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Fitas e fiteiros

A Manhã , 15 de Outubro de1942

Essa expressão "fazer fita" é de proveniência cinematográfica. O fato de se mostrar pública ou particularmente uma pessoa, por vaidade mais que por negócio, aos olhos de milhares de outras, arrancou do povo a sabedoria desta forma. A fita é hoje a espécie brasileira do show off. Fiteiro é todo aquele que em pequenos jeitos ou modos de ser procura criar uma outra personalidade, na falta ou na pobreza da sua própria. 

Há milhões de fiteiros e maneiras de fazer fita. Uma grande fiteira é, por exemplo, Marlene Dietrich, criadora de um tipo sui generis de fita, que facilmente passa por individualidade. Outra fiteira de raça é Veronica Lake, com aquele cabelo sobre os olhos e o jeitinho de ficar quieta, falando sempre no mesmo tom e revelando inesperadamente um temperamento fora de hora. Hollywood está cheio de fiteiríssimas criaturas: Cecil B. de Mille é o rei da fita. Outro fiteiro - esse de grande qualidade, porque tem a servi-lo um talento real - é Orson Welles. Preston Sturges, então, é a própria fita mascarada de diretor de cinema. 

Homens são, em geral, mais fiteiros que mulheres. A mulher tem essencialmente uma vaidade que lhe é imanente: a vaidade física, e que perdoa uma porção de bobagens, como sola de sapato à Carmen Miranda, barriga de fora, beladona nos olhos, lápis na sobrancelha, e assim por diante. Mas homens, não. E como tem homem fiteiro! Vejam Clark Gable, com aquela máscara de machão: pode haver mais fiteiro? Outro fiteiro jeitoso que nem parece fiteiro é nosso prezado Spencer Tracy. Charles Chaplin é um fiteiro de gênio, fiteiro na vida, porque na obra ele não tem nada de fiteiro não, a não ser em alguns momentos de O grande ditador. 

Literato, intelectual, escritor, é a raça mais fiteira que há. Bate longe artista de cinema. Giraudoux não é um fiteiro toda a conta? O romancista inglês Charles Morgan, há outro mais mascarado? Pegue-se um D'Anunzio. Não é um monstro de fita? E as grandes mulheres então? Quem foi mais fiteira que Isadora Duncan? A condessa de Noailles: que fiteira magnífica! 

Gente nobre ou gente rica com vistas à nobreza, essa cujo único remédio, por defeito de educação e por preguiça de se interessar, é mesmo cair no esnobismo mais desenfreado, tem também uma grande propensão para a fita. O diplomata à moda clássica - ainda há uns restos pelo mundo todo - é um fiteiro danado. Fica tão polido, tão elegante, tão não-me-toques, com medo de estragar o vinco das calças, incapaz de levantar a voz (que adquire imediatamente um tom aveludado e secreto) que é uma coisa louca. Meu querido amigo, o poeta Pedro Nava, é que me fez uma vez uma observação muito exata. Disse-me que, em geral essa sorte de pessoa quer sublinhar tanta coisa na cortesia, na boa educação, nos bons modos, que chegam a adquirir muita vez - fato comum em apresentações, por exemplo - um sotaque levemente português, de tal modo se esforçam por persuadir com o encanto das palavras: "Minha amiga, p'rmita que lhe beije as mãos. Está encantadoira, hoje. E a senhôra sua mãe, não veio? Qu'pena!" 

Um dos maiores fiteiros que há entre nós, no momento, é o jornalista francês Jacques Ebstein (com b, não se esqueçam), sendo que a atual colônia de refugiados conta com alguns de truz, como o escritor Leopold Stern, que tem um livro chamado, nada mais, nada menos que Rio de Janeirô... et moi. Santa fita! E por falar em fita, uma das maiores que tenho visto ultimamente é esse cheque de mil contos dado de presente pelos amigos (serão monarquistas?) dos príncipes que vêm de se casar, unindo mais uma vez o Brasil a Portugal, num consórcio altamente simpático, perturbado apenas por esse gesto fiteiro de parada. Que diabo, mil contos para dois príncipes! Está certo que os três Reis Magos levassem ouro, incenso e mirra ao estábulo onde nasceu, na palha da manjedoura, entre animais humildes e na santa pobreza do carpinteiro José, esse que é para os cristãos o Rei do Mundo, e para quase todos os homens, o maior ser que já nasceu, pela perfeição de sua vida e grandeza de sua filosofia. 

Mas darem os capitalistas ouro a um príncipe - mil contos - só pode ser fita. Mil contos são mil notas de um conto, duas mil de quinhentos mil réis. Fariam a felicidade de duas mil mães pobres, nas nossas favelas, ou nos mocambos sórdidos do Recife ou onde quer haja essa pobreza abjeta de barracões imundos com criancinhas mal nutridas, dormindo em terra batida. Naturalmente que não resolvia nada. Mas dava uma alegria muito maior a mil, duas mil pessoas do que vai dar a Suas Altezas, afinal de contas gente de posses, a quem mil contos não vai fazer uma diferença tamanha. A fita desses generosos capitalistas doadores é para mim a única indesculpável. Antes a dos literatos. Antes, mil vezes antes a dos artistas de cinema.