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Entrevista com mme. Falconetti, a grande intérprete de Joana D'Arc do cineasta Carl Dreyer, bem como o seu pronunciamento no debate sobre cinema silencioso e cinema falado

A Manhã , 9 de Junho de1942

Quando Augusto Frederico Schmidt me disse que mme. Falconetti se achava no Rio, eu cheguei a tatear por uma cadeira. Porque, no fundo, era como se eu tivesse ouvido qualquer coisa assim: "Você sabe quem está hospedada no Copacabana? Joana d'Arc em pessoa...". 

De fato, para mim não há nenhuma diferença essencial. Para mim Joana d'Arc tem o rosto de Falconetti, a cabeça de Falconetti, os olhos de Falconetti. Li o livro de Delteil sem imagem definida da santa, pois só mais tarde veria o filme de Dreyer. Mas já quando li a plaquette de Bernanos, emprestei à jovem Joana a imagem que Dreyer lhe deu. E na Inglaterra, assistindo à peça de Shaw fiquei inteiramente perturbado com o desequilíbrio que me causou ver Joana encarnada em outra mulher que não Falconetti, tão inferior a Falconetti. 

Senti imediatamente que era preciso vê-la, falar com ela. Trasanteontem, passando pelo Amarelinho, dei com Roberto Alvim Correia ingerindo filosoficamente esse mau chá que se serve nos cafés do Rio. Parei para duas palavras. E a conversa, girando em torno de Falconetti, fiquei por perto de uma hora. O nosso Correia tivera a sorte de vê-la interpretando Phèdre, em Paris, e disse-me a respeito, com grande admiração. Mas eu nada dei a Falconetti por causa disso. A imagem de Joana d'Arc me perseguia, naqueles monumentais fundos brancos. Nunca haveria outra. 

Esperando-a, no salão do Copacabana, senti-me extraordinariamente confuso. "Daqui a um instante", pensava eu olhando o elevador, "aquela porta vai se abrir, e Joana d'Arc vai surgir dali, as mãos nas soleiras, a indumentária simples de combate, um cinturão rústico, umas botas de cano curto ajustando as calças coladas, a cabeça quase raspada, os olhos dolorosos, o rosto transportado…" E os grandes detalhes silenciosos, lentos, do filme de Dreyer foram voltando, em sua plástica primitiva, como num poderoso mural. 

Não foi assim, é claro. Falconetti surgiu, bem evidente, mas num elegante e simples vestido preto. Vinha acompanhada de seu filho. Reconheci-a imediatamente e de longe a cumprimentei. Ela dirigiu-se sorrindo para a minha mesa, inteiramente à vontade, vagamente surpresa com a minha mocidade, que as pessoas em geral vêem maior do que realmente é. Estou beirando os trinta. O fato é que disse-lhe essas - duas ou três coisas essenciais que despertam numa mulher uma impressão muito melhor da inteligência de um homem que não importa que títulos literários ou científicos. Falei-lhe do meu reconhecimento pela sua interpretação; de sua beleza inesquecível; e de como essa beleza se transportara integral para seu filho, aquele menino de 11 anos que ali estava. 

Não se passava meia hora e estávamos num táxi rumando à última conferência que Orson Welles dava, na cidade, sobre teatro. Falconetti mostrara-se interessada em ouvir o que Orson Welles dizia sobre uma arte que lhe é tão familiar. Avisei-lhe que provavelmente só pegaríamos o finzinho, pois a hora já ia pelas sete e meia. Mas ela quis arriscar assim mesmo. E a boa sorte fê-la assistir, pelo que me disseram, à melhor parte da palestra: a parte interpretativa. Orson falava de Shakespeare, recitando-lhe trechos. Depois disputou-se com duas ou três pessoas da assistência, defendendo a primazia da linha do poeta em teatro, num excelente confronto com Racine. Falconetti aplaudiu. Terminado o entretien apresentei o Cidadão Kane a Joana d'Arc, com grande surpresa daquele, que se mostrou por um instante emocionado. Foi, posso lhes garantir, um bom momento para mim. Falconetti sentiu a rápida e tensa mudança de expressão no rosto de Orson Welles quando lhe disse ao ouvido: "Chega aqui, é favor; quero apresentar a você a Joana d'Arc de Dreyer, a Falconetti..." Vi-a sinceramente desvanecida. 

