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O eleito

Rio de Janeiro , 2004

Itatiaia
Quando eu era menor na grande moradia 
De minha avó materna e de meu pobre avô 
Muitas vezes senti, como alguém que sonhou 
Pesar sobre meu corpo o olhar da minha tia 

Miserável, na frente mesmo dos avós 
Que, velhos, sem amor, conversavam comigo 
Deixava-me molhar de um riso de mendigo 
Tremendo à comoção de uma volúpia atroz. 

Na penumbra da sala lívida, amarela 
Que te viu, minha mãe, antes de mãe, ser filha 
Faminto como um cão no cio, sem família 
Tocava sob a mesa a perna quente dela. 

Ficava assim, as mãos geladas, os pés úmidos 
Sem forças para olhar aquela mulher feia 
Que tinha pêlos oleosos sob a meia 
E esmagava na blusa os belos seios túmidos. 

A náusea de mim mesmo abria-me a garganta 
Tão forte quanto o mal que me engrossava o sangue 
E era como se eu fosse alguma coisa exangue 
E como se ela fosse alguma coisa santa. 

Meus sonhos de beleza e meus votos de ideal 
Debandavam como asas tristes e malferidas 
Meu sonho era beijar as nádegas partidas 
Ao desvendar o nu daquele ser fatal. 

Com mãos fantásticas eu via-me, anjo impuro 
Ereto na treva, o ventre despido a meio 
Feroz, a mastigar-lhe a carne azul do seio 
Sentindo-me ferir no seu corpete duro. 

Por fim, sem poder mais, contendo à toa o hausto 
Do gozo, corria a chorar para o banheiro 
Onde, entre vômitos, o olfato aberto ao cheiro 
Acre, masturbava-me até ficar exausto. 

Quem jamais poderá dizer o medo louco 
O indizível pavor de voltar que me vinha 
De transpor a porta, olhar minha avó velhinha 
E meu finado avô, que adormecera um pouco. 

E entretanto, cheio de angústia, delicado 
De angústia, voltava, abria de manso a porta 
Incapaz de ferir aquela paz já morta 
Com a mais leve emoção de me sentir culpado. 

Pobre criança! que Deus implacável fizera 
Que perdesse tão cedo as ilusões mais belas 
Tu que devias ir viajando entre as estrelas 
A cantar e a correr tonto de primavera?!

 
Itatiaia, 1937.