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Cântico

Rio de Janeiro , 1946

Não, tu não és um sonho, és a existência 
Tens carne, tens fadiga e tens pudor 
No calmo peito teu. Tu és a estrela 
Sem nome, és a morada, és a cantiga 
Do amor, és luz, és lírio, namorada! 
Tu és todo o esplendor, o último claustro 
Da elegia sem fim, anjo! mendiga 
Do triste verso meu. Ah, fosses nunca 
Minha, fosses a idéia, o sentimento 
Em mim, fosses a aurora, o céu da aurora 
Ausente, amiga, eu não te perderia! 
Amada! onde te deixas, onde vagas 
Entre as vagas flores? e por que dormes 
Entre os vagos rumores do mar? Tu 
Primeira, última, trágica, esquecida 
De mim! És linda, és alta! és sorridente 
És como o verde do trigal maduro 
Teus olhos têm a cor do firmamento 
Céu castanho da tarde - são teus olhos! 
Teu passo arrasta a doce poesia 
Do amor! prende o poema em forma e cor 
No espaço; para o astro do poente 
És o levante, és o Sol! eu sou o gira 
O gira, o girassol. És a soberba 
Também, a jovem rosa purpurina 
És rápida também, como a andorinha! 
Doçura! lisa e murmurante... a água 
Que corre no chão morno da montanha 
És tu; tens muitas emoções; o pássaro 
Do trópico inventou teu meigo nome 
Duas vezes, de súbito encantado! 
Dona do meu amor! sede constante 
Do meu corpo de homem! melodia 
Da minha poesia extraordinária! 
Por que me arrastas? Por que me fascinas? 
Por que me ensinas a morrer? teu sonho 
Me leva o verso à sombra e à claridade. 
Sou teu irmão, és minha irmã; padeço 
De ti, sou teu cantor humilde e terno 
Teu silêncio, teu trêmulo sossego 
Triste, onde se arrastam nostalgias 
Melancólicas, ah, tão melancólicas... 
Amiga, entra de súbito, pergunta 
Por mim, se eu continuo a amar-te; ri 
Esse riso que é tosse de ternura 
Carrega-me em teu seio, louca! sinto 
A infância em teu amor! cresçamos juntos 
Como se fora agora, e sempre; demos 
Nomes graves às coisas impossíveis 
Recriemos a mágica do sonho 
Lânguida! ah, que o destino nada pode 
Contra esse teu langor; és o penúltimo 
Lirismo! encosta a tua face fresca 
Sobre o meu peito nu, ouves? é cedo 
Quanto mais tarde for, mais cedo! a calma 
É o último suspiro da poesia 
O mar é nosso, a rosa tem seu nome 
E recende mais pura ao seu chamado. 
Julieta! Carlota! Beatriz! 
Oh, deixa-me brincar, que te amo tanto 
Que se não brinco, choro, e desse pranto 
Desse pranto sem dor, que é o único amigo 
Das horas más em que não estás comigo.

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