu, o músico. 

PLUTÃO (brandindo o punho) 
Em nome do diabo, responde: quem sois tu? 

ORFEU 
Eu sou a mágoa, eu sou a tristeza, eu sou a maior tristeza do mundo! Eu sou eu, eu sou Orfeu! 

PLUTÃO 
O que queres? 

PROSÉRPINA (atirando-se nos seus braços, bêbada, a buscar-lhe a atenção) 
Ele quer é rosetar! Deixa ele, bem. Olha para mim! 

PLUTÃO 
Silêncio, mulher! Plutão está falando, Plutão, o rei dos infernos! Não quero ouvir nem o voar de uma mosca! Silêncio! (dirigindo-se a Orfeu) O que queres? 

ORFEU 
Eu quero a morte! 

PLUTÃO 
Pára de fazer gracinha! Diz de uma vez: quem sois tu, e o que queres? 

ORFEU 
Eu quero Eurídice! 

(A esse nome as mulheres recomeçam em sua dança lânguida, enquanto murmuram.) 

AS MULHERES 
Eu quero a vida, ninguém me dá vida, carnaval acabou, a vida morreu, acabou-se a vida, a vida sou eu, a vida morreu... 

PLUTÃO 
Em nome do diabo, diz o que queres, homem! 

ORFEU (a voz grave e patética) 
Eu quero Eurídice! 

AS MULHERES (dançando) 
Eu sou Eurídice. Eurídice sou eu. Quem foi que disse que eu não sou Eurídice? Quem foi que disse que eu não sou Eurídice? Quem foi que disse que eu não sou Eurídice? 

ORFEU (num gemido do violão) 
Eurídice, querida. Vem comigo! 

(Estende os braços para as mulheres, como a solicitá-las. Elas vêm, deixando-se namorar e desvencilham-se ao sabor do movimento.) 

PLUTÃO 
Ninguém sai daqui sem ordem do rei! Pra fora penetra! Maiorais do Inferno: ponham o penetra pra fora! Pra fora! Ninguém quer arigó aqui! 

(Os rumores da batucada começam novamente a se acender. Os homens se movimentam, aproximando-se em passos medidos, ameaçadores. Mas Orfeu domina-os com a magia do seu violão. O movimento estaca por completo.) 

ORFEU 
Não sou daqui, sou do morro. Sou o músico do morro. No morro sou conhecido - sou a vida do morro. Eurídice morreu. Desci à cidade para buscar Eurídice, a mulher do meu coração. Há muitos dias busco Eurídice. Todo o mundo canta, todo o mundo bebe: ninguém sabe onde Eurídice está. Eu quero Eurídice, a minha noiva morta, a que morreu por amor de mim. Sem Eurídice não posso viver. Sem Eurídice não há Orfeu, não há música, não há nada. O morro parou, tudo se esqueceu. O que resta de vida é a esperança de Orfeu ver Eurídice, de ver Eurídice nem que seja pela última vez! 

PLUTÃO 
Pra fora! Aqui não tem Eurídice nenhuma. Tás querendo é me acabar com o baile, pilantra? Aqui mando eu! Pra fora, já disse! 

PROSÉRPINA (caindo bêbada sobre ele) 
O cara tá é cheio. Deixa ele, bem, senão é capaz de sair estrago. Vem cá, dá um beijinho. 

PLUTÃO 
Espera, mulher! Como é que pode? Como é que pode tocar a festa? Precisa pôr o homem na rua! Não tás vendo que o homem tá de malícia? 

AS MULHERES (em coro) 
Eu sou Eurídice... 

ORFEU (movimenta-se de uma para outra) 
Vem comigo! Mulata, vem comigo! Sem você não há vida, não há música, não há nada. Vem comigo! Vem conversar comigo como dantes! Vem deitar na minha cama como dantes! 

As MULHERES (dançando) 
Quem foi que disse que eu não sou Eurídice? Quem foi que disse que eu não sou Eurídice? 

PLUTÃO (a voz aguda) 
Ninguém sai daqui sem ordem do rei! Aqui é o rei quem manda! Toca a música! Onde está a música? Cadê o bumbo o tamborim a cuíca o pandeiro o agogô? Toca o apito! Começa o samba! Não acabou o carnaval ainda não! 

PROSÉRPINA 
Não resolve... O homem tá de cara cheia. Deixa ele. (ri histericamente) Dor-de-cotovelo tá comendo solta! Dor-de-cotovelo tá comendo solta, minha gente! 

