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VINICIUS: POESIA E CANÇÃO (AO VIVO) VOL. 1

Mercury, 1966

Direção e produção artística: Roberto Quartin e Wadi Gebara
Gravado ao vivo no Teatro Municipal de São Paulo em dezembro de 1965.
  • Samba da bênção

    Vinicius de Moraes, Baden Powell

    Cantado 

    É melhor ser alegre que ser triste 
    Alegria é a melhor coisa que existe 
    É assim como a luz no coração 

    Mas pra fazer um samba com beleza 
    É preciso um bocado de tristeza 
    É preciso um bocado de tristeza 
    Senão, não se faz um samba não 

    Falado 

    Senão é como amar uma mulher só linda 
    E daí? Uma mulher tem que ter 
    Qualquer coisa além de beleza 
    Qualquer coisa de triste 
    Qualquer coisa que chora 
    Qualquer coisa que sente saudade 
    Um molejo de amor machucado 
    Uma beleza que vem da tristeza 
    De se saber mulher 
    Feita apenas para amar 
    Para sofrer pelo seu amor 
    E pra ser só perdão 

    Cantado 

    Fazer samba não é contar piada 
    E quem faz samba assim não é de nada 
    O bom samba é uma forma de oração 
    Porque o samba é a tristeza que balança 
    E a tristeza tem sempre uma esperança 
    A tristeza tem sempre uma esperança 
    De um dia não ser mais triste não 

    Ponha um pouco de amor numa cadência 
    E vai ver que ninguém no mundo vence 
    A beleza que tem um samba, não 

    Porque o samba nasceu lá na Bahia 
    E se hoje ele é branco na poesia 
    Se hoje ele é branco na poesia 
    Ele é negro demais no coração 

    Falado 

    Eu, por exemplo, o capitão do mato 
    Vinicius de Moraes 
    Poeta e diplomata 
    O branco mais preto do Brasil 
    Na linha direta de Xangô, saravá! 
    A bênção, Senhora 
    A maior ialorixá da Bahia 
    Terra de Caymmi e João Gilberto 
    A bênção, Pixinguinha 
    Tu que choraste na flauta 
    Todas as minhas mágoas de amor 
    A bênção, Cartola, a benção, Sinhô 
    A bênção, Ismael Silva 
    Sua bênção, Heitor dos Prazeres 
    A bênção, Nelson Cavaquinho 
    A bênção, Geraldo Pinheiro 
    A bênção, meu bom Cyro Monteiro 
    Você, sobrinho de Nonô 
    A bênção, Noel, sua bênção, Ary 
    A bênção, todos os grandes 
    Sambistas do Brasil 
    Branco, preto, mulato 
    Lindo como a pele macia de Oxum 
    A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim 
    Parceiro e amigo querido 
    Que já viajaste tantas canções comigo 
    E ainda há tantas por viajar 
    A bênção, Carlinhos Lyra 
    Parceiro cem por cento 
    Você que une a ação ao sentimento 
    E ao pensamento 
    Feito essa gente que anda por aí 
    Brincando com a vida 
    Cuidado, companheiro! 
    A vida é pra valer 
    E não se engane não, tem uma só 
    Duas mesmo que é bom 
    Ninguém vai me dizer que tem 
    Sem provar muito bem provado 
    Com certidão passada em cartório do céu 
    E assinado embaixo: Deus 
    E com firma reconhecida! 
    A vida não é brincadeira, amigo 
    A vida é arte do encontro 
    Embora haja tanto desencontro pela vida 
    Há sempre uma mulher à sua espera 
    Com os olhos cheios de carinho 
    E as mãos cheias de perdão 
    Ponha um pouco de amor na sua vida 
    Como no seu samba 
    A bênção, a bênção, Baden Powell 
    Amigo novo, parceiro novo 
    Que fizeste este samba comigo 
    A bênção, amigo 
    A bênção, maestro Moacir Santos 
    Não és um só, és tantos como 
    O meu Brasil de todos os santos 
    Inclusive meu São Sebastião 
    Saravá! A bênção, que eu vou partir 
    Eu vou ter que dizer adeus 

    Cantado 

    Ponha um pouco de amor numa cadência 
    E vai ver que ninguém no mundo vence 
    A beleza que tem um samba, não 

    Porque o samba nasceu lá na Bahia 
    E se hoje ele é branco na poesia 
    Se hoje ele é branco na poesia 
    Ele é negro demais no coração

    Tonga Editora Musical LTDA 
  • Saudade de amar

    Vinicius de Moraes, Francis Hime

    Deixa eu te dizer, amor 
    Que não deves partir 
    Partir nunca mais 
    Pois o tempo sem amor 
    É uma dura ilusão 
    E não volta mais 

    Se tu pudesses compreender 
    A solidão que é 
    Te buscar por aí 
    Andando devagar 
    A vagar por aí 
    Chorando a tua ausência 

