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Exumação de Mário de Andrade

Rio de Janeiro , 2004

No 17º ano da sua morte e no 40º do seu nascimento 
Na semana de Arte Moderna 

Minha casa de Saint Andrews Place. 
Duas da manhã. Abro uma gaveta 
Com um gesto sem finalidade 
E dou com o retrato do poeta 
Me olhando, Mário de Andrade. 

Seus olhos nem por um segundo 
Piscam. O poeta me encara 
E eu vejo pela sua cara 
Que o poeta quer ser exumado 
Daquela gaveta, desde muito. 

Tiro-o de lá. Com mão amiga 
Limpo a poeira que lhe embaça 
O rosto e suja-lhe a camisa 
E o poeta como que acha graça. 

Busco um lugar onde instalá-lo 
Na minha pequena sala fria 
Essa sala tão sem poesia 
Onde me encontro todo dia 
E onde me sento e onde me calo. 

Mas não acho. Ponho-o à minha frente 
Sobre a mesa, sentindo a vertigem 
Da sensação da forma virgem 
Que assume de súbito o ambiente. 

No papel branco palpitante 
Das moléculas da poesia 
A minha mão psicografa 
O antigo nome de Maria. 

E na sala transverberada 
Pelo mistério da presença 
Vai se corporificando imensa 
A humana forma macerada. 

Não tenho medo; mas meus pêlos 
Se eriçam, na barba e no braço 
Sinto pesar o puro espaço 
Às mãos do poeta em meus cabelos. 

Depois o toque cessa. Deixo 
O poeta a gosto, para que ande 
Por ali tudo, esmiuçando. 
Depois ouço o som do piano 
E olho: só vejo a vasta fronte 
Os óculos e o queixo grande 
Do poeta, se desincorporando. 

E fico só: só como um vivo 
Cheio de angústia e de saudade 
E corro à porta, e olhando aflito 
O silêncio, murmuro empós o bom amigo: 
- Volte sempre, Mário de Andrade... 


Los Angeles, outubro de 1946 
Petrópolis, fevereiro de 1962

Los Angeles, outubro de 1946 Petrópolis, fevereiro de 1962

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