Fiquei para jantar com ela, quem não ficaria? E foi ao jantar que ela me contou sobre o filme, de como um dia lhe haviam batido à porta e entrara esse homem que se sentara a seu lado, conversara meia hora com ela e lhe dissera que nunca faria a sua Joana d'Arc com outra mulher, embora tivesse compromissos para um teste com a própria Pitöeff. E de como realmente a ocasião chegara, e Dreyer lhe falara do que ia ser o seu filme: o momento supremo de uma criatura, o quadro fundamental de uma vida de mulher. Não amava especialmente a Joana d'Arc. Queria, sim, revelar uma mulher. Para isso precisava de toda a sua atenção, de toda a sua dedicação, de sua renúncia absoluta. Fê-la chorar como experiência. E avisou-lhe que ela precisaria viver chorando, que não veria ninguém, que só trataria com ele, que precisaria da sua obediência absoluta... 

"Sofri muito", disse mme. Falconetti. "Foram cinco meses de tortura. Às vezes brigávamos. Perguntava-lhe: 'Mas m. Dreyer, se o senhor me deixasse um pouco de liberdade para a ação, eu poderia dar alguma coisa de mim mesma... 

"Ele recusava-se formalmente. Obrigava-me à maior passividade. Filmava coberto por anteparos, para que ninguém me visse e nada me distraísse a atenção do que fazia. Acabada a cena, recolhia-me a uma casa de campo a que só ele tinha ingresso. Falava-me constantemente, incutindo-me a idéia da obra que queria realizar. Era-lhe uma idéia fixa. 

"Não foi à toa que enlouqueceu. Está internado. No dia em que acedi a que me raspassem a cabeça, coisa que ele me pedia sempre, foi de uma extraordinária doçura comigo. Mas nunca o vi tão áspero como quando, desobedecendo a uma ordem expressa sua, dei uma fugida a ver a Joana d'Arc de m. Shaw. Ele soube e correu atrás de mim. Censurou-me amargamente de querer destruir-lhe o trabalho. 'Agora', disse-me, 'vai sair a Joana d'Arc de Shaw, e não a minha!". 

"Nunca mais quis fazer outro filme", suspirou ela. "Tive propostas para Hollywood, mas não as aceitei. Acabei o trabalho num estado de nervos inimaginável. Ao ver o filme pela primeira vez, detestei-o. Não havia nada meu. Era tudo de m. Dreyer. Cinema é isso, é o diretor. Engraçado", sorriu-se, "a grande crítica que se fez ao filme foi a sua falta de desenvolvimento, de progressão. Eu própria achei assim, vendo aquelas figuras em luz e sombra, paradas, lentas. Só mais tarde compreendi que não podia ser de outro modo, que tratava-se de uma visão, de um instante em cinema.". 

Falamos sobre cinema. Contei-lhe o desenvolvimento do debate que se trava nesta coluna e pedi-lhe um pronunciamento. Falconetti sorriu: 

"Dizer que eu..." 

Mas seu alheamento durou pouco. Recobrou-se: 

"Sou pelo silêncio. Meu pronunciamento, não o creio de muito valor. Sou uma atriz de teatro. Mas no que posso julgar, estou de acordo com o ponto de vista. O silêncio é o mais fundamental. Não é possível imaginar uma Joana d'Arc sonora ou falada, nem fazê-la melhor. Estou certa que m. Dreyer diria o mesmo no seu debate. Sabe de uma coisa, tudo o que é décor é pouco importante. O artista que usa disso como meio de expressão, esse não vai longe, já transigiu."

Mme. Falconetti disse mais. Disse coisas muito importantes sobre cinema e teatro, colocando-se sempre dentro de um recato perfeito no julgamento dessas artes. Batera palmas ao ouvir Orson Welles pronunciar que "no actor can beat a good line" (nenhum ator pode com uma boa linha). Isso me bastava. Ao me despedir dela apertei-lhe afetuosamente as mãos que Dreyer sujara de esterco para filmar. Seu rosto que nunca conheceu maquilagem em cinema traduzia um agradecimento. Tive vontade de dizer-lhe como era belo e eterno na minha lembrança seu rosto de Joana d'Arc…