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Foi muito Oscar demais

Última Hora , 29 de Abril de1952

Depois de um mês em Minas praticamente sem cinema (ou melhor, só cuidando de fazê-lo) fui ver este Sinfonia de Paris (An American in Paris), inspirado na famosa e fuleiríssima peça do mesmo nome, da autoria do compositor George Gershwin. 
Eu não sei se acontece com todo o mundo o que aconteceu comigo. A primeira vez que ouvi George Gershwin, ainda rapazinho, foi num filme que fez época e no qual foi lançada a sua ainda mais famosa "Rhapsody in Blue"; o executante era Paul Whitman, e havia grandes ângulos cinematográficos de clarinetas sexuadas uivando ritmos lancinantes, aproximações e recuos da câmera sobre grupos de metais contrapontados, ganidos luxurientos, entrechoques da seção de ritmos subitamente criando silêncios doridos que davam para visualizar mulheres em ruas desertas a dançar poses fulgurantes de exaltação amorosa. À testa de tudo isso, Paul Whitman e a sua careca luzida.
 
Aqueles acordes ascencionais da música de Gershwin passaram a ser para mim a própria expressão do moderno, do jazz transubstanciado em música. Freqüentemente, quando queria dar forma a algo inexprimível, era à claridade inicial da "Rapsódia azul" que recorria. Não conhecia ainda a palavra sofisticação, mas era evidente que havia muito rato nas minhas águas furtadas porque a verdade é que todos os seus gatos miavam quando aquele grito instrumental, penetrando do patheos da grande cidade, subia em exaltadas espirais suplicantes. 
Depois eu fiquei mais velho, comecei a escutar bom jazz e boa música clássica com um ouvido mais atento e menos sentimental. O resultado é que hoje em dia acho George Gershwin talvez o melhor dos três piores músicos do mundo. O melhor sim; porque sinceramente prefiro uma "Rapsódia azul" ou um "Americano em Paris" a, por exemplo, um "Concerto de Varsóvia". 

Por isso acho o esforço da MGM de modo meritório ao criar alguns bons ballets gênero super-sofisticado - isto é: bons enquanto a gente os vê, porque nos esquecemos de todo aquele vazio e inútil fulgor - sobre uma música tão ruim quanto a de Gershwin. Gene Kelly, de resto, lá está para emprestar-lhe a vitalidade da sua dança viril e espontânea. Kelly de há muito afirmou-se como o melhor bailarino do cinema depois de Astaire, de cujo estilo, aliás, difere bastante e a quem em quase nada imita. O filme conta também com muito sofisticado wit americano, o pianista Oscar Levant, que foi na vida real cupincha mesmo de fato de Gershwin - o que não o recomenda, pois a lenda conta que o compositor era urna reverendíssima besta. 

A garota Leslie Caron tem uma carinha moderna, com o teclado um pouco fora, e dança a contento os ágeis bailados sobre a música deste grande palito-de-jacaré do jazz negro que foi Gershwin. 

Se não sabem o que é palito-de-jacaré, eu explico. Trata-se de um passarinho do Amazonas que ganhou esse apelido porque os jacarés com grande complacência deixam-no palitar-lhes os dentes com o bico dos restos de carne que se grudam nos seus vastos incisivos. George Gershwin faz mais ou menos isso com os jacarés do jazz negro. 

A decoração é em geral boa, copiando pintores impressionistas e modernos da escola de Paris como Renoir, Utrillo, Dufy, etc. A seqüência da dança de Kelly feita sobre os famosos cartazes de Toulouse-Lautrec e das melhores coisas do filme. Há na produção visível e muito louvável tendência para o bom gosto, apesar de freqüentemente o comercialismo hollywoodiano pôr tudo a perder com o seu exagero e a sua desmedida ambição de agradar o público. 

De qualquer modo é forte tantos "Oscares" para uma arte tão de araque. Eu, por mim, apesar da grandiosidade do filme, preferi, por mais discreto, o já passado O pirata, também dirigido por Vincent Minnelli e com Gene Kelly e Judy Garland nos principais papéis, coisa que provavelmente me valerá a pecha do burro por parte de menininhos neuróticos sofisticados de Copacabana e outros subúrbios da zona sul desta Capital esplêndida.