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Ah, como eram belos neste instante os ermos marítimos...

Rio de Janeiro , 2004

Quarta-Feira da Paixão
Ah, como eram belos neste instante os ermos marítimos 
E como era misterioso e distante o poente da cinza 
Que como um fato, oculto nos pálidos confins 
Abria a pupila amarela da Lua, em carícias e ritmos... 

E ela veio até mim, diáfana, por entre a teia 
Da neblina, e eu, lírico de emoção, prendi-a, e amei-a 
E nas bordas do mar, entre os sussurros de outras vagas 
Confiei-lhe os carinhos da outra amiga, de outras plagas... 

No entanto fiquei, entre o horizonte leve e a noite leve 
O corpo atento e o gesto breve, sobre a areia 
E o mar, verde como o meu desejo, me trazia a sereia 
Que vinha sem cantos, e com encantos que a voz não descreve. 

Lembro-me até que os seus seios eram brancos como a borracha 
E nela se prendiam as algas da maré baixa 
E que o seu sexo era puro e alto, e negro 
O pêlo sedoso que o vestia, e cuja fartura me alegrou. 

No amor, seu corpo agonizara em mil transportes 
E seu gozo vibrava em Betelgeuse, a estrela 
Que alta, no espelho do céu, era o infinito dela 
Assim como uma vida é o espelho de mil mortes. 

E depois, quando ela se foi, sem remorso e sem vida 
Já nada mais restava da amiga desmerecida 
E era como se o oceano verde, a murmurar de novo 
Contivesse todo o meu afeto, e o meu desejo, e o meu segredo… 

E foi num dia, como eu estivesse a apascentar 
A minha tristíssima poesia, pelas campinas cérulas do mar 
Que veio e fugiu uma cigana, visão de luz e ouro 
E que tinha olhos azuis amanhecendo um véu louro...