ORFEU (estonteado) 
Onde estou eu? Quem sou eu? Que é que vim fazer aqui? Como é que foi isso? Isso é o inferno e eu quero o céu! Eu quero a minha Eurídice! a minha mulata linda, coberta de sangue... Eu quero a minha Eurídice, que brincava comigo, a minha mulata do dente branco... 

(As mulheres o rodeiam, dando-se as mãos. A batucada recomeça, baixinho, entre vozes e risadas perdidas. Estão todos bêbados, largados. Alguns homens correm, tontos, atrás de umas poucas mulheres que bailam à solta.) 

As MULHERES (acompanhando o bumbo e a cuíca em ritmo de marcha) 
Ciranda, cirandinha 
Vamos todos cirandar 
Já bateu a meia-noite 
Carnaval vai acabar 

ORFEU (os braços para o alto) 
Não, não morreu! 

AS MULHERES 
Tinha uma, tinha duas 
Tinha três, tinha um milhão 
Tanta mulher não cabia 
Dentro do seu coração. 

ORFEU 
A minha Eurídice... 

AS MULHERES 
Vamos, maninha vamos 
Na praia passear 
Vamos ver o casamento 
Ó maninha 
Que acabou de celebrar. 

ORFEU 
Eu e Eurídice... 

AS MULHERES 
Vamos, maninha vamos 
Na praia passear 
Vamos ver a noiva bela 
Ó maninha 
E a marcha nupcial. 

ORFEU 
Aonde? Aonde? 

(Plutão e Prosérpina riem e se abraçam, já meio dormindo.) 

AS MULHERES 
O anel que tu me deste 
Era vidro e se quebrou... 

ORFEU (que se pôs a beber de uma garrafa, exaltado) 
Não! Era o maior amor do mundo! Era a vida, era a estrela, era o céu! 
Era o maior amor do mundo, maior que o céu, maior que a morte! 
Eurídice, querida, acorda e vem comigo... 

As MULHERES 
Nessa rua, nessa rua, tem um bosque 
Que se chama, que se chama solidão... 

ORFEU (clamando) 
Eurídice, vem comigo! 

(As libações continuam, gerais. Vários casais já dormem pelo chão. Alguns ainda dançam sambas caprichados, sem música. Um casal de malandros dança um em frente ao outro, jogando capoeira.) 

AS MULHERES (pegando-se pelas mãos, e fazendo-se trocar os lugares, a cada linha. Os dois malandros continuam a capoeira) 
Os escravos de Jó 
Gostavam de brigar 
Vira, mata, pega o zamberê 
Que dá! 
Guerreiro com guerreiro (bis) 
Zip-zip-zip-zá (bis) 

(Orfeu corre de uma mulher para outra, tentando separá-las. Mas o movimento sempre o repele. Ele bebe avidamente. Por aí então já todos dormem, com exceção das mulheres que cantam e dos dois malandros que dançam a capoeira, um em frente ao outro, à direita.) 

ORFEU (brandindo a garrafa) 
Eu sou o escravo da morte! Eu sou aquele que procura a morte! A morte é Eurídice! Vem comigo, morte... 

(Requesta as mulheres, mas estas se desvencilham. Orfeu pega o violão e dedilha. Por um momento os sons dulcíssimos dominam tudo e o movimento cessa totalmente, até que as mulheres, fascinadas, começam a seguir Orfeu em passadas lânguidas, medidas, enquanto o músico se afasta de costas, em direção à porta de saída. Mas quase no momento de sair, incutem, entre os acordes do violão, os ritmos pesados, soturnos, da batucada. Os dois sons coincidem por alguns instantes, enquanto as mulheres, indecisas, fluem e refluem ao sabor dos dois ritmos.) 

ORFEU (para as mulheres, apontando-as) 
Vem, Eurídice. Eu te encontrei. Eurídice é você, é você, é você! Tudo é Eurídice. Todas as mulheres são Eurídice. Quem é que quer mulher morta? Eu não quero mulher morta! Eu quero Eurídice, viva como na noite do nosso amor. Vem, minha vida... 

(A aurora raia, pouco a pouco, entre as sombras rubras. Orfeu, voltado parafora, exclama.) 

ORFEU 
É a madrugada, Eurídice. Lembra, querida, quantas madrugadas eu vi nascer no morro ao lado teu? Lembra, Eurídice, dos passarinhos que vinham aceitar o desafio do violão de Orfeu? Lembra do sol raiando sobre o nosso amor? (ergue os braços para a aurora) Eurídice, tu és a madrugada! A noite passou, a escuridão passou. Espera, minha Eurídice! Eu vou, me espera... 

