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Elegia quase uma ode

Itatiaia-RJ , 1943

Meu sonho, eu te perdi; tornei-me em homem. 

O verso que mergulha o fundo de minha alma 
É simples e fatal, mas não traz carícia... 
Lembra-me de ti, poesia criança, de ti 
Que te suspendias para o poema como que para um seio no espaço. 
Levavas em cada palavra a ânsia 
De todo o sofrimento vivido. 

Queria dizer coisas simples, bem simples 
Que não ferissem teus ouvidos, minha mãe. 
Queria falar em Deus, falar docemente em Deus 
Para acalentar tua esperança, minha avó. 
Queria tornar-me mendigo, ser miserável 
Para participar de tua beleza, meu irmão. 
Queria, meus amigos... queria, meus inimigos... 
Queria... 
                              queria tão exaltadamente, minha amiga! 

Mas tu, Poesia 
Tu desgraçadamente Poesia 
Tu que me afogaste em desespero e me salvaste 
E me afogaste de novo e de novo me salvaste e me trouxeste 
À borda de abismos irreais em que me lançaste e que depois eram abismos verdadeiros 
Onde vivia a infância corrompida de vermes, a loucura prenhe do Espírito Santo, e idéias em lágrimas, e castigos e redenções mumificados em sêmen cru 
Tu! 
Iluminaste, jovem dançarina, a lâmpada mais triste da memória… 

Pobre de mim, tornei-me em homem. 
De repente, como a árvore pequena 
Que à estação das águas bebe a seiva do húmus farto 
Estira o caule e dorme para despertar adulta 
Assim, poeta, voltaste para sempre. 

No entanto, era mais belo o tempo em que sonhavas... 

Que sonho é minha vida? 
A ti direi que és tu, Maria Aparecida! 
A vós, no pudor de falar ante a vossa grandeza 
Direi que é esquecer todos os sonhos, meus amigos. 
Ao mundo, que ama a lenda dos destinos 
Direi que é o meu caminho de poeta. 
A mim mesmo, hei de chamá-lo inocência, amor, alegria, sofrimento, morte, serenidade 
Hei de chamá-lo assim que sou fraco e mutável 
E porque é preciso que eu não minta nunca para poder dormir. 
Ah 
Devesse eu jamais atender aos apelos do íntimo... 

Teus braços longos, coruscantes; teus cabelos de oleosa cor; tuas mãos musicalíssimas; teus pés que levam a dança prisioneira; teu corpo grave de graça instantânea; o modo com que olhas o âmago da vida; a tua paz, angústia paciente; o teu desejo irrevelado; o grande, o infinito inútil poético! tudo isso seria um sonho a sonhar no teu seio que é tão pequeno... 

Ó, quem me dera não sonhar mais nunca 
Nada ter de tristezas nem saudades 
Ser apenas Moraes sem ser Vinicius! 
Ah, pudesse eu jamais, me levantando 
Espiar a janela sem paisagem 
O céu sem tempo e o tempo sem memória! 
Que hei de fazer de mim que sofro tudo 
Anjo e demônio, angústias e alegrias 
Que peco contra mim e contra Deus! 
Às vezes me parece que me olhando 
Ele dirá, do seu celeste abrigo: 
Fui cruel por demais com esse menino... 
No entanto, que outro olhar de piedade 
Curará neste mundo as minhas chagas? 
Sou fraco e forte, venço a vida: breve 
Perco tudo; breve, não posso mais... 
Oh, natureza humana, que desgraça! 
Se soubesses que força, que loucura 
São todos os teus gestos de pureza 
Contra uma carne tão alucinada! 
Se soubesses o impulso que te impele 
Nestas quatro paredes de minha alma 
Nem sei o que seria deste pobre 
Que te arrasta sem dar um só gemido! 
É muito triste se sofrer tão moço 
Sabendo que não há nenhum remédio 
E se tendo que ver a cada instante 
Que é assim mesmo, que mais tarde passa 
Que sorrir é questão de paciência 
E que a aventura é que governa a vida 
Ó ideal misérrimo, te quero: 
Sentir-me apenas homem e não poeta! 

