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Transfiguração da montanha

Rio de Janeiro , 2004

E uma vez Ele subiu com os apóstolos numa montanha alta 
E lá se transfigurou diante deles. 
Uma auréola de luz rodeava-lhe a cabeça 
Ele tinha nos olhos o paroxismo das coisas doces 
Sua túnica tinha a alvura da neve 
E nos seus braços abertos havia um grande abraço a toda a humanidade 
A natureza parou estática 
Só os pássaros cantavam melodias 
Melodias doces como os olhos Dele 
E veio uma nuvem grande e cobriu os apóstolos 
E se ouviu uma voz: 
"Este é meu filho bem-amado, em quem tenho posto todas as minhas 
complacências; escutai-o!" 
E os apóstolos escutaram a grande voz da nuvem, e se prostraram 
E quando eles ergueram os olhos não havia mais nuvem 
A natureza já não estava mais parada 
Tudo continuava 
Como os olhos Dele continuavam doces 
E Ele lhes disse: 
"Não faleis desta visão até que o filho do homem ressuscite dos mortos" 
E lançando os olhos em torno Ele viu a terra embaixo 
Viu a terra do alto da montanha 
E viu a outra montanha do outro lado da terra 
Era uma pedra imensa 
Dominava tudo 
De baixo, a terra olhava para a montanha 
Admirada! 
Ela tinha sido precipitada para cima 
Pelas grandes forças da natureza 
Na sua base, onde a floresta escorre em seiva 
Onde pelos grandes troncos descem óleos vermelhos 
E onde as folhas berram um cheiro enorme de mato bravo, 
Os pássaros viviam na felicidade profunda de seus cantos 
Grandes cobras dormiam nos desenhos de sol 
E as borboletas eram fecundadas em pleno vôo. Às vezes vinha o vento 
Entrava na selva 
E levava até em cima um cheiro enorme de mato bravo. 
A montanha tinha em si toda a natureza 
Tinha um rio que dormia nos desenhos de sol 
E que de repente acordava e pulava nas cascatas. 
Ele viu tudo 
Viu a montanha e viu a floresta 
Viu principalmente a floresta 
E amou muito a montanha 
A montanha que possuía toda a natureza 
Menos Ele 
Seus divinos lábios entreabriram-se num sorriso 
E ele falou para Deus: 
"Dia virá em que hei de ter aquela pedra por trono 
e lá de novo eu me transfigurarei!" 

Depois tudo mudou 
O mundo girou sempre, andou sempre 
O mundo judeu errante. 
Não parava na catástrofe 
As guerras se sucediam 
Os flagelos se sucediam 
Andavam, sempre para a frente, sempre para a frente 
Flagelos judeus errantes 
O grande sentimento era o ódio 
Ódio de tudo 
Ódio grande 
De corações pequenos 
Os homens só tratavam de si 
As mulheres tratavam de todos 
Não mais a beleza da vida 
Não mais o amor. 
O tigre desperta e mata tudo 
Mata os pequeninos que choram de medo 
Mata as mães que têm os olhos despertos nas grandes noites da vida 
E os pais que têm a fronte enrugada pelas preocupações. 
Mata tudo. 
Quer matar até Deus 
Porque sabe que Ele vê todas as coisas 
Vê os pequeninos que morrem 
Vê os pais e as mães que morrem 
E porque tem medo da Sua justiça. 
Nas grandes sociedades havia muitas festas 
Havia muitas festas e muitos vícios 
Os homens bebiam para esquecer o dia de amanhã 
E bebiam no dia de amanhã para esquecer o dia que passou 
As mulheres bebiam para imitar os homens 
E fumavam também 
Não mais a arte 
Não mais a poesia 
A arte está na alma dos homens que bebem 
A poesia canta a arte dessas almas bêbadas 
Que é da poesia profunda da natureza? 
Que é da arte da natureza? 
Morreu. 
Morreu com a alma do homem. 
A alma do homem é como o amor morto 
Onde todas as coisas bóiam à superfície 
Ai! O tempo em que a alma do homem era o oceano 
O grande oceano que guarda pérolas e possui vegetações esquisitas 
E onde a luz bóia à superfície! 
Mas o mundo mudou. 
Ele foi esquecido 
A transfiguração foi esquecida 
Os homens só se lembraram Dele 
Ou para ofendê-lo enquanto viviam 
Ou para temê-lo covardemente na hora da morte. 

Mas uns houve que não perderam o sentido da vida 
Que guardaram na alma a grande simplicidade das coisas boas 
Uns, que perdoavam 
Uns, que socorriam e sorriam para a morte gloriosa 
Eles tinham dentro da roupa preta que os vestia 
A alma branca dos que são os bem-aventurados de Deus 
Eles eram poucos 
Foram aumentando 
Pregaram aos outros o sentido da vida que eles possuíam 
O mundo não escutava 
Tinha a surdez profunda da inteligência 
A vontade perseverante contudo fez efeito 
E um dia, alto, formidável 
A bela cabeça nas nuvens 
E os pés na rocha bruta 
Ele surgiu num esplendor de divindade 
Transfigurado 
Os braços abertos como num abraço 
E os olhos suaves olhando a terra embaixo 
Apareceu 
Branco e enorme 
Sobre a rocha escura e enorme 
A rocha e Ele 
Se unificaram na mesma beleza 
O grupo formidável 
Vivia a impressão 
Da grande cena bíblica 
A pedra que guardava a floresta 
E o grande gigante meigo 
Era como a cena bíblica 
Da fundação da Igreja 
A pedra enorme 
Era a própria força espiritual de são Pedro 
Posta na matéria 
A base 
A pedra da Igreja 
E em cima, Ele, Senhor de todas as coisas 
Belo e agigantado 
Olhando as coisas embaixo 
Com o olhar bom do que foi Homem 
Com o amor do que […] o único Deus. 
Senhor! 
Tu estás lá 
E tu estás em todos os lugares 
E ouço a tua voz na música do mundo 
E sinto a tua mão na plástica das coisas 
Tu és o ponto de partida 
Tu és o caminho 
E és o fim do caminho 
És o cardo que fere os pés 
E a grama macia que os repousa 
E a grande tempestade de vento 
E o ar parado que sereniza. 
És o pranto dos olhos 
E o riso da boca 
És o sofrimento do mundo 
Numa promessa de eterna felicidade 
És Deus 
Deus que vê todas as coisas e a todas dá remédio 
E que é o único perdão: 
         Amém.