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O Morro do Castelo

Rio de Janeiro , 2004

(A lira que não escreveu Gonzaga) 

Numa qualquer madrugada 
De uma qualquer quarta-feira 
O homem de pouca fé 
Faz uma barba ligeira 
(Que coisa estranha é ter barba... ) 
Toma um rápido café 
E depois, ali na esquina 
De Voluntários da Pátria 
Pega o Largo dos Leões 
E salta na Galeria 
Bem em frente a São José. 

- Irei de boa vontade... 
Uma vez na encruzilhada 
De São José com a Avenida 
Vai seguindo toda a vida 
Contra a viração do mar 
Verás, fechados, uns bares 
Como umas portas de luar 
Mas segue; um pouco adiante 
A um golpe de atiradeira 
Fica a Cruz dos Militares 
Pouco antes dobra à direita 
Verás então a colina 
E na colina, a ladeira... 

- Não tem mais. Puseram abaixo 
Tem sim. Ainda posso vê-Ia 
Subindo em paralelepípedos 
E no alto, luzindo, a estrela 
À beira do precipício... 
Tem sim! Tem sim! Lá está ela 
Parada... e eis-me aqui, Vinicius 
Menino, com meu velho avô 
E minha branca avozinha 
Que com um beijo me acordou... 

- É inútil. Teu avô morreu... 
Não morreu! Mentira tua! 
Meu avô é um velho lindo 
Com um olhar sempre altaneiro 
E que anda sempre de alpaca 
Ainda agora posso vê-lo 
À luz da aurora imediata 
Subindo, sempre subindo 
Pelo morro do Castelo 
Em demanda do mosteiro... 

- Que Castelo? Já acabou! 
Já acabou? Mas que absurdo! 
Me lembro tão bem da entrada 
Da água benta, do som surdo 
E envolvente dos harmônios 
A me expulsar os demônios 
Da carne sempre acordada... 
Me lembro tão bem da bênção 
Dos turíbulos de incenso 
Balançando, do passar 
Dos sacristães reverentes 
E os farfalhares ardentes 
Da seda ritual, os dísticos 
Bíblicos, a via-sacra 
O misterioso soar 
Das campainhas litúrgicas 
O branco tecido místico 
Das orações... Tudo calmo 
Tudo alto... Tudo imenso... 

- Deus morreu, pobre menino... 
Deus não morreu. Que blasfêmia! 
Deus é o pai da criação 
Deus nos criou, macho e fêmea 
Para nos sacrificarmos 
Pela nossa salvação 
Deus fez Adão, e fez Eva 
De uma costela de Adão 
Deus é Deus, o Pai Eterno 
o caminho e a redenção... 
Não digas... que Ele te leva 
Para as profundas do inferno 
O inferno sem remição... 

- Deus morreu, pobre criança 
Há muito que Deus morreu 
Situa a tua esperança 
No homem que em ti nasceu. 
Deus é o teu medo da vida 
E do que a vida te deu 
Luta por um paraíso 
Cá na terra, e não no céu 
Que o inferno é aqui nesta terra 
Inventado por teu Deus. 
Esquece o mundo passado 
No que não te esclareceu 
Olha a miséria a teu lado 
Que se a fez Deus, obrigado! 
Podes ficar com o teu Deus! 
Luta por teu semelhante 
Pobre, e que Deus esqueceu 
Que se por eles não lutas 
Tampouco se importa Deus. 
Cria a vida de ti mesmo 
E não de um Deus insensível 
Um bem preguiçoso Deus. 
Não digo que tu esqueças 
Dos desaparecidos teus 
Mas não vivas sobre a morte 
Que esta última consorte 
É forte, e a prova de Deus 
Pois se não crês e não crias 
Ao fim dos teus poucos dias 
Dela nem te salva Deus!