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Em busca do ouro

A Manhã , 14 de Outubro de1943

Quando Chaplin imaginou Em busca do ouro, sobre a hecatombe da Sociedade Donner - que, em 1847, antes da grande corrida para o ouro da Califórnia, organizada em expedição, perdeu-se nas montanhas de neve do longínquo Oeste, encontrando um fim hediondo nas solidões geladas das Rochosas (basta dizer que, martirizados pela fome, os homens devoraram os guias índios que acorreram da colônia Sutter, no rio Sacramento, em seu auxílio, terminando por se liqüidarem e comerem uns aos outros) -, saíra ele de uma experiência que deveria situá-lo definitivamente como trágico. Quero me referir ao seu único filme não cômico, Uma mulher de Paris, também conhecido como A opinião pública, realizado em 1923, e que no dizer do próprio Chaplin era "a obra mais importante" de sua carreira. Desde aí a figura de Carlitos penetra-se de uma humanidade muito mais vasta, e ao poeta que Chaplin sempre fora, vem se unir o revolucionário no grande sentido da palavra. Sua mensagem se precisa em linhas mais nítidas e seu humorismo situa-se, ontologicamente, no plano mesmo da tragédia do homem. Com todos os elementos pacientemente descobertos num labor de 13 anos de criação, Chaplin cria a sua visão do ser total de Carlitos e parte para a maior aventura artística que foi dado a este século conhecer. 

Estreado em 1925, no Egypcian Theatre, de Hollywood, o filme foi considerado uma revolução. Só no argumento gastara Chaplin um ano inteiro de trabalho; para filmar-lhe os exteriores, parte com um enorme bando de vagabundos autênticos para as montanhas de Nevada. Apaixonando-se por Lita Grey (que pretendia elevar à altura de Edna Purviance, sua leading lady até então), Chaplin, que a reservava para o principal papel feminino de Em busca do ouro, desiste à última hora desse projeto, decidido a fazer com sua nova descoberta uma vida matrimonial fora do ambiente dos estúdios, e a substitui por Georgia Hale, a linda bailarina do saloon do filme. Pouco depois Lita Grey deveria arrastá-lo aos tribunais num dos pedidos de divórcio que maior sensação causou nos EUA, acionando-o em um milhão de dólares e fazendo confiscar sua fortuna durante o processo, fato esse que determinou a interrupção da filmagem de O circo, sua produção seguinte. 

Em busca do ouro tem, governando a maioria das figuras especificamente chaplinianas: o vagabundo; o gigante; a moça bonita por quem o vagabundo se apaixona e que lhe surge tão inacessível (desta vez, desta única vez, o vagabundo a consegue como prêmio da fortuna encontrada através de tantas peripécias); o bandido, que até certo ponto sugere o polícia de outros filmes seus, e a malícia das coisas inanimadas; a perseguir sempre o seu ideal de um mundo melhor, dois grandes temas, a Ambição e a Fome, este já explorado anteriormente, mas apenas como elemento cômico em si. Ambição do ouro, que cria a imagem espantosa da interminável fila de vagabundos que se vê logo no início do filme, aproxima e afasta as personagens em jogo com uma violência shakespeariana; e Fome, que lhes enlouquece a imaginação, a ponto de transformar Carlitos, aos olhos de seu amigo e companheiro de infortúnio, o gigante Mac Kay (o falecido Mack Swain), em autêntico galináceo caído do céu para um homem esfomeado. Esses temas, jogados com a amplitude com que Chaplin os joga, adquirem um significado nunca antes visto em sua obra. 

O círculo da criação se alarga impressionantemente. Os valores cômicos passam à categoria de células de um organismo muito mais complexo e rico em sua totalidade. Carlitos luta contra as forças da tragédia desencadeadas, que o comprometem, ser inocente, com essa maldade fatal das coisas grandes. Também, ele nunca se queixa. Queixar-se-ão todas as outras personagens do filme, cuja luta à sua volta como que o faz girar a toa; mas suas reservas de ternura e paciência calam-lhe sempre a revolta dos momentos mais difíceis. 

Em crônica futura pretendo analisar com mais cuidado o filme. Por agora quero apenas deixar clara a minha grande admiração por ele, aconselhando-o muito a todos, como arte, como lição de humanidade e como prova de labor na criação. Confesso que achei inteiramente idiota a idéia de Chaplin de fazer aquele comentário oral para o filme. Enfim, podia ser pior, podia ser um processo qualquer de dublagem que fizesse as personagens de fato dialogar. Como está, nem chove nem molha. Atrapalha, claro, sobretudo por causa da péssima tradução que lhe arranjaram, vezes de um cafajestismo de encabular a pessoa na cadeira. Mas podia ser pior. Confesso que, de todos os cinemas falados, um assim ainda é o que menos mal me faz.