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A última viagem de Jayme Ovalle

Rio de Janeiro , 1962

A última viagem de Jayme Ovalle

Ovalle não queria a Morte 
Mas era dele tão querida 
Que o amor da Morte foi mais forte 
Que o amor do Ovalle à vida. 

E foi assim que a Morte, um dia 
Levou-o em bela carruagem 
A viajar - ah, que alegria! 
Ovalle sempre adora viagem! 

Foram por montes e por vales 
E tanto a Morte se aprazia 
Que fosse o mundo só de Ovalles 
E nunca mais ninguém morria. 

A cada vez que a Morte, a sério 
Com cicerônica prestança 
Mostrava a Ovalle um cemitério 
Ele apontava uma criança. 

A Morte, em Londres e Paris 
Levou-o à forca e à guilhotina 
Porém em Roma, Ovalle quis 
Tomar a sua canjebrina. 

Mostrou-lhe a Morte as catacumbas 
E suas ósseas prateleiras 
Mas riu-se muito, tais zabumbas 
Fazia Ovalle nas caveiras. 

Mais tarde, Ovalle satisfeito 
Declara à Morte, ambos de porre: 
- Quero enterrar-me, que é um direito 
Inalienável de quem morre! 

Custou-lhe esforço sobre-humano 
Chegar à última morada 
De vez que a Morte, a todo pano 
Queria dar uma esticada. 

Diz o guardião do campo-santo 
Que, noite alta, ainda se ouvia 
À voz da Morte, um tanto ou quanto 
Que ria, ria, ria, ria...

Jayme Ovalle (Belém, PA,1894 - Rio de Janeiro, RJ, 1955) foi músico e compositor. Em 1914, fixou residência no Rio de Janeiro e passou a frenqüentar a noite boêmia, tornando-se companheiro de bambas como Sinhô e Pixinguinha. Adiante, aproximou-se da música erudita, porém, como Villa-Lobos, seu amigo, utilizou temas religiosos e folclóricos em suas mais famosas composições: Berimbau, Três pontos de Santo, Chariô, Aruanda e Estrela do Mar. A notoriedade veio com Azulão, melodia a qual Manuel Bandeira juntou seus versos. Era querido por escritores, pintores e músicos.

Assim Vinicus de Moraes definiu o amigo Ovalle: "é o poeta em estado virgem. A mais bela crisálida de poesia que jamais existiu desde William Blake. É o mistério poético em toda a sua inocência, em toda a sua beleza natural. É vôo, é transcendência absoluta. É amor em estado de graça." (apud SABINO, Fernando, "Fragmentos de uma suíte ovalliana". Jornal do Brasil, 15.07.1974.)