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TOQUINHO E VINICIUS

RGE, 1971

  • Essa menina

    Vinicius de Moraes, Toquinho

    Você não tem mesmo o que fazer, essa menina 
    Como é que você já fica toda feminina 
    Como é que você olha pra mim 
    Com essa falta de respeito 
    Olhe que isso assim não está direito, essa menina 

    Como é que você novinha assim toda se empina 
    Como é que você quando me vê 
    Sai requebrando desse jeito 
    Tudo nesta vida tem a sua hora, viu? 
    Pois você me diga agora onde é que já se viu 
    Querer ser colhida assim tão fora de estação? 
    Olhe, essa menina, suma, vá-se embora, tenha compaixão 

    Eu já nem sei mais o que fazer com essa menina 
    Sem desmerecer sua beleza tão divina 
    Bem, ela vai ver, então vai ser 
    Tal como manda a natureza, viu?

    Tonga Editora Musical LTDA
  • Maria vai com as outras

    Vinicius de Moraes, Toquinho

    Maria era uma boa moça 
    Pra turma lá do Gantois 
    Era a Maria vai com as outras 
    Maria de coser, Maria de casar 

    Porém o que ninguém sabia 
    É que tinha um particular 
    Além de coser, além de rezar 
    Também era Maria de pecar 

    Tumba-ê, caboclo, tumba lá e cá 
    Tumba-ê, guerreiro, tumba lá e cá 
    Tumba-ê, meu pai, tumba lá e cá 
    Não me deixe só, tumba lá e cá 

    Maria que não foi com as outras 
    Maria que não foi pro mar 
    No dia dois de fevereiro 
    Maria não brincou na festa de lemanjá 
    Não foi jogar água-de-cheiro 
    Nem flores pra sua Orixá 
    Aí, Iemanjá pegou e levou 
    O moço de Maria para o mar 

    Tumba-ê, caboclo, tumba lá e cá 
    Tumba-ê, guerreiro, tumba lá e cá 
    Tumba-ê, meu pai, tumba lá e cá 
    Não me deixe só, tumba lá e cá

    Tonga Editora Musical LTDA
  • Testamento

    Vinicius de Moraes, Toquinho

    Você que só ganha pra juntar 
    O que é que há, diz pra mim, o que é que há? 
    Você vai ver um dia 
    Em que fria você vai entrar 

    Por cima uma laje 
    Embaixo a escuridão 
    É fogo, irmão! É fogo, irrnão! 


    Falado 

    Pois é, amigo, como se dizia antigamente, o buraco é mais embaixo... E você com todo o seu baú, vai ficar por lá na mais total solidão, pensando à beça que não levou nada do que juntou: só seu terno de cerimônia. Que fossa, hein, meu chapa, que fossa... 


    Cantado 

    Você que não pára pra pensar 
    Que o tempo é curto e não pára de passar 
    Você vai ver um dia, que remorso! 

    Como é bom parar 
    Ver um sol se pôr 
    Ou ver um sol raiar 
    E desligar, e desligar 


    Falado 

    Mas você, que esperança... Bolsa, títulos, capital de giro, public relations (e tome gravata!), protocolos, comendas, caviar, champanhe (e tome gravata!), o amor sem paixão, o corpo sem alma, o pensamento sem espírito 
    (e tome gravata!) e lá um belo dia, o enfarte; ou, pior ainda, o psiquiatra 


    Cantado 

    Você que só faz usufruir 
    E tem mulher pra usar ou pra exibir 
    Você vai ver um dia 
    Em que toca você foi bulir! 
    A mulher foi feita 
    Pro amor e pro perdão 
    Cai nessa não, cai nessa não 


    Falado 

    Você, por exemplo, está aí com a boneca do seu lado, linda e chiquérrima, crente que é o amo e senhor do material. É, amigo, mas ela anda longe, perdida num mundo lírico e confuso, cheio de canções, aventura e magia. E você nem sequer toca a sua alma. É, as mulheres são muito estranhas, muito estranhas 


    Cantado 

    Você que não gosta de gostar 
    Pra não sofrer, não sorrir e não chorar 
    Você vai ver um dia 
    Em que fria você vai entrar! 

    Por cima uma laje 
    Embaixo a escuridão 
    É fogo, irmão! É fogo, irmão!


    Tonga Editora Musical LTDA
  • O poeta aprendiz

    Vinicius de Moraes, Toquinho

    Ele era um menino 
    Valente e caprino 
    Um pequeno infante 
    Sadio e grimpante. 
    Anos tinha dez 
    E asinhas nos pés 
    Com chumbo e bodoque 
    Era plic e ploc. 
    O olhar verde-gaio 
    Parecia um raio 
    Para tangerina 
    Pião ou menina. 
    Seu corpo moreno 
    Vivia correndo 
    Pulava no escuro 
    Não importa que muro 
    E caía exato 
    Como cai um gato. 
    No diabolô 
    Que bom jogador 
    Bilboquê então 
    Era plim e plão. 
    Saltava de anjo 
    Melhor que marmanjo 
    E dava o mergulho 
    Sem fazer barulho. 
    No fundo do mar 
    Sabia encontrar 
    Estrelas, ouriços 
    E até deixa-dissos. 
    Às vezes nadava 
    Um mundo de água 
    E não era menino 
    Por nada mofino 
    Sendo que uma vez 
    Embolou com três. 
    Sua coleção 
    De achados do chão 
    Abundava em conchas 
    Botões, coisas tronchas 
    Seixos, caramujos 
    Marulhantes, cujos 
    Colocava ao ouvido 
    Com ar entendido 
    Rolhas, espoletas 
    E malacachetas 
    Cacos coloridos 
    E bolas de vidro 
    E dez pelo menos 
    Camisas-de-vênus. 
    Em gude de bilha 
    Era maravilha 
    E em bola de meia 
    Jogando de meia - 
    Direita ou de ponta 
    Passava da conta 
    De tanto driblar. 
    Amava era amar. 
    Amava sua ama 
    Nos jogos de cama 
    Amava as criadas 
    Varrendo as escadas 
    Amava as gurias 
    Da rua, vadias 
    Amava suas primas 
    Levadas e opimas 
    Amava suas tias 
    De peles macias 
    Amava as artistas 
    Das cine-revistas 
    Amava a mulher 
    A mais não poder. 
    Por isso fazia 
    Seu grão de poesia 
    E achava bonita 
    A palavra escrita. 
    Por isso sofria. 
    Da melancolia 
    De sonhar o poeta 
    Que quem sabe um dia 
    Poderia ser.

