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O haver

Rio de Janeiro , 2004

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura 
Essa intimidade perfeita com o silêncio 
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo 
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido... 

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo 
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo 
De ferir tocando, essa forte mão de homem 
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe. 

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos 
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito 
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível 
Essa irredutível recusa à poesia não vivida. 

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento 
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade 
Do tempo, essa lenta decomposição poética 
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius. 

Resta esse coração queimando como um círio 
Numa catedral em ruínas, essa tristeza 
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria 
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história... 

Resta essa vontade de chorar diante da beleza 
Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido 
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa 
Piedade de si mesmo e de sua força inútil. 

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado 
De pequenos absurdos, essa capacidade 
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil 
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade. 

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza 
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser 
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa 
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje. 

Resta essa faculdade incoercível de sonhar 
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade 
De aceitá-la tal como é, e essa visão 
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante 

E desnecessária presciência, e essa memória anterior 
De mundos inexistentes, e esse heroísmo 
Estático, e essa pequenina luz indecifrável 
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança. 

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos 
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória 
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade 
De não querer ser príncipe senão do seu reino. 

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade 
Pelo momento a vir, quando, apressada 
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante 
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada... 

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto 
Esse eterno levantar-se depois de cada queda 
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha 
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo 
Infantil de ter pequenas coragens.

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