(Vai saindo, tocando o seu violão, entre os acordes da batucada em pianíssimo. As mulheres correm atrás dele, mas o ritmo presente as prende mais. A cada movimento para afrente respondem com um refluxo geral, lânguido, dentro do tempo do samba.) 

ORFEU (bem longe) 
É a madrugada, Eurídice... 

AS MULHERES 
(em coro, dançando, cantam sem palavras, com sons em surdina que aumentam como violinos) 
Hum... m... m... m... 

(A cena se conserva assim, as mulheres dançando languidamente, os dois malandros lutando capoeira, à direita da sala, que se faz mais e mais clara. Ouve-se sempre a voz de Orfeu e seu violão, muito longe, em meio ao toque em pianíssimo da batucada. Depois cai lentamente o pano.) 

TERCEIRO ATO 

CENA 

A mesma do Primeiro Ato. Crepúsculo. Em frente ao barracão de Orfeu veêm-se agrupamentos de pessoas que conversam ad lib, em tom grave, atentas aos acessos de choro e, por vezes, gritos animais de dor que provêm de Clio no interior da casa. Entra o Coro. 


CORO 

PRIMEIRA VOZ 
Ai, Orfeu... 

SEGUNDA VOZ 
Pobre Orfeu... 

TERCEIRA VOZ 
Orfeu tão puro... 

QUARTA VOZ 
Tão puro que de amor enlouqueceu... 

QUINTA VOZ 
Creio em Orfeu... 

SEXTA VOZ 
Criador de melodia... 

PRIMEIRA VOZ 
Orfeu filho de Apoio... 

SEGUNDA VOZ 
Nosso Orfeu! 

TERCEIRA VOZ 
Nasceu de Clio... 

QUARTA VOZ 
E muito padeceu 
Sob o poder maior da poesia... 

QUINTA VOZ 
E foi pela paixão crucificado... 

SEXTA VOZ 
E ficou louco e abandonado... 

CORO (em uníssono) 
Desceu às trevas, e das grandes trevas ressurgiu à luz, e subiu ao morro onde está vagando como alma penada procurando Eurídice… 

CLIO (possessa) 
Ah, maldita! maldita! Que fizeste 
Com o meu filho?... 

APOLO (aflito, de dentro) 
Sossega, coração. 
Tem calma, Clio, pelo amor de Deus... 
Olha os vizinhos, minha nega. 

CLIO (aos berros) 
Vaca! 
Prostituta! Cadela! Vagabunda! 
Nasce de novo que é pra eu te comer 
Os olhos! Sem-vergonha! Descarada! 
Nasce de novo, nasce! 

APOLO 
Minha filha 
Minha filha, tem calma... 

CLIO (em prantos) 
Vai embora! 
Sai de perto de mim! Quero o meu filho! 
Onde está meu Orfeu? 

APOLO 
Está por aí 
Quietinho que parece uma criança. 
A doideira do Orfeu, mulher é mansa... 

(Ouve-se um estertor de Clio.) 

CLIO 
Não, é mentira! Doido o meu Orfeu? 
Ah, Deus do céu! Me leva bem depressa 
Que é pra eu encontrar aquela negra 
Que endoideceu o meu Orfeu! Me leva 
Deus... (muda de tom) Não, não quero mais saber de Deus! 
Que Deus é esse que apagou assim 
O espírito de Orfeu? Não quero Deus! 
Deus de mentira, Deus de inveja, Deus... 

(Uma crise de pranto a interrompe.) 

UM HOMEM (fora) 
Credo! Que horror! 

UMA MULHER (benzendo-se) 
Virgem Nossa Senhora! 
Pobre dessa mulher! 

UMA SEGUNDA MULHER 
Alguém devia 
Fazer alguma coisa... 

UMA TERCEIRA MULHER 
É, é preciso 
Chamar um médico... 

UM SEGUNDO HOMEM 
É? Tem cada uma... 
Médico, aqui no morro... 

(Dirige-se em tom zombeteiro a um outro homem.) 

Eh, você... 
Pega no Cadilac e chama o médico. 

O OUTRO HOMEM (Sério) 
Acho-te uma gracinha... 

O SEGUNDO HOMEM 
Uai, por quê? 
Foi a mulher que mandou... 