E escuto... Poeta! triste Poeta! 
Não, foi certamente o vento da manhã nas araucárias 
Foi o vento... sossega, meu coração; às vezes o vento parece falar... 
E escuto... Poeta! pobre Poeta! 
Acalma-te, tranqüilidade minha... é um passarinho, só pode ser um passarinho 
Eu nem me importo... e se não for um passarinho, há tantos lamentos nesta terra... 
E escuto... Poeta! sórdido Poeta! 
Oh angústia! desta vez... não foi a voz da montanha? Não foi o eco distante 
Da minha própria voz inocente? 

Choro. 
Choro atrozmente, como os homens choram. 
As lágrimas correm milhões de léguas no meu rosto que o pranto faz gigantesco. 
Ó lágrimas, sois como borboletas dolorosas 
Volitais dos meus olhos para os caminhos esquecidos… 
Meu pai, minha mãe, socorrei-me! 
Poetas, socorrei-me! 
Penso que daqui a um minuto estarei sofrendo 
Estarei puro, renovado, criança, fazendo desenhos perdidos no ar… 
Venham me aconselhar, filósofos, pensadores 
Venham me dizer o que é a vida, o que é o conhecimento, o que quer dizer a memória 
Escritores russos, alemães, franceses, ingleses, noruegueses 
Venham me dar idéias como antigamente, sentimentos como antigamente 
Venham me fazer sentir sábio como antigamente! 
Hoje me sinto despojado de tudo que não seja música 
Poderia assoviar a idéia da morte, fazer uma sonata de toda a tristeza humana 
Poderia apanhar todo o pensamento da vida e enforcá-lo na ponta de uma clave de Fá! 

Minha Nossa Senhora, dai-me paciência 
Meu Santo Antônio, dai-me muita paciência 
Meu São Francisco de Assis, dai-me muitíssima paciência! 
Se volto os olhos tenho vertigens 
Sinto desejos estranhos de mulher grávida 
Quero o pedaço de céu que vi há três anos, atrás de uma colina que só eu sei 
Quero o perfume que senti não me lembro quando e que era entre sândalo e carne de seio. 
Tanto passado me alucina 
Tanta saudade me aniquila 
Nas tardes, nas manhãs, nas noites da serra. 
Meu Deus, que peito grande que eu tenho 
Que braços fortes que eu tenho, que ventre esguio que eu tenho! 
Para que um peito tão grande 
Para que uns braços tão fortes 
Para que um ventre tão esguio 
Se todo meu ser sofre da solidão que tenho 
Na necessidade que tenho de mil carícias constantes da amiga? 
Por que eu caminhando 
Eu pensando, eu me multiplicando, eu vivendo 
Por que eu nos sentimentos alheios 
E eu nos meus próprios sentimentos 
Por que eu animal livre pastando nos campos 
E príncipe tocando o meu alaúde entre as damas do senhor rei meu pai 
Por que eu truão nas minhas tragédias 
E Amadis de Gaula nas tragédias alheias? 

Basta! 
Basta, ou dai-me paciência! 
Tenho tido muita delicadeza inútil 
Tenho me sacrificado muito demais, um mundo de mulheres em excesso tem me vendido 
Quero um pouso 
Me sinto repelente, impeço os inocentes de me tocarem 
Vivo entre as águas torvas da minha imaginação 
Anjos, tangei sinos 
O anacoreta quer a sua amada 
Quer a sua amada vestida de noiva 
Quer levá-la para a neblina do seu amor... 

Mendelssohn, toca a tua marchinha inocente 
Sorriam pajens, operárias curiosas 
O poeta vai passar soberbo 
Ao seu abraço uma criança fantástica derrama os óleos santos das últimas lágrimas 
Ah, não me afogueis em flores, poemas meus, voltai aos livros 
Não quero glórias, pompas, adeus! 
Solness, voa para a montanha, meu amigo 
Começa a construir uma torre bem alta, bem alta...

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