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Carta aos puros

Rio de Janeiro , 1935

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros 
E em cujos olhos queima um lento fogo frio 
Vós de nervos de nylon e de músculos duros 
Capazes de não rir durante anos a fio. 

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos 
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios 
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios 
E desejais ser fuzilados sem o lenço. 

Ó vós, homens iluminados a néon 
Seres extraordinariamente rarefeitos 
Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos 
E vos ciliciais à idéia do que é bom. 

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros 
E vos julgais os portadores da verdade 
Quando nada mais sois, à luz da realidade, 
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros. 

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte 
E vos enclausurais no instinto que vos ceva 
Vós que vedes na luz o antônimo da treva 
E acreditais que o amor é o túmulo do forte. 

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito 
E erigis a esperança em bandeira aguerrida 
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida 
E tanto mais porque é um dom público e gratuito. 

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares 
Onde o homem que ama oculta o seu segredo 
Vós que viveis a mastigar os maxilares 
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo. 

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos 
Que tudo equacionais em termos de conflito 
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito 
E não sabeis vencer se não houver vencidos. 

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres 
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos 
E maiusculizais os sentimentos nobres 
E gostais de dizer que sois homens honestos. 

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres 
Que só articulais para emitir conceitos 
E pensais que o credor tem todos os direitos 
E o pobre devedor tem todos os deveres. 

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta 
Em nome de vossa vã sabedoria 
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta 
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria. 

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra 
Falsos chimangos, calabares, sinecuros 
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra... 
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.