A MULHER 
Deus me defenda! 
Nem se respeita mais a dor alheia. 
Quando Orfeu tava bom não era assim 
Esse morro era feliz. 

UM VELHO (balançando a cabeça) 
Ah, isso era! 
Com Orfeu esse morro era outra coisa. 
Havia paz. A música de Orfeu 
Tinha um poder a bem dizer divino... 

UM OUTRO VELHO 
É mesmo. E endoideceu. Pobre menino... 

(Dentro do barracão recrudesce o choro de Clio. Do lance de degraus, surgem algumas mulheres com latas d'água na cabeça, que se misturam aos circunstantes a comentar a cena ad lib. Apolo surge à porta.) 

APOLO 
Não sei mais o que faça. São três dias 
Desse martírio... Minha pobre velha! 
Assim ela endoidece igual ao filho... 

CLIO (de dentro) 
Ah, quem me traz o meu Orfeu de volta 
Ah, quem me traz... 

APOLO 
Meu Deus, que coisa horrível! 
Por que é que nesse mundo não tem paz? 
Por que tanta paixão? 

CLIO (chorando) 
Não posso mais! 
Me matem, por favor... 

APOLO (aos circunstantes) 
Vocês aí... 
Por favor, minha gente... - qualquer coisa... 
Pela estima que tinham ao meu Orfeu 
Me façam qualquer coisa... 

(Entra enxugando lágrimas. Comentários ad lib.) 

UMA MULHER 
Que tragédia! 
Nem eu não posso mais. Isso há três dias! 
Essa mulher não agüenta. É necessário 
Que vá alguém lá embaixo ver se traz 
Um socorro qualquer... 

UM HOMEM 
Uma ambulância! 
Tem o Posto da Praça. Eu dou um pulo. 

UMA VELHA 
Vai depressa, meu filho. E Deus te guie. 

(O homem desce correndo. Por um momento faz-se um grande silêncio no grupo.) 

UMA MULHER 
E Orfeu, onde andará? 

UMA OUTRA MULHER 
Anda vagando. 
Passa os dias doidando pelo morro... 
Meu filho ainda outro dia topou ele 
Diz que é impressionante. Ocês conhecem 
Meu garoto, não é? Não é medroso. 
Pois bem: voltou tão impressionado 
Que foi preciso fazer reza nele 
Pra passar... 

(Faz-se um círculo à sua volta. Comentários ad lib.) 

UMA TERCEIRA MULHER 
Ih, menina! 

UMA QUARTA MULHER 
Como foi? 

A PRIMEIRA MULHER 
Foi assim: meu garoto vinha vindo 
Da banca de engraxate (vocês sabem 
Como ele, de levado, sobe o morro 
Lá pela ribanceira ... ) muito bem. 
Vinha assim vindo. Estava escurecendo 
Quando ele entrou na mata. De repente 
Vê uma aparição! Esfrega os olhos: 
Não, era Orfeu! Orfeu todo de branco 
Como anda sempre, violão no peito 
Braços abertos, boca com um sorriso 
Como esperando alguém, alguém que veio 
Porque ele olha pro lado de repente 
Abre os braços assim e sai correndo 
Vai embora. Meu filho segue ele 
Mas Orfeu se escondeu quem sabe onde... 
Pobrezinho. Tal qual alma penada... 
Talvez pior, que está penando em vida! 

(Comentários ad lib.) 

A SEGUNDA MULHER 
E nunca mais ninguém ouviu um som 
Sair do violão... 

A TERCEIRA MULHER 
É. Não tá certo. 
Desandou tudo nesse morro. Tudo. 
Quanta briga, meu Deus, que tem saído 
Quanta gente mudando pra outros morros 
Foi mau olhado, foi... 

A QUARTA MULHER 
Cala essa boca! 
Não chama mais desgraça, criatura 
Eu por mim vou-me embora. Aqui não fico. 

(Comentários ad lib.) 

A PRIMEIRA MULHER 
E Mira, ocê já viu? Tá doida, Mira... 
Doida varrida, Mira... Diz que fica 
Lá na Tendinha, Mira e mais aquelas 
Outras rameiras que têm lá por cima 
Fazendo toda a sorte de estrupício 
Dizendo cada nome e enchendo a cara 
Fazendo bruxaria noite adentro 
E falando que foi por causa dela 
Que Aristeu, o criador de abelhas 
Esfaqueou Eurídice, e que Orfeu 
Está maluco assim por causa dela 
Não por causa de Eurídice... Ora veja! 
Ninguém não quer passar mais lá por perto... 
E com toda razão. Eh, mundo louco! 

