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Balada negra

Rio de Janeiro , 1935

Éramos meu pai e eu 
E um negro, negro cavalo 
Ele montado na sela, 
Eu na garupa enganchado. 
Quando? eu nem sabia ler 
Por quê? saber não me foi dado 
Só sei que era o alto da serra 
Nas cercanias de Barra. 
Ao negro corpo paterno 
Eu vinha muito abraçado 
Enquanto o cavalo lerdo 
Negramente caminhava. 
Meus olhos escancarados 
De medo e negra friagem 
Eram buracos na treva 
Totalmente impenetrável. 
Às vezes sem dizer nada 
O grupo eqüestre estacava 
E havia um negro silêncio 
Seguido de outros mais vastos. 
O animal apavorado 
Fremia as ancas molhadas 
Do negro orvalho pendente 
De negras, negras ramadas. 
Eu ausente de mim mesmo 
Pelo negrume em que estava 
Recitava padre-nossos 
Exorcizando os fantasmas. 
As mãos da brisa silvestre 
Vinham de luto enluvadas 
Acarinhar-me os cabelos 
Que se me punham eriçados. 
As estrelas nessa noite 
Dormiam num negro claustro 
E a lua morta jazia 
Envolta em negra mortalha. 
Os pássaros da desgraça 
Negros no escuro piavam 
E a floresta crepitava 
De um negror irremediável. 
As vozes que me falavam 
Eram vozes sepulcrais 
E o corpo a que eu me abraçava 
Era o de um morto a cavalo. 
O cavalo era um fantasma 
Condenado a caminhar 
No negro bojo da noite 
Sem destino e a nunca mais. 
Era eu o negro infante 
Condenado ao eterno báratro 
Para expiar por todo o sempre 
Os meus pecados da carne. 
Uma coorte de padres 
Para a treva me apontava 
Murmurando vade-retros 
Soletrando breviários. 
Ah, que pavor negregado 
Ah, que angústia desvairada 
Naquele túnel sem termo 
Cavalgando sem cavalo! 

Foi quando meu pai me disse: 
- Vem nascendo a madrugada… 
E eu embora não a visse 
Pressenti-a nas palavras 
De meu pai ressuscitado 
Pela luz da realidade. 

E assim foi. Logo na mata 
O seu rosa imponderável 
Aos poucos se insinuava 
Revelando coisas mágicas. 
A sombra se desfazendo 
Em entretons de cinza e opala 
Abria um claro na treva 
Para o mundo vegetal. 
O cavalo pôs-se esperto 
Como um cavalo de fato 
Trotando de rédea curta 
Pela úmida picada. 
Ah, que doçura dolente 
Naquela aurora raiada 
Meu pai montando na frente 
Eu na garupa enganchado! 
Apertei-o fortemente 
Cheio de amor e cansaço 
Enquanto o bosque se abria 
Sobre o luminoso vale... 
E assim fui-me ao sono, certo 
De que meu pai estava perto 
E a manhã se anunciava. 
Hoje que conheço a aurora 
E sei onde caminhar 
Hoje sem medo da treva 
Sem medo de não me achar 
Hoje que morto meu pai 
Não tenho em quem me apoiar 
Ah, quantas vezes com ele 
Vou ao túmulo deitar 
E ficamos cara a cara 
Na mais doce intimidade 
Certos que a morte não leva: 
Certos de que toda treva 
Tem a sua madrugada.

Balada

Originalmente ligada à música e à dança, a balada despontou como expressão literária no século XIII, entre os povos de fala germânica. No século XV, apareceram baladas literárias sem qualquer vinculação com a música, como as do francês François Villon, em oitavas, exibindo características totalmente originais. Nos dois séculos seguintes, a balada praticamente caiu em desuso, voltando a desperetar interesse no século XVIII, quando despontou em meio aos escritores como um tesouro popular a ser redescoberto e valorizado. Um marco fundamental foi a publicação, em 1756, na Inglaterra, das Reliques of Ancient English Poetry (Relíquias da antiga poesia inglesa) , uma compilação levada a cabo pelo bispo Thomas Percy. Logo os românticos também se voltaram para a balada, nela procurando a espontaneidade musical e o acento popular. Nomes como Schiller, Heine e Victor Hugo deram nova dimensão ao gênero. Alguns compositores do período, especialmente Chopin e Brahms aludiram à forma lírica dando a algumas de suas peças o nome de "balada". O modelo francês foi o mais adotado: três estâncias de oito versos (repetindo-se sempre o último verso em cada uma delas), rimas em esquema ababacac, e um ofertório de quatro versos com rimas acac. No Brasil, os poetas parnasianos cultivaram a balada segundo a norma francesa, atraídos pela dificuldade formal. Já os poetas modernos adotaram o nome balada no título de alguns de seus poemas sem qualquer obediência a uma forma fixa, apenas chamando a atenção para a musicalidade dos versos ou para o seu conteúdo narrativo. Bons exemplos são Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes, tendo sido este último o que mais se dedicou ao gênero, chegando a seu ponto alto no livro Poemas, sonetos e baladas.

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