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P(B)A(O)I

Rio de Janeiro , 2004

Rio de Janeiro
A Carlos Drummond de Andrade, 
que com seu só título Boitempo 
me deu a chave deste poema 

Pai 
Modorrando de tarde na cadeira 
De balanço, a cabeça cai-não-cai. 
Pai 
Espantando o moscardo 
Feito o boi faz com o rabo 
Zum! iridesceu, se foi, múu. 
Pai. Ah, como dói 
Lembrar-te assim, pai pé-de-boi 
Sentado à mesa mastigando sonhos 
Boipai, entre as samambaias e avencas 
Do pequeno jardim, utilinútil, ai... 
Paiboi, paiboiota, boipapai 
Babando amor no curral das acácias 
Quebrando ferrolhos com a força 
Dos cascos fendidos para não entrar mais boi 
No chão de dentro, igual a mim... 
Ah, como dói lembrar-te, boi 
Triste, boiassim, a córnea branca 
No olho trágico, ruminando o medo 
Pelo novilho tresmalhado. 
Pai. Boi. 
Olhando do portão o chão de fora 
Na noite escura, múu, à espera. Onde estou eu 
Teu vitelão insone, onde? 
Nas tetas de que rês? Em que pasto? 
Que não o teu, e da boieira 
Que também já se foi? Boipai 
Paiboi. 
Muge-me, boi-espaço 
Da tua eternidade as cantigas 
Mais lindas que soavas com teus dedos 
Ungulados nas cordas da viola 
Hoje partida. Geme 
Boi-da-guia, tua nunca boesia 
Dá-me, boi-de-corte 
Um quilo de tua alcatra decomposta 
Tua língua comida 
Um carrinho de mão de tua bosta 
Com que fertilizar minha poesia 
Neste instante transposta. 
Para plantar meu novo verso 
Menos eu, mais canção, menos enxerto 
Não posso prescindir da tua morte 
Teus ossos, teu estrume 
Tu bom pai, tu boipai, tu boiconsorte 
Eu boiciúme.

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