Um HOMEM 
E lembrar desse morro há uma semana... 
Nem parecia um morro da cidade! 
Uma calma, um prazer, uma harmonia 
Quanto samba de Orfeu de boca em boca 
Quanta festa com Orfeu sempre presente 
Quanta falta de briga... 

(Comentários ad lib.) 

UM OUTRO HOMEM 
Eu que o diga!... 
Foi Orfeu quem mudou a minha vida 
Devo o que sou a ele. Antigamente 
Era só valentia, briga à-toa 
Té que ele veio e conversou comigo. 
Orfeu não era um homem, era um anjo... 
Agora digam: valeu a pena?... Qual! 
Mulher é perdição... 

UMA OUTRA MULHER 
E não faltava nada pra ninguém. 
Qualquer necessidade, não sei como 
Orfeu sabia e logo aparecia 
Um dinheirinho - tudo samba dele... 
Uma tristeza em casa? uma quizília? 
Ele vinha, mexia, se virava 
Sapecava um sambinha de improviso 
Brincava... Um anjo! Tinha pés de santo... 

(Uma mulher põe-se a chorar e sai correndo da cena.) 

A SEGUNDA MULHER 
Tadinha. Era tarada por Orfeu. 
Foi namorada dele antes de Eurídice 
Nunca mais esqueceu... 

(Ouve-se distante a sirene de uma ambulância que pouco depois cessa. Logo em seguida entram os ruídos longínquos de um batuque batido sobre caixas e latas. Esses ruídos devem se aproximar progressivamente durante as cenas que seguem.) 

A PRIMEIRA MULHER 
É a ambulância! 

(Corre ao barracão e grita da porta.) 

Eh, seu Apolo. Eu acho que é a ambulância… 

APOLO (aparecendo à porta) 
Coitada. Tá que é um trapo. Mas não dorme. 
Choro sempre correndo do olho aberto A mão no coração. 

A PRIMEIRA MULHER 
Avisa ela 
Que é pra depois não dar alteração... 

APOLO 
Obrigado. 

(Entra. O som do batuque que sobe faz-se cada vez mais próximo. Surge, esfalfado, o homem que desceu para chamar a ambulância, acompanhado de um outro. Trazem com eles uma maca.) 

O HOMEM 
Tá pronto, minha gente! 
Trouxe a maca. A ambulância está embaixo 
Que caras mais folgados... Adivinha 
O que disse o doutor?... "Vocês são fortes 
Subam e tragam a mulher que eu espero embaixo 
E depressa que eu tenho um caso urgente 
Me esperando…" 

UM OUTRO HOMEM 
Essa sopa vai acabar... 

(Ouve-se dentro do barracão um grito desesperado de Clio.) 

CLIO 
Não! Eu não quero ir! Me deixem em paz! 
Eu quero o meu Orfeu! Cadê meu filho? 
Onde está ele? Apolo, eu quero ele! 

APOLO 
Tá bem, minha filha. Fica sossegada. 
Foi Orfeu quem mandou buscar você 
Tá te esperando. Vem. 

CLIO 
Mentira tua! 
Isso é mentira tua! Ah, Deus do céu 
Por que sofrer assim? 

APOLO (surgindo à porta) 
Vocês aí... 
Me ajudem por favor... 

(Dois homens adiantam-se e entram no barracão. Ouvem-se de início murmúrios, depois berros seguidos de ruídos de luta e coisas quebradas. Em seguida Clio surge à porta esfrangalhada. Seu aspecto é terrível.) 

CLIO 
Por caridade! 
Não me levem daqui! Ah, não me levem 
De junto de meu filho. Eu quero ele 
Doido mesmo, é meu filho, é meu Orfeu 
Por caridade, vão buscar meu filho 
Vocês sabem, Orfeu da Conceição 
Sujeito grande, violão no peito 
Tá sempre por aí... Vocês conhecem 
É o meu Orfeu... Dizem que endoideceu 
Mas é mentira, eu sei. Orfeu é músico 
Sua música é vida. Sem Orfeu 
Não há vida. Orfeu é a sentinela 
Do morro, é a paz do morro, Orfeu. Sem ele 
Não há paz, não há nada, só o que há 
É uma mãe desgraçada, uma mãe triste 
Com o coração em sangue. E tudo isso 
Por causa de uma suja descarada 
Uma negrinha que nem graça tinha 
Uma mulher que não valia nada! (subitamente possessa) 
Descarada! Ah, nasce de novo, nasce 
Pra eu te plantar as unhas nessa cara 
Pra eu te arrancar os olhos com esses dedos 
Pra eu te cobrir o corpo de facada! (muda de repente de tom) 
Não, ela não morreu! Meu Deus não deixa! 
Eu quero ela pra mim, eu quero Eurídice 
Só um instantinho eu quero ela pra mim! 
Eu juro que depois fico boazinha 
Prometo, Deus do céu! Não quero nada 
Só quero que me levem à cova dela 
Que é pra eu cavar dentro daquela terra 
Desenterrar o corpo da rameira 
Ver ela podre, toda desmanchada 
Cheia de bicho... 

