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O amor dos homens

Paris , 1962

Na árvore em frente 
Eu terei mandado instalar um alto-falante com que os passarinhos 
Amplifiquem seus alegres cantos para o teu lânguido despertar. 
Acordarás feliz sob o lençol de linho antigo 
Com um raio de sol a brincar no talvegue de teus seios 
E me darás a boca em flor; minhas mãos amantes 
Te buscarão longamente e tu virás de longe, amiga 
Do fundo do teu ser de sono e plumas 
Para me receber; nossa fruição 
Será serena e tarda, repousarei em ti 
Como o homem sobre o seu túmulo, pois nada 
Haverá fora de nós. Nosso amor será simples e sem tempo. 
Depois saudaremos a claridade. Tu dirás 
Bom dia ao teto que nos abriga 
E ao espelho que recolhe a tua rápida nudez. 
Em seguida teremos fome: haverá chá-da-índia 
Para matar a nossa sede e mel 
Para adoçar o nosso pão. Satisfeitos, ficaremos 
Como dois irmãos que se amam além do sangue 
E fumaremos juntos o nosso primeiro cigarro matutino. 
Só então nos separaremos. Tu me perguntarás 
E eu te responderei, a olhar com ternura as minhas pernas 
Que o amor pacificou, lembrando-me que elas andaram muitas léguas de mulher 
Até te descobrir. Pensarei que tu és a flor extrema 
Dessa desesperada minha busca; que em ti 
Fez-se a unidade. De repente, ficarei triste 
E solitário como um homem, vagamente atento 
Aos ruídos longínquos da cidade, enquanto te atarefas absurda 
No teu cotidiano, perdida, ah tão perdida 
De mim. Sentirei alguma coisa que se fecha no meu peito 
Como pesada porta. Terei ciúme 
Da luz que te configura e de ti mesma 
Que te deixas viver, quando deveras 
Seguir comigo como a jovem árvore na corrente de um rio 
Em demanda do abismo. Vem-me a angústia 
Do limite que nos antagoniza. Vejo a redoma de ar 
Que te circunda - o espaço 
Que separa os nossos tempos. Tua forma 
É outra: bela demais, talvez, para poder 
Ser totalmente minha. Tua respiração 
Obedece a um ritmo diverso. Tu és mulher. 
Tu tens seios, lágrimas e pétalas. À tua volta 
O ar se faz aroma. Fora de mim 
És pura imagem; em mim 
És como um pássaro que eu subjugo, como um pão 
Que eu mastigo, como uma secreta fonte entreaberta 
Em que bebo, como um resto de nuvem 
Sobre que me repouso. Mas nada 
Consegue arrancar-te à tua obstinação 
Em ser, fora de mim - e eu sofro, amada 
De não me seres mais. Mas tudo é nada. 
Olho de súbito tua face, onde há gravada 
Toda a história da vida, teu corpo 
Rompendo em flores, teu ventre 
Fértil. Move-te 
Uma infinita paciência. Na concha do teu sexo 
Estou eu, meus poemas, minhas dores 
Minhas ressurreições. Teus seios 
São cântaros de leite com que matas 
A fome universal. És mulher 
Como folha, como flor e como fruto 
E eu sou apenas só. Escravizado em ti 
Despeço-me de mim, sigo caminhando à tua grande 
Pequenina sombra. Vou ver-te tomar banho 
Lavar de ti o que restou do nosso amor 
Enquanto busco em minha mente algo que te dizer 
De estupefaciente. Mas tudo é nada. 
São teus gestos que falam, a contração 
Dos lábios de maneira a esticar melhor a pele 
Para passar o creme, a boca 
Levemente entreaberta com que mistificar melhor a eterna imagem 
No eterno espelho. E então, desesperado 
Parto de ti, sou caçador de tigres em Bengala 
Alpinista no Tibet, monje em Cintra, espeleólogo 
Na Patagônia. Passo três meses 
Numa jangada em pleno oceano para 
Provar a origem polinésica dos maias. Alimento-me 
De plancto, converso com as gaivotas, deito ao mar poesia engarrafada, acabo 
Naufragando nas costas de Antofagasta. Time, Life e Paris-Match 
Dedicam-me enormes reportagens. Fazem-me 
O "Homem do Ano" e candidato certo ao Prêmio Nobel. 
Mas eis comes um pêssego. Teu lábio 
Inferior dobra-se sob a polpa, o suco 
Escorre pelo teu queixo, cai uma gota no teu seio 
E tu te ris. Teu riso 
Desagrega os átomos. O espelho pulveriza-se, funde-se o cano de descarga 
Quantidades insuspeitadas de estrôncio-90 
Acumulam-se nas camadas superiores do banheiro 
Só os genes de meus tataranetos poderão dar prova cabal de tua imensa 
Radioatividade. Tu te ris, amiga 
E me beijas sabendo a pêssego. E eu te amo 
De morrer. Interiormente 
Procuro afastar meus receios: "Não, ela me ama..." 
Digo-me, para me convencer, enquanto sinto 
Teus seios despontarem em minhas rnãos 
E se crisparem tuas nádegas. Queres ficar grávida 
Imediatamente. Há em ti um desejo súbito de alcachofras. Desejarias 
Fazer o parto-sem-dor à luz da teoria dos reflexos condicionados 
De Pavlov. Depois, sorrindo 
Silencias. Odeio o teu silêncio 
Que não me pertence, que não é 
De ninguém: teu silêncio 
Povoado de memórias. Esbofeteio-te 
E vou correndo cortar o pulso com gilete-azul; meu sangue 
Flui como um pedido de perdão. Abres tua caixa de costura 
E coses com linha amarela o meu pulso abandonado, que é para 
Combinar bem as cores; em seguida 
Fazes-me sugar tua carótida, numa longa, lenta 
Transfusão. Eu convalescente 
Começas a sair: foste ao cabeleireiro. Perscruto em tua face. Sinto-me 
Traído, delinqüescente, em ponto de lágrimas. Mas te aproximas 
Só com o casaco do pijama e pousas 
Minha mão na tua perna. E então eu canto: 
Tu és a mulher amada: destrói-me! Tua beleza 
Corrói minha carne como um ácido! Teu signo 
É o da destruição! Nada resta 
Depois de ti senão ruínas! Tu és o sentimento 
De todo o meu inútil, a causa 
De minha intolerável permanência! Tu és 
Uma contrafação da aurora! Amor, amada 
Abençoada sejas: tu e a tua 
Impassibilidade. Abençoada sejas 
Tu que crias a vertigem na calma, a calma 
No seio da paixão. Bendita sejas 
Tu que deixas o homem nu diante de si mesmo, que arrasas 
Os alicerces do cotidiano. Mágica é tua face 
Dentro da grande treva da existência. Sim, mágica 
É a face da que não quer senão o abismo 
Do ser amado. Exista ela para desmentir 
A falsa mulher, a que se veste de inúteis panos 
E inúteis danos. Possa ela, cada dia 
Renovar o tempo, transformar 
Uma hora num minuto. Seja ela 
A que nega toda a vaidade, a que constrói 
Todo o silêncio. Caminhe ela 
Lado a lado do homem em sua antiga, solitária marcha 
Para o desconhecido - esse eterno par 
Com que começa e finda o mundo - ela que agora 
Longe de mim, perto de mim, vivendo 
Da constante presença da minha saudade 
É mais do que nunca a minha amada: a minha amada e a minha amiga 
A que me cobre de óleos santos e é portadora dos meus cantos 
A minha amiga nunca superável 
A minha inseparável inimiga.