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A morte de madrugada

Rio de Janeiro , 2004

Muerto cayó Federico. 
Antonio Machado 

Uma certa madrugada 
Eu por um caminho andava 
Não sei bem se estava bêbado 
Ou se tinha a morte n'alma 
Não sei também se o caminho 
Me perdia ou encaminhava 
Só sei que a sede queimava-me 
A boca desidratada. 
Era uma terra estrangeira 
Que me recordava algo 
Com sua argila cor de sangue 
E seu ar desesperado. 
Lembro que havia uma estrela 
Morrendo no céu vazio 
De uma outra coisa me lembro: 
... Un horizonte de perros 
Ladra muy lejos del río... 

De repente reconheço: 
Eram campos de Granada! 
Estava em terras de Espanha 
Em sua terra ensangüentada 
Por que estranha providência 
Não sei... não sabia nada... 
Só sei da nuvem de pó 
Caminhando sobre a estrada 
E um duro passo de marcha 
Que em meu sentido avançava. 

Como uma mancha de sangue 
Abria-se a madrugada 
Enquanto a estrela morria 
Numa tremura de lágrima 
Sobre as colinas vermelhas 
Os galhos também choravam 
Aumentando a fria angústia 
Que de mim transverberava. 

Era um grupo de soldados 
Que pela estrada marchava 
Trazendo fuzis ao ombro 
E impiedade na cara 
Entre eles andava um moço 
De face morena e cálida 
Cabelos soltos ao vento 
Camisa desabotoada. 
Diante de um velho muro 
O tenente gritou: Alto! 
E à frente conduz o moço 
De fisionomia pálida. 
Sem ser visto me aproximo 
Daquela cena macabra 
Ao tempo em que o pelotão 
Se dispunha horizontal. 

Súbito um raio de sol 
Ao moço ilumina a face 
E eu à boca levo as mãos 
Para evitar que gritasse. 
Era ele, era Federico 
O poeta meu muito amado 
A um muro de pedra seca 
Colado, como um fantasma. 
Chamei-o: Garcia Lorca! 
Mas já não ouvia nada 
O horror da morte imatura 
Sobre a expressão estampada... 
Mas que me via, me via 
Porque em seus olhos havia 
Uma luz mal-disfarçada. 
Com o peito de dor rompido 
Me quedei, paralisado 
Enquanto os soldados miram 
A cabeça delicada. 

Assim vi a Federico 
Entre dois canos de arma 
A fitar-me estranhamente 
Como querendo falar-me. 
Hoje sei que teve medo 
Diante do inesperado 
E foi maior seu martírio 
Do que a tortura da carne. 
Hoje sei que teve medo 
Mas sei que não foi covarde 
Pela curiosa maneira 
Com que de longe me olhava 
Como quem me diz: a morte 
É sempre desagradável 
Mas antes morrer ciente 
Do que viver enganado. 

Atiraram-lhe na cara 
Os vendilhões de sua pátria 
Nos seus olhos andaluzes 
Em sua boca de palavras. 
Muerto cayó Federico 
Sobre a terra de Granada 
La tierra del inocente 
No la tierra del culpable. 
Nos olhos que tinha abertos 
Numa infinita mirada 
Em meio a flores de sangue 
A expressão se conservava 
Como a segredar-me: - A morte 
É simples, de madrugada...

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