APOLO (corre para ela) 
Chega, Cliol Chega! 

CLIO (sacudindo-o longe) 
Ah, chega, Ah, chega! Até você, Apolo 
Defendendo a rameira... 

(Voa contra ele tentando agatanhá-lo. Vários homens correm em socorro de Apolo e dominam Clio. Ela luta furiosamente até que, exausta, se abate.) 

APOLO 
Pronto. Agora 
Ponham ela na maca. E vamo' embora. 

(Nesse momento entra em cena opessoal do batuque, cujo ritmo deve vir se aproximando ao longo das cenas anteriores. É um grupo de meninos engraxates, e batem com as escovas em suas caixas e latas. Não dão muita atenção ao que se passa e vão se acomodar a um canto, sem parar de bater, enquanto os circunstantes arrumam Clio na maca.) 

UM MENINO (cantando) 
Paz muita paz! 
Paz muita paz! 
Que falta nesse mundo que ela faz, rapaz... 

SEGUNDO MENINO (que parece o chefe do bando) 
Não, essa não! Vamos cantar aquela 
Outra de Orfeu, aquela que ele deu 
Pra mim... 

TERCEIRO MENINO 
Você enche com esse teu sambinha... 

SEGUNDO MENINO 
Tás aí pra isso, tás? Vá! Taca peito. 

(O batuque entra, os meninos batendo nas caixas, enquanto o outro grupo começa a se movimentar, acompanhando a maca que transporta Clio. Ao mesmo tempo se inicia em voz baixa, que à medida vai crescendo, uma salve-rainha rezada pelas mulheres. Aos poucos, com a progressão da reza, as pessoas que restam começam a se ajoelhar, enquanto a oração prossegue em meio ao batuque e às imprecações distantes de Clio. Os meninos cantam "Eu e o meu amor"). 

OS MENINOS 
Eu e o meu amor 
E o meu amor... 
Que foi-se embora 
Me deixando tanta dor 
Tanta tristeza 
No meu pobre coração 
Que até jurou 
Não me deixar 
E foi-se embora 
Para nunca mais voltar... 
La-ra-ra-ra-la 
La-ra-ri-la-ra-ra-ra (bis) 

(Repetem o samba cada vez com mais gosto, ao sabor do batuque. A reza prossegue, enquanto alguns homens e mulheres remanescentes saem com ar triste. De longe chegam gritos bêbados de mulheres, gargalhadas perdidas, ecos melancólicos de uma orgia a se processar em algum lugar no morro. A noite cai rapidamente. Ao se acenderem as luzes da cidade ao longe, a cena escurece, surgindo, logo após, o plano da Tendinha.) 

PLANO DA TENDINHA 

(Um pequeno bosque no alto do morro, de árvores esparsas, solitárias. Noite de lua cheia. Um barracão com uma tabuleta: Tendinha. Ruído de conversas e gargalhadas de homens e mulheres no interior, com trechos ocasionais do samba anterior cantados agudamente. Algumas mulheres bêbadas saem para o terreiro em frente, entre as quais Mira.) 

MIRA (trocando as pernas, subitamente explode) 
Pára esse samba, pára esse negócio 
Senão eu corto os cornos dum! 

(O samba, no interior da Tendinha, continua. Mira põe as mãos nos ouvidos e de repente investe, porta adentro, e faz parar o samba, em meio à agitação geral.) 

UMA MULHER (bêbada) 
Que folga! 
Que é que tu tás pensando aí, hein Mira? 
Manéra, Mira… (aos circunstantes) Vamos com esse samba 
Pessoal! Tem umas caras que não quer 
Mas tem outras que quer… Então, que é isso? 
Quem é que manda aqui: é homem ou Mira? 

