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A vingança da porta

Última Hora , 20 of Junio of 1951

Em recente palestra no Círculo de Estudos Cinematográficos o escritor Aníbal Machado (perdoe a formalidade, querido compadre e amigo!) iluminou seus comentários sobre as grandezas e misérias do cinema com um trecho que não me posso furtar a transcrever aqui. Depois de historiar por alto o processo de mecanização sofrido pelo cinema desde os tempos do genial francês Méliès, que lhe emprestou seu lirismo básico, Aníbal Machado diz o seguinte: 

E eis o cinema na sua forma atual como o espetáculo mais poderoso dos tempos modernos. E de tal maneira imprescindível que o espectador viciado prefere continuar sentado diante das sombras descarnadas de um filme ruim a andar pelas ruas entre seres vivos e objetos reais, o que é um mal. Fazer do cinema apenas um meio de distração é desconhecer a força de que ele é capaz, é querer fugir ao magnetismo de uma presença viva; e é também alimentar a indiferença dos produtores. Do espectador que assim o concebe o próprio cinema se vinga. Mal entra na sala escura, recebe a influência do seu sortilégio: o filme que devia distraí-lo começa a comovê-lo, faz coincidir os conflitos da tela com os seus conflitos pessoais, exprime as angústias e o sonho humano, expõe dramaticarnente um problema social, reconstitui um trecho do passado, mostra as formas do trabalho, revela um recanto inacessível de paisagem, a vida no fundo do mar, o crescimento dos vegetais. Dentro em pouco, eis o espectador sacudido por um sentido vago de grandeza ou de ternura humana, um homem diferente do que entra, mais generoso, um pouco menos inimigo dos seus inimigos. 

A compressão do trecho mostra bem o problema principal do cinema em nossos dias. Torna-se ele um vício como o cigarro, o álcool, ou pior. A classe média, que mais alimenta a indústria cinematográfica, fez do cinema um dos muitos métodos de evasão da angústia em que a precipitaram os homens do ressentimento - os tiranos, os donos da vida, os fazedores de guerra. A trepidação constante do seu cotidiano, que a reconduz, à noite, a lares cansados e vazios de alegria, lançam-na como um tropel para as salas escuras onde se desgasta por duas horas a sua aflição de viver. 

As telas mentem - em geral mentem - e muito de indústria mentem as telas! Pois não é com o realismo dos Rossellinis ou De Sicas que se preparam os rebanhos para o matadouro. É antes com as pernas de Betty Grable, com a falsa ciência dos pseudoveristas de Hollywood, com a violência sem sentido dos James Cagney, Gary Cooper e Humphrey Boggart - que abrem caminho à delação fácil e até à suprema miséria e indignidade do porto-riquenho José Ferrer, que disse covardemente ser contrário à independência de sua própria pátria.