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O poeta em trânsito ou o filho pródigo

Rio de Janeiro , 2004

Acordarei as aves que, noturnas 
Por medo à treva calam-se nos galhos 
E aguardam insones o romper da aurora. 
Despertarei os bêbados nos pórticos 
Os cães sonâmbulos e os gerais mistérios 
Que envolvem a noite. Pedirei gritando 
Ao mar que mate e ao vento que violente 
As jovens praias de pudor tão branco. 
Quebrarei com ressacas e risadas 
O silêncio habitual de Deus na noite 
A intimidar os homens. Que a cidade 
Ponha o xale da lua sobre a fronte 
E saia a receber o seu poeta 
Com ramos de jasmim e outras saudades. 
A hora é de beleza. Em cada pedra 
Em cada casa, em cada rua, em cada 
Árvore, vive ainda uma carícia 
Feita por mim, por mim que fui amante 
Urbano, e mais que urbano, sobre-humano 
Na noturna cidade desvairada. 
Provavelmente não virei montado 
Em cavalo nenhum, como soía 
Nem de armadura, que essa, a poesia 
Mais que nenhuma me defenderia 
Numa cota de malhas de silêncio. 
É bem possível até que chegue bêbado 
E se em janeiro, de camisa esporte. 
O importante é chegar, ser a unidade 
Entre a cidade e eu, eu e a cidade 
Ouvir de novo o mar se estilhaçando 
Nas rochas, ou bramindo no oceano 
Sozinho como um deus................................. 
....................................................................... 
.............................................Ó bem-amada 
Rio! como mulher petrificada 
Em nádegas e seios e joelhos 
De rocha milenar, e verdejante 
Púbis e axilas e os cabelos soltos 
De clorofila fresca e perfumada! 
Eu te amo, mulher adormecida 
Junto ao mar! eu te amo em tua absoluta 
Nudez ao sol e placidez ao luar. 
Junto de ti me sinto, tua luz 
Não fere o meu silêncio. O meu silêncio 
Te pertence. Eu sei que resguardada 
Dos seres que se movem entre teus braços 
Teus olhos têm visões de outros espaços 
Passados e futuros... 
                                    Como às vezes 
Sobre a lunar estrada Niemeyer 
Entre o clamor das ondas fustigadas 
Meditam as montanhas. Que silêncio 
Se escuta ali pousar, que gravidade 
Da natureza! Eu sei, é bem verdade 
Que sob o sol o Rio é muito claro 
Muito claro demais, e sem mistério. 
Eu sei que ao revérbero de janeiro 
Morrem segredos como morrem as aves 
Contentes de morrer. Eu sei tudo isso. 
Já vi com esses meus olhos incansáveis 
Idéias explodirem como flores 
Entre réstias de sol já vi castelos 
Matemáticos ruírem como cartas 
Sistemas filosóficos perderem 
A lógica do dia para a noite 
Obras de arte nascentes desviarem-se 
Do rumo da criação ante uma axila 
Suada, e muitos santos se danarem 
Sob a ação salutar do ultravioleta. 
Mas pra quem tem o hábito da noite 
Quem vive em intimidade com o silêncio 
Quem sabe ouvir a música da treva 
Quando na treva reproduz-se a vida 
Para esse, a cidade se oferece 
Num clima universal de eternidade 
No contraponto do mover do mar 
E no mutismo milenar da pedra 
Em sua infinidade de infinitos 
Para esse os Dois Irmãos contam uma história 
Fantástica, de forças irrompendo 
Da terra e se dispondo em formas súbitas 
Viúva! Pão de Açúcar! Corcovado! 
E mais ao sul, sarcófago do sol 
A mesa imensa onde esse pode ver 
Se acaso souber ver, no fim do dia 
A silhueta do homem primitivo 
(A mesma que ainda hoje, transformada 
Passa sobre o mosaico da Avenida) 
E até quem sabe, natural torcida 
Assistindo de sua arquibancada 
As serpentes do mar em luta ignara 
Movendo maremotos, à porfia 
No estádio natural da Guanabara.