MIRA 
Vai-te tu sabes muito bem pra onde... 
Põe banca não, perua, que eu te manjo... 
Tu não dás nem pra saída. 

A MULHER (desdenhosa) 
Tirei de letra... Vai encher outro, Mira... 
Se tu fosses mulher como eu, Orfeu 
Não te largava igual que te largou 
Pior que um pano de cozinha. (ri histérica) Eu, não! 
Orfeu ficou comigo uma semana: 
Eu, a bacana! 

MIRA (as mãos nos quadris) 
Tu? Muito bacana... 
Bacana como casca de banana... 
Bacana como fundo de bueiro... 
Bacana como a sola do meu pé... 
Assim é que tu é: muito bacana! 

A MULHER (ameaçadora) 
Te güenta, Mira... 

MIRA (fazendo dois passos para ela) 
Güenta você, mulher! 

(Investe sobre ela e as duas se atracam. Logo acorrem homens e mulheres da Tendinha, que as separam.) 

A MULHER (debatendo-se) 
Deixa essa cara vir, deixa ela vir... 
Vem, Mira! Pode vir! 

MIRA (soltando-se dos que a seguram) 
Dá até pra rir... 

(Os circunstantes carregam a mulher e algumas companheiras de Mira cercam-na. Dentro em pouco, o ambiente dentro da Tendinha parece se ter restabelecido e logo se ouve um novo samba, seguido de cantos e gargalhadas gerais.) 

TODOS (em coro) 
Não posso esquecer 
O teu olhar 
Longe dos olhos meus... 
Ai, o meu viver 
É te esperar 
Pra te dizer adeus 
Mulher amada! 
Destino meu! 
É madrugada 
Sereno dos meus olhos já correu... 

UMA MULHER 
Deixa isso prá lá, Mira... 

MIRA 
É. Não tem nada... 
Eu quero é encher a cara! 

OUTRA MULHER 
Tou nessa, hein Mira... 

O HOMEM 
Com'é, Mira? Eles tão te reclamando... 
Seja legal e vem fazer as pazes... 
Vamos beber e cantar samba, Mira 
Que a morte é certa... 

MIRA (subitamente grave) 
É mesmo. A morte é certa... 
É a única coisa certa nesse mundo. 

(Volta-se e subitamente corre para a Tendinha, seguida das outras. Em breve, os ruídos, as conversas, as exclamações indicam que as duas mulheres fizeram as pazes e o ambiente de farra se retomou. Logo depois, alguém começa a tocar um chorinho macio ao cavaquinho. Ato contínuo, entra em cena Orfeu. Vem cauteloso, por entre as árvores, olhando para o alto com um arperdido. Traz o violão consigo.) 

ORFEU (a voz surda, como a pedir silêncio) 
Ainda é cedo demais, amiga. A lua 
Está dando de mamar pras estrelinhas... 
Toma o teu tempo. Quando for a hora 
Desce do céu, amor, toda de branco 
Como a lua. O mundo é todo leite 
Leite da lua, e a lua és tu, Eurídice... 
Chega de leve pelo espaço; desce 
Por um fio de luz da lua cheia 
Vem ilusão serena, coisa mansa 
Vem com teus traços abraçar o mundo 
O mundo que sou eu, que não sou nada 
Sem Eurídice... Vem. Baixa de manso 
Surge, desponta, desencanta, explode 
Como uma flor da noite, minha amada... 
Aqui ninguém nos vê. Esses que gritam 
Não vêem, não sabem ver. São todos cegos. 
Cego só não sou eu que te respiro 
Em cada aroma e te sinto em cada aragem 
Cego só não sou eu que te descubro 
Em cada coisa e te ouço em cada ruído 
Cego só não sou eu que te recebo 
Do mais fundo da noite, ó minha amiga 
Minha amiga sem fim! quanto silêncio 
Nos teus passos noturnos desfolhando 
Estrelas! que milagre de poesia 
Em tua ausência só minha! quanta música 
Nesse teu longo despertar na treva! 
Ah! deixa-me gozar de toda a beleza 
Do momento anterior à tua vinda... 
Espera ainda, espera, que o segredo 
O segredo de tudo está no instante 
Que te precede quando vens. Escuta 
Amada... Onde é que estás que não te vejo 
Ainda? e sinto já na noite alta 
O tato de teus seios? Onde pousas 
Anjo fiel, com tuas asas brancas 
A fremir sobre as copas? Ah, sim, te vejo 
Agora... Estás ali... Por que tão triste 
Minha Eurídice? Quem magoou a minha Eurídice? 
Não, não fiques assim... Por que não falas? 
Meu amor, me responde! Minha Eurídice 
Banhada em sangue?! Não! 

