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Considerações à margem do que se pode e deve fazer em matéria de cinema no Brasil

Nova Aguilar , 3 de Março de1943

No ano passado tive a sorte de ser delegado do Brasil a cinco Festivais de Cinema, ou sejam: Punta del Este, Cannes, Berlim, Locarno e Veneza. 

De volta, meus amigos me apelidaram "o Rei do Festival". Foi de fato muito Festival para um homem só. Mas, não se engane ninguém, não se tratou de nenhuma cavação. O caso é que em Punta del Este, sentados a uma mesa do Country Club local, Jorge Guinle, Phil Reissman, então vice-presidente da RKO, e eu tramamos o I Festival Internacional de Cinema do Brasil, ora em organização, e que se realizará em São Paulo, de 12 a 27 de fevereiro de 1954. 

Quando o Itamaraty me enviou a Cannes, em abril do ano findo, tornou-se medida de economia aproveitar minha estada na Europa e mandar-me aos demais Festivais europeus para estudar-lhes a organização, com vistas ao certame nacional. Nesse estágio festivalício, aprendi muita coisa e fiz contatos da maior utilidade não só para o Festival brasileiro como para o nosso cinema em geral. Não é nenhuma pretensão dizê-lo, pois estou certo de que qualquer pessoa com um mínimo de amor ao cinema, bom senso e golpe de vista poderia fazer o mesmo. Em Cannes, por exemplo, tomei parte no Congresso de Autores de Filmes, reunião de grandes perspectivas para os escritores cinematográficos, de vez que luta pelo seu direito à participação de lucros nas rendas líquidas de bilheteria - coisa que não é de todo feita. O escritor cinematográfico, isto é, o argumentista ou roteirista, ou é assalariado no estúdio onde trabalha, ou vende o seu argumento ou roteiro e desaparece de cena. O que a Associação Francesa de Autores de Filmes, promotora do Congresso, quer fazer é justamente criar tantas associações estrangeiras congêneres quantas se fizerem necessárias para lutar numa base de união e força pela obtenção desse direito. Uma das medidas úteis a tomar é, pois, criar a Associação Brasileira de Autores de Filmes, entidade através da qual o Brasil possa fazer-se representado no II Congresso, cuja realização é muito provável seja em São Paulo, por ocasião do Festival de Cinema. Seria, assim, de bom aviso reunir todos os escritores de cinema e tratar de promover com a possível urgência um bate-papo de onde pudesse sair a entidade, como pessoa de direito. Ofereço meu endereço para a lista de adesões: Rua Francisco Otaviano, 138 - ap. 204, Copacabana, Rio de Janeiro. 

Tanto na França como na Itália tive oportunidade de entrar em contato com os dirigentes da Unifrance e Unitalia, poderosas organizações que têm atualmente em mãos os destinos do cinema nos dois países e muito estimulam o sistema de co-produções. Ora, o Brasil é um extraordinário campo potencial para esse novo sistema de produzir filmes, e o interesse no mercado brasileiro por parte de ambas as organizações é manifesto. Há, naturalmente, que exercer rigoroso controle através de contratos, para que se estabeleça uma igualdade de direitos e não haja descaracterizações nacionais a lamentar mais tarde. Mas trata-se de um sistema que pode redundar positivo e que merece estudo e estímulo. Aí estão ótimos assuntos como a imigração italiana, Santos Dumont e outros, capazes de serem co-produzidos pelo Brasil com a Itália e a França. 
Outro contato extremamente promissor para mim, do ponto de vista brasileiro, foi o que tive em Paris com meu velho amigo Paulo Emílio Sales Gomes, hoje em dia vice-presidente da FIAF, ou seja a Federação Internacional dos Arquivos de Filmes. Trata-se, nada mais, nada menos, da organização que regula a vida das cinematecas internacionais, e da qual o Brasil é membro através a Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Paulo Emílio Sales Gomes tem realizado um excelente trabalho dentro da entidade, agindo como representante da Filmoteca Paulista junto à FIAF e criando facilidades para a remessa de filmes clássicos ao Museu. Pois bem: até hoje a Alfândega brasileira onera de direitos a entrada de tais filmes, cuja ação cultural não preciso explicar nem defender. É inútil acentuar a necessidade de uma lei urgente liberando os filmes destinados a cinematecas e cineclubes. Sei de fonte limpa que foi feito expediente nesse sentido ao Ministério da Fazenda, mas até agora nada de resposta. No entanto, essa resposta e essa lei urgem, pois sem elas será impossível fazer as retrospectivas de cinemas estrangeiros programadas para o Festival paulista e que certamente constituirão, do ponto de vista cultural, um dos pontos altos do certame. 

Tanta coisa a fazer... E não vale a pena? Apesar dos empecilhos naturais, da preguiça, da má vontade, do calor, de tudo o que há de contra neste país, o cinema brasileiro está indo misteriosamente para a frente. Depois da vergonha de Areião, em Veneza, a comissão preparatória do I Festival Brasileiro acaba de dar parecer favorável à ida do filme Cangaceiro, da Vera Cruz, dirigido por Lima Barreto, para o Festival de Cannes. Já é uma película que se pode apresentar num Festival Internacional. E - coisa importantíssima! - já existe um órgão selecionador dos filmes destinados a representar o Brasil no estrangeiro. 

Para Veneza há esperanças de que a representação seja ainda melhor. Cavalcanti está trabalhando no seu Canto do mar em Recife, e a Vera Cruz ultima seu Sinhá moça - filmes ambos de classe internacional. Assim dá gosto. O que é preciso é mais organização, mais amor ao bom cinema e menos briga. E ir levando.