voltarCanções

A brusca poesia da mulher

Vinicius de Moraes

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado
 Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido 
herói sem mácula
 Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco quilos
 Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as 
 confidências 
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas 
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.
 Eis que se anuncia de modo sumamente grave 
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância
 já me chega o rastro. É ela uma menina, parece de plumas
 E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos 
ventos Empós meu canto. É ela uma menina.
 Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina
 Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes
 Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos
 Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos
 Para cantar seus réquiens e os falsos profetas
 A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras. 
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa
 Em rodopios nítidos
 Criando vácuos onde morrem as aves.
 Seu corpo, pouco a pouco Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo
 Como uma escura rosa voltejante
 Surgida de um jardim imenso em trevas.
 Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos!
 Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!
 Alvoroçai-me, auroras nascituras! Eis que chega de longe, como a estrela
 De longe, como o tempo 
A minha amada última!