    Tonga Editora Musical LTDA
  • Eu não tenho nada a ver com isso

    Vinicius de Moraes, Toquinho

    Eu não tenho nada a ver com isso 
    Nem sequer nasci em Niterói 
    Não me chamo João 
    E não tenho, não 
    Qualquer vocação pra ser herói 
    Venho de três raças muito tristes 
    E eis por que o viver tanto me dói 

    Deito em minha rede 
    Mato a minha sede 
    Quanta mulher nua na Playboy! 
    Porém daqui a uns anos mais 
    Vão ser cem milhões 
    Cem milhões só de Pelés 
    E de violões 
    Que país mais tão feliz! 

    Deixa o Brasil andar 
    As estatísticas revelam: 
    No ano dois mil 
    Todo mundo vai ser jovem 
    No meu Brasil 

    Reparou como é que eu 
    Ando sutil demais?

    Tonga Editora Musical LTDA
  • Sei lá... a vida tem sempre razão

    Vinicius de Moraes, Toquinho

    Tem dias que eu fico 
    Pensando na vida 
    E sinceramente 
    Não vejo saída 
    Como é, por exemplo 
    Que dá pra entender 
    A gente mal nasce 
    Começa a morrer 
    Depois da chegada 
    Vem sempre a partida 
    Porque não há nada 
    Sem separação 

    Sei lá, sei lá 
    A vida é uma grande ilusão 
    Sei lá, sei lá 
    Só sei que ela está com a razão 

    A gente nem sabe 
    Que males se apronta 
    Fazendo de conta 
    Fingindo esquecer 
    Que nada renasce 
    Antes que se acabe 
    E o sol que desponta 
    Tem que anoitecer 
    De nada adianta 
    Ficar-se de fora 
    A hora do sim 
    É um descuido do não 

    Sei lá, sei lá 
    Só sei que é preciso paixão 
    Sei lá, sei lá 
    A vida tem sempre razão

    Tonga Editora Musical LTDA
  • O velho e a flor

    Vinicius de Moraes, Toquinho, Luis Enrique Bacalov

    Por céus e mares eu andei 
    Vi um poeta e vi um rei 
    Na esperança de saber o que é o amor 
    Ninguém sabia me dizer 
    E eu já queria até morrer 
    Quando um velhinho com uma flor assim falou 

    O amor é o carinho 
    É o espinho que não se vê em cada flor 
    É a vida quando 
    Chega sangrando 
    Aberta em pétalas de amor

    Tonga Editora Musical LTDA
  • O canto de Oxum

    Vinicius de Moraes, Toquinho

    Nhem-nhem-nhem 
    Nhem-nhem-nhem-xorodó 
    Nhem-nhem-nhem-xorodó
    É o mar, é o mar 
    Fé-fé xorodó! 

    Xangô andava em guerra 
    Vencia toda a terra 
    Tinha ao seu lado 
    Inhansã pra lhe ajudar 
    Oxum era rainha 
    Na mão direita tinha 
    O seu espelho onde vivia a se mirar 

    Quando Xangô voltou 
    O povo celebrou 
    Teve uma festa que ninguém mais esqueceu 
    Tão linda Oxum entrou 
    Que veio o Rei Xangô 
    E a colocou no trono esquerdo ao lado seu 

    Inhansã apaixonada 
    Cravou a sua espada 
    No lugar vago que era o trono da traição 
    Chamou um temporal 
    E no pavor geral 
    Correu dali gritando a sua maldição!
  • Morena flor

    Vinicius de Moraes, Toquinho

    Morena flor 
    Me dê um cheirinho 
    Cheinho de amor 
    Depois também 
    Me dê todo esse denguinho 
    Que só você tem 

    Sem você 
    O que ia ser de mim 
    Eu ia ficar tão triste 
    Tudo ia ser tão ruim 
    Acontece que a Bahia 
    Fez você todinha assim 
    Só pra mim

    Tonga Editora Musical LTDA
  • A flor da noite

    Vinicius de Moraes, Toquinho

    Na solidão escura 
    Do velho Pelourinho 
    Matilde, a louca mansa 
    Vivia mercando assim: 
    Olha a flor da noite ... 
    Olha a flor da noite ... 

    Seria a flor da noite 
    A luz da estrela solitária 
    A tremular tão pura 
    Sobre o velho Pelourinho? 
    Ou o som da voz ausente 
    Da menina triste 
    Que mercava o seu triste descaminho: 
    Olha a flor da noite ... 
    Olha a flor da noite ... 

    Ou seria a flor da noite 
    A face oculta atrás da aurora 
    Por quem o homem luta 
    Desde nunca até agora 
    A louca aprisionada 
    Pelos monstros do poente 
    E que avisa e grita alucinadamente: 
    Olha a flor da noite ... 
    Olha a flor da noite ...

    Tonga Editora Musical LTDA