(Nesse momento chega um homem à porta da Tendinha e logo depois aparece Mira. Vem muito bêbada e meio descomposta. Um grupo de mulheres no mesmo estado a acompanha, assim como uns poucos homens; mas estes, à vista de Orfeu, retraem-se com respeito.) 

MIRA (alto, mostrando Orfeu) 
É este o cara 
De quem tavam falando? 

UM HOMEM (segurando Mira pelo braço) 
Deixa ele 
Mira... 

(Mira desvencilha-se dele com um sacolejão. Em vista disso o homem dá de ombros, faz um sinal aos outros e vão saindo todos devagar.) 

UM SEGUNDO HOMEM 
Bom, minha gente, vam'a vida. É hora 
De pegar uma boa berçolina. 
Vam'bora pessoal... 

UM TERCEIRO HOMEM 
Vam'bora Mira. 
Deixa o homem em paz! (saem) 

MIRA 
Deixa o homem em paz... Tá boa... 
Tá assim por minha causa... louco, louco... 

UMA MULHER (em tom zombeteiro) 
Ah, é? Passa amanhã.... 

UMA SEGUNDA MULHER (em tom mais zombeteiro ainda) 
É mesmo, Mira? 

(As duas caem na gargalhada, logo acompanhadas pelas outras. À base dessas brincadeiras, as mulheres, bêbadas, dão-se trancos, dançam passos de samba e brincam de capoeira. Mas o ambiente é tenso e ameaçador.) 

MIRA (furiosa) 
Ah, ninguém me acredita... Suas negras! 
Pois já vão ver... 

(Chega-se a Orfeu e sacode-o brutalmente. O músico, que desde o início da cena não parecera dar pelas mulheres, sai do seu transe e olha Mira. A mulher sacode-o, depois num gesto arrebatado colhe-o pela cabeça e beija-o sobre a boca. Em meio a esse beijo, Orfeu, desperto, atira-a longe. Mira rola por cima das outras, e algumas caem.) 

ORFEU (alucinado) 
Pra fora, suas cadelas! 
Pra fora, senão eu... 

(Suspende o punho fechado ameaçadoramente, mas em meio ao gesto parece novamente perder-se. Olha para o alto, atônito, e depois chama baixinho.) 

ORFEU 
Visão... Visão... 

(As mulheres, como possessas, açuladas por Mira, atiram-se sobre ele, com facas e navalhas. Como um Lacoonte, Orfeu luta para desvencilhar-se da penca humana que o massacra. Depois, conseguindo libertarse por um momento, foge coberto de sangue, com as mulheres no seu encalço.) 

PLANO FINAL 

ORFEU (chega correndo, coberto de sangue) 
Eurídice! Eurídice! Eurídice! (cai) 

(A Dama Negra surge da sombra.) 

A DAMA NEGRA (falando com a voz de Eurídice) 
Aqui estou meu Orfeu. Mais um segundo 
E tu serás eternamente meu. 

ORFEU (prostrado) 
Me leva, meu amor... 

(As mulheres entram correndo, esfarrapadas e cobertas de sangue, como fúrias. Ao verem Orfeu caído, precipitam-se sobre ele e cortam-no louca, selvagemente. Depois dessa carnificina, Mira levanta-se de entre as outras mulheres. Traz na mão o violão de Orfeu. Num ímpeto, arremessa-o longe, por cima da amurada. Ouve-se bater o instrumento, num som monstruoso. Mas logo depois uma música trêmula incute, misteriosa e incerta. Apavoradas, as mulheres fogem. A Dama Negra aproxima-se do corpo, envolve-o com seu longo manto, enquanto a música de Orfeu se afirma, límpida e pura. A figura da Dama Negra cobrindo o cadáver de Orfeu com seu manto pouco a pouco esvanece. Entra o Coro.) 

CORO 
Juntaram-se a Mulher, a Morte a Lua 
Para matar Orfeu, com tanta sorte 
Que mataram Orfeu, a alma da rua 
Orfeu, o generoso, Orfeu, o forte. 
Porém as três não sabem de uma coisa: 
Para matar Orfeu não basta a Morte. 
Tudo morre que nasce e que viveu 
Só não morre no mundo a voz de Orfeu. 

FIM DE "ORFEU DA CONCEIÇÃO"