    Vence a tua solidão 
    Abre os braços e vem 
    Meus dias são teus 
    É tão triste se perder 
    Tanto tempo de amor 
    Sem hora de adeus 

    Oh, volta 
    Que nos braços meus 
    Não haverá adeus 
    Nem saudade de amar 
    E os dois, sorrindo a soluçar 
    Partiremos depois

    Tonga Editora Musical LTDA
  • Arrastão

    Vinicius de Moraes, Edu Lobo

    Ê! tem jangada no mar
    Ê iê, iêi!
    Hoje tem arrastão
    Ê! todo mundo pescar
    Chega de sombra, João
    J’ouviu

    Olha o arrastão entrando no mar sem fim
    É, meu irmão, me traz Iemanjá pra mim

    Minha Santa Bárbara, me abençoai
    Quero me casar com Janaína

    Ê... puxa bem devagar
    Ê, iê, iêi, já vem vindo o arrastão
    Ê, é a rainha do mar
    Vem, vem na rede, João
    Pra mim

    Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim
    Nunca jamais se viu tanto peixe assim

    Irmãos Vitale S/A
  • Berimbau

    Vinicius de Moraes, Baden Powell

    Quem é homem de bem, não trai
    O amor que lhe quer seu bem
    Quem diz muito que vai, não vai
    E assim como não vai, não vem
    Quem de dentro de si não sai
    Vai morrer sem amar ninguém
    O dinheiro de quem não dá
    É o trabalho de quem não tem
    Capoeira que é bom, não cai
    E se um dia ele cai, cai bem!
    Capoeira me mandou
    Dizer que já chegou
    Chegou para lutar
    Berimbau me confirmou
    Vai ter briga de amor
    Tristeza, camará

    Tonga Editora Musical LTDA 
  • Marcha de quarta-feira de cinzas

    Vinicius de Moraes, Carlos Lyra

    Acabou nosso carnaval 
    Ninguém ouve cantar canções 
    Ninguém passa mais brincando feliz 
    E nos corações 
    Saudades e cinzas foi o que restou 

    Pelas ruas o que se vê 
    É uma gente que nem se vê 
    Que nem se sorri 
    Se beija e se abraça 
    E sai caminhando 
    Dançando e cantando cantigas de amor 

    E no entanto é preciso cantar 
    Mais que nunca é preciso cantar 
    É preciso cantar e alegrar a cidade 

    A tristeza que a gente tem 
    Qualquer dia vai se acabar 
    Todos vão sorrir 
    Voltou a esperança 
    É o povo que dança 
    Contente da vida, feliz a cantar 
    Porque são tantas coisas azuis 
    E há tão grandes promessas de luz 
    Tanto amor para amar de que a gente nem sabe 

    Quem me dera viver pra ver 
    E brincar outros carnavais 
    Com a beleza dos velhos carnavais 
    Que marchas tão lindas 
    E o povo cantando seu canto de paz 
    Seu canto de paz

    Editora Musical Arapuã
  • Lamento no morro

    Vinicius de Moraes, Antonio Carlos Jobim

    Não posso esquecer 
    O teu olhar 
    Longe dos olhos meus 

    Ai, o meu viver 
    É de esperar 
    Pra te dizer adeus 

    Mulher amada 
    Destino meu 
    É madrugada 
    Sereno dos meus olhos já correu

    Tonga Editora Musical LTDA 
    Jobim Music
  • Jesus, alegria dos homens / Rancho das flores

    Vinicius de Moraes, Bach, Baden Powell

    Entre as prendas com que a natureza
    Alegrou este mundo onde há tanta tristeza
    A beleza das flores realça em primeiro lugar
    É um milagre do aroma florido
    Mais lindo que todas as graças do céu
    E até mesmo do mar
    Olhem bem para a rosa
    Não há mais formosa
    É flor dos amantes
    É rosa-mulher 
    Que em perfume e em nobreza
    Vem antes do cravo
    E do lírio e da Hortência
    E da dália e do bom crisântemo
    E até mesmo do puro e gentil malmequer
    E reparem no cravo o escravo da rosa
    Que é flor mais cheirosa
    De enfeite sutil
    E no lírio que causa o delírio da rosa
    O martírio da alma da rosa
    Que é a flor mais vaidosa e mais prosa
    Entre as flores do nosso Brasil
    Abram alas pra dália garbosa
    Da cor mais vistosa
    Do grande jardim da existência das flores
    Tão cheias de cores gentis
    E também para a Hortência inocente 
    A flor mais contente
    No azul do seu corpo macio e feliz
    Satisfeita da vida
    Vem a margarida
    Que é a flor preferida dos que tem paixão
    E agora é a vez da papoula vermelha
    A que dá tanto mel pras abelhas
    E alegra este mundo tão triste
    No amor que é o meu coração E agora que temos o bom crisântemo
    Seu nome cantemos em verso e em prosa
    Porém que não tem a beleza da rosa
    Que uma rosa não é só uma flor
    Uma rosa é uma rosa, é uma rosa
    É a mulher rescendendo de amor
  • Poética I e Poética II

    Vinicius de Moraes

    Poética I

    De manhã escureço
    De dia tardo
    De tarde anoiteço
    De noite ardo.

