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Sombra e luz

Rio de Janeiro , 1946

I

Dança Deus! 
Sacudindo o mundo 
Desfigurando estrelas 
Afogando o mundo 
Na cinza dos céus 
Sapateia, Deus 
Negro na noite 
Semeando brasas 
No túmulo de Orfeu. 

Dança, Deus! dança 
Dança de horror 
Que a faca que corta 
Dá talho sem dor. 
A dama Negra 
A Rainha Euterpe 
A Torre de Magdalen 
E o Rio Jordão 
Quebraram muros 
Beberam absinto 
Vomitaram bile 
No meu coração. 

E um gato e um soneto 
No túmulo preto 
E uma espada nua 
No meio da rua 
E um bezerro de ouro 
Na boca do lobo 
E um bruto alifante 
No baile da Corte 
Naquele cantinho 
Cocô de ratinho 
Naquele cantão 
Cocô de ratão. 

Violino moço fino 
- Quem se rir há de apanhar. 

Violão moço vadio 
- Não sei quem apanhará. 


II

Munevada glimou vestassudente. 

Desfazendo-se em lágrimas azuis 
Em mistérios nascia a madrugada 
E o vampiro Nosferatu 
Descia o rio 
Fazendo poemas 
Dizendo blasfêmias 
Soltando morcegos 
Bebendo hidromel 
E se desencantava, minha mãe! 

Ficava a rua 
Ficava a praia 
No fim da praia 
Ficava Maria 
No meio de Maria 
Ficava uma rosa 
Cobrindo a rosa 
Uma bandeira 
Com duas tíbias 
E uma caveira. 

Mas não era o que queria 
Que era mesmo o que eu queria? 
"Eu queria uma casinha 
Com varanda para o mar 
Onde brincasse a andorinha 
E onde chegasse o luar 
Com vinhas nessa varanda 
E vacas na vacaria 
Com vinho verde e vianda 
Que nem Carlito queria." 

Nunca mais, nunca mais! 
As luzes já se apagavam 
Os mortos mortos de frio 
Se enrolavam nos sudários 
Fechavam a tampa da cova 
Batendo cinco pancadas. 

Que fazer senão morrer? 


III

Pela estrada plana, toc-toc-toc 
As lágrimas corriam. 
As primeiras mulheres 
Saíam toc-toc na manhã 
O mundo despertava! em cada porta 
Uma esposa batia toc-toc 
E os homens caminhavam na manhã. 
Logo se acenderão as forjas 
Fumarão as chaminés 
Se caldeará o aço da carne 
Em breve os ferreiros toc-toc 
Martelarão o próprio sexo 
E os santos marceneiros roc-roc 
Mandarão berços para Belém. 
Ouve a cantiga dos navios 
Convergindo dos temporais para os portos 
Ouve o mar 
Rugindo em cóleras de espuma 
Have mercy on me O Lord 
Send me Isaias 
I need a poet 
To sing me ashore. 

Minha luz ficou aberta 
Minha cama ficou feita 
Minha alma ficou deserta 
Minha carne insatisfeita.

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