voltarPara uma menina com uma flor

Arma secreta

A notícia dada por um vespertino de que dez mil pintinhos de raça estavam sendo eletrocutados por ordem da Inspetoria Sanitária Animal do Ministério da Agricultura, por estarem contaminados de perigoso mal, foi recebida com a maior indignação por todos os galinheiros livres da cidade. O terrível morticínio, que nem de longe se compara a outros de memória recente, como as chacinas de Guernica, Lídice e Ouradour sem falar nos 6 milhões de judeus torturados e assassinados pelos nazistas - causou, no entanto, grande mal-estar no seio da família galinácea do Brasil, sobretudo por serem as vítimas pobres crianças indefesas. 

Como é sabido, cinco mil pintinhos já haviam sido sacrificados até sábado último, devendo os outros enfrentar o poleiro elétrico nos dias a seguir. Quer dizer: por essas horas o pintalhame todo já deve ter encontrado o seu Criador e não é dificil, com um pouco de imaginação, ver os bichinhos a piar tristemente pelas verdes e enevoadas pastagens do céu das galinhas, na saudade de seus inconsoláveis. 

De posse da notícia, andou o cronista percorrendo vários galinheiros da cidade, encontrando por toda parte um ambiente misto de desolação e revolta, principalmente entre os galináceos prisioneiros, a cujas gaiolas e samburás teve acesso graças a uma permissão dificilmente conseguida com o Fomento da Produção Animal. 

- É uma barbaridade! - disse um garnizé de pés atados. - Se eu conseguir sair daqui eles vão ver comigo!

- E eu que tinha vários sobrinhos lá... - soluçou uma Rhode Island rolando dolorosamente os olhos cheios de lágrimas. 

- Não se importe não, minha filha - retrucou uma galinha-de-pescoço-pelado, que se fazia notar por um certo ar subversivo. - A coisa está por pouco. O revertere vem aí! 

- Qual! - cacarejou uma bela Leghorn. - Você ainda acredita em justiça? Pois bem: eu, minha filha, quero é me divertir. Assim que sair daqui, você vai ver só o galinheiro grã-fino que eu vou pegar. É preciso é aparência... Que é que adianta lutar? Eles são mesmo os mais fortes... Eu não, eu vou é com jeitinho... 

- Galinha! - cacarejou-lhe de volta um pedrês. 

Diante do que, resolveu o cronista bater em retirada, mal habituado que está a um certo cacarejo mais vulgar. Mas a visita a alguns galinheiros particulares, onde o regime de iniciativa privada é evidente, e a outros em franco processo de socialização, produziu efeito idêntico. 

- Soube que morreram como heróis! - disse um galinho carijó, - Apesar de crianças, enfrentaram a morte com a bravura característica da raça! Estamos providenciando uma reunião no sentido de erguer-lhes um monumento que perdure como o símbolo da nossa revolta. Pobres pintinhos... 

E assim foi em todos os galinheiros. Num último, por sinal localizado no quintal de uma parenta nossa, tivemos oportunidade de falar com um líder da raça. O encontro foi cercado das maiores precauções, mas nos foram feitas revelações que não podemos deixar de transmitir aos leitores, embora sem citar o santo, ou melhor, o galo. Disse-nos o circunspecto bípede: 

- Trata-se de um ato de desespero, um ato de medo, meu caro plumitivo. Eles não sabem, no entanto, que a coisa está muito mais avançada do que eles pensam. As condições mudaram. O senhor não vê, por exemplo, essa galinha que apareceu em Rondolândia, em Goiás, e que põe ovos brancos e azuis através de dois sistemas de fecundação e postura independentes? Isso é uma arma com que eles não contam. No fundo, ficam atribuindo mais esse fenômeno à bomba atômica, mas se enganarn redondamente... Para nós, isso é pinto!