    A oeste a morte
    Contra quem vivo
    Do sul cativo
    O este é meu norte.

    Outros que contem
    Passo por passo:
    Eu morro ontem

    Nasço amanhã
    Ando onde há espaço:
    - Meu tempo é quando.


    Poética II

    Com as lágrimas do tempo
    E a cal do meu dia
    Eu fiz o cimento
    Da minha poesia.

    E na perspectiva
    Da vida futura
    Ergui em carne viva
    Sua arquitetura.

    Não sei bem se é casa
    Se é torre ou se é templo:
    (Um templo sem Deus.)

    Mas é grande e clara
    Pertence ao seu tempo
    - Entrai, irmãos meus!
  • Tempo Feliz

    Vinicius de Moraes, Baden Powell

    Feliz o tempo que passou, passou 
    Tempo tão cheio de recordações 
    Tantas canções ele deixou, deixou 
    Trazendo paz a tantos corações 

    Que sons mais lindos tinha pelo ar 
    Que alegria de viver 
    Ah, meu amor, que tristeza me dá 
    Vendo o dia querendo amanhecer 
    E ninguém cantar 

    Mas, meu bem 
    Deixa estar, tempo vai 
    Tempo vem 
    E quando um dia esse tempo voltar 
    Eu nem quero pensar no que vai ser 
    Até o sol raiar

    Tonga Editora Musical LTDA 
  • Soneto de separação

    Vinicius de Moraes, Antonio Carlos Jobim

    De repente do riso fez-se o pranto
    Silencioso e branco como a bruma
    E das bocas unidas fez-se a espuma
    E das mãos espalmadas fez-se o espanto

    De repente da calma fez-se o vento
    Que dos olhos desfez a última chama
    E da paixão fez-se o pressentimento
    E do momento imóvel fez-se o drama

    De repente não mais que de repente
    Fez-se de triste o que se fez amante
    E de sozinho o que se fez contente

    Fez-se do amigo próximo, distante
    Fez-se da vida uma aventura errante
    De repente, não mais que de repente
  • Canção do amanhecer

    Vinicius de Moraes, Edu Lobo

    Ouve 
    Fecha os olhos, meu amor 
    É noite ainda 
    Que silêncio 
    E nós dois 
    Na tristeza de depois 
    A contemplar 
    O grande céu do adeus 

    Ah, não existe paz 
    Quando o adeus existe 
    E é tão triste 
    O nosso amor 
    Oh, vem comigo 
    Em silêncio 

    Vem olhar 
    Esta noite amanhecer 
    Iluminar 
    Aos nossos passos tão sozinhos 
    Todos os caminhos 
    Todos os carinhos 
    Vem raiando a madrugada 
    Música no céu

    Irmãos Vitale S/A
  • A brusca poesia da mulher

    Vinicius de Moraes

    Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado
 Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido 
herói sem mácula
 Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco quilos
 Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as 
 confidências 
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas 
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.
 Eis que se anuncia de modo sumamente grave 
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância
 já me chega o rastro. É ela uma menina, parece de plumas
 E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos 
ventos Empós meu canto. É ela uma menina.
 Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina
 Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes
 Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos
 Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos
 Para cantar seus réquiens e os falsos profetas
 A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras. 
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa
 Em rodopios nítidos
 Criando vácuos onde morrem as aves.
 Seu corpo, pouco a pouco Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo
 Como uma escura rosa voltejante
 Surgida de um jardim imenso em trevas.
 Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos!
 Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!
 Alvoroçai-me, auroras nascituras! Eis que chega de longe, como a estrela
 De longe, como o tempo 
A minha amada última!
  • Texto sobre pobre menina rica

    Otto Lara Resende

    Fala de Susana de Moraes
  • Primavera

    Vinicius de Moraes, Carlos Lyra

    O meu amor sozinho 
    É assim como um jardim sem flor 
    Só queria poder ir dizer a ela 
    Como é triste se sentir saudade 

    É que eu gosto tanto dela 
    Que é capaz dela gostar de mim 
    E acontece que eu estou mais longe dela 
    Que da estrela a reluzir na tarde 

    Estrela, eu lhe diria 
    Desce à terra, o amor existe 
    E a poesia só espera ver 
    Nascer a primavera 
    Para não morrer 

    Não há amor sozinho 
    É juntinho que ele fica bom 
    Eu queria dar-lhe todo o meu carinho 
    Eu queria ter felicidade 

    É que o meu amor é tanto 
    Um encanto que não tem mais fim 
    E no entanto ele nem sabe que isso existe 
    É tão triste se sentir saudade 

    Amor, eu lhe direi 
    Amor que eu tanto procurei 
    Ah, quem me dera eu pudesse ser 
    A tua primavera 
    E depois morrer

    Tonga Editora Musical LTDA 
    MCK Produções