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A dama e o monstro

Diretrizes , 21 of Febrero of 1946

Eu tenho por hábito não perder fita em que aparece o nome de Eric von Stroheim no cartaz. Fico sempre na esperança de que o veterano ator alemão ponha a mão na máquina, porque, não sei se sabem, trata-se também de um dos maiores diretores de toda a história do cinema. Se alguém se lembra de Ouro e maldição, Marcha nupcial, Lua-de-mel, chega logo ao que eu quero dizer. Como sempre aconteceu, a intransigência do cineasta diante da verdade do seu cinema, a linguagem realista que usou para revelar certos terríveis ímpetos do coração humano, seu dar de ombros às convenções clássicas de tempo e metragem, acabaram por indispô-lo com Hollywood, a tal ponto que seu último filme - Queen Kelly, chamava-se -, tido como uma pura maravilha cinematográfica, foi barrado do comércio internacional. Tomava, creio, quatro ou cinco horas de projeção. Daí, teve o diretor de sujeitar-se, quem sabe para não ficar na pinimba, a emprestar seus talentos de ator característico a pequenas películas sem significação, onde, todavia, parecia-me às vezes sentir a influência discreta do grande diretor da Zasu Pitts trágica de Marcha nupcial: uma estupenda criação.
 
Eu já tinha manjado A dama e o monstro, quando o filme esteve no Odeon. Não sei por que não tive tempo para vê-lo naquela semana. Anteontem, passando pelo Ipanema, lá estava ele, junto com uma fitinha de cowboy. E foi batata. Quero ser foguista em trem da Central, se Stroheim não andou dando seus palpites ao diretor George Sherman, que assina a película. Que filme curioso! Uma movimentação de câmera como dificilmente se verá tão bem-feita, resolvendo as cenas com um senso de cinema que pressupõe o olho de um cineasta. Não creio que George Sherman fizesse aquilo sozinho. O filme dá, aliás, a impressão de ter sido produzido por acordo com a Republic. Deve ter sido idéia da sra. Vera Hruba Ralston, que para tal chamaria Stroheim, que por sua vez se teria lembrado do velho (digo velho no sentido de antigo) excelente Richard Arlen: qualquer plano assim. A coisa tem uma pinta de produção independente. 

A história é muito boa, e só decai para o final, com o impasse criado pelo caso criminal, que poderia ter sido melhor resolvido. Olhe que filmes tirados de argumentos pseudocientíficos constituem dos maiores abacaxis da importação de Hollywood... Mas não este. O ambiente é magistralmente criado, e embora trate-se tudo de puro fantástico, o realismo das tomadas, o sentido dos close-ups, a sabedoria do preto-e-branco, a ciência na movimentação da câmera e no corte, a inteligência do roteiro, fazem dessa produção modesta um dos poucos filmes em que o curioso de cinema pode aprender certos fundamentos da sétima arte. 

O cérebro de D.H. Donovan, que o cientista Franz Müller (Stroheim) conserva vivo depois da violenta morte do capitalista, é a fabulosa, principal personagem do filme. A massa encefálica conservada num meio eletrolítico acende, cada vez que nela se manifesta o fenômeno do pensamento, uma lâmpada (cujo papel é também importantíssimo no processo da emoção cinematográfica), movimentando um registrador que assinala mecanicamente todas as suas reações. A inteligibilidade dessas reações só chega, porém, mais tarde, quando, excitado quimicamente, o cérebro transmite por telepatia seus terríveis segredos ao cientista Patrick (Richard Arlen), que por pouco se torna joguete dos intuitos sinistros do seu mestre Franz Müller. O caso é que Müller tinha paixão pela sua auxiliar, a noiva de Patrick, Janice. E ao sentir o domínio que o cérebro criminoso de Donovan começa a exercer sobre Patrick, arrastando-o à resolução de um caso criminal aparentemente insolúvel, e deixando-o à mercê de aventureiros sem o menor escrúpulo, em lugar de parar seu experimento, para salvar o jovem cientista, pelo contrário, prossegue com maior afã, vendo nele a solução para a sua paixão, através de um crime perfeito, cuja responsabilidade principal caberia à ação do cérebro sobre a vontade de Patrick.
 
O filme, como já disse, decai para o final. Mas é uma boa obra de cinematografia feita com grande inteligência e revelando o mistério por processos naturalistas, numa combinação cuja felicidade não há bem como explicar. Só vendo. E vejam mesmo. Está no Ipanema.