backPoetry

Esta manhã a casa madruguei...

Rio de Janeiro , 2004

Esta manhã a casa madruguei. 
Havia elfos alados nos gelados 
Raios de sol da sala quando entrei. 
Sentada na cadeira de balanço 
Resplendente, uma fada balançava-se 
Numa poça de luz. Minha chegada 
Gigantesca assustou os gnomos mínimos 
Que vertiginosamente se escoaram 
Pelas frinchas dos rodapés. A estranha 
Presença matinal do ser noturno 
Desencadeou no cerne da matéria 
O entusiasmo dos átomos. Coraram 
Os móveis decapês, tremeram os vidros 
Estalaram os armários de alegria. 
Eram os claros cristais de luz tão frágeis 
Que ao tocar um, desfez-se nos meus dedos 
Em poeira translúcida, vibrando 
Tremulinas e harpejos inefáveis. 
Era o inverno, ainda púbere. Bebi 
Sofregamente um grande copo de ar 
E recitei o meu epitalâmio. 
Nomes como uma flor, uma explosão 
De flor, vieram da infância envolta em trevas 
Penetrados de vozes. Num segundo 
Pensei ver o meu próprio nascimento 
Mas fugi, tive medo. Não devera 
A poesia... 
Tão extremo era o transe matutino 
Que pareceu-me haver perdido o peso 
E esquecido dos meus trinta e quatro anos 
Da clássica ruptura do menisco 
E das demais responsabilidades 
Pus-me a correr à volta do sofá 
Atrás de prima Alice, a que morreu 
De consumpção e me deixava triste. 
Infelizmente acrescentei em quilos 
E logo me cansei; mas as asinhas 
Nos calcanhares eram bimotores 
A querer arrancar. Pé ante pé 
Fui esconder-me atrás da geladeira 
O corpo em bote, os olhos em alegria 
Para esperar a entrada de Maria 
A empregada da llha, também morta 
Mas de doença de homem - que era aquela 
Confusão de querer-se e malquerer-se 
Aquela multiplicação de seios 
Aquele desperdício de saliva 
E mãos, transfixiantes, nomes feios 
E massas pouco a pouco se encaixando 
Em decúbito, até a grande inércia 
Cheia de mar (Maria era mulata!). 
Depois foi Nina, a plácida menina 
Dos pulcros atos sem concupiscência 
Que me surgiu. Mandava-me missivas 
Cifradas que eu, terrível flibusteiro 
Escondia no muro de uma casa 
(Esqueci de que casa ... ) Mas surpresa 
Foi quando vi Alba surgir da aurora 
Alba, a que me deixou examiná-la 
Grande obstetra, com a lente de aumento 
Dos textos em latim de meu avô 
Alba, a que amava as largatixas secas 
Alba, a ridícula, morta de crupe. 
Milagre da manhã recuperada! 
A infância! Sombra, és tu? Até tu, Sombra... 
Sombra, contralto, entre os paralelepípedos 
Do coradouro do quintal. Oh, tu 
Que me violaste, negra, sobre o linho 
Muito obrigado, tenebroso Arcanjo 
De ti me lembrarei! Bom dia, Linda 
Como estás bela assim descalça, Linda 
Vem comigo nadar! O mar é agora 
A piscina de Onã, de lodo e alga... 
Quantos cajus tu me roubaste, feia 
Quanto silêncio em teus carinhos, Linda 
Longe, nas águas... Sim! é a minha casa 
É a minha casa, sim, a um grito apenas 
Da praia! Alguém me chama, é a gaivota 
Branca, é Marina! (A doida já chegava 
Desabotoando o corpete de menina...) 
Marina, como vais, jovem Marina 
Deslembrada Marina... Vejo Vândala 
A rústica, a operária, a compulsória 
Que nos levava aos dez para os baldios 
Da Fábrica, e como aos bilros, hábil 
Aos dez de uma só vez manipulava 
Ern francas gargalhadas, e dizia 
De mim: Ai, que este é o mais levado! 
(Pela mulher, sim, Vândala, obrigado... 
E tu, Santa, casada, que me deste 
O Coração, posto que de De Amicis 
Tu que calçavas longamente as meias 
Pretas que me tiraram o medo à treva 
E às aranhas... some, jetatura 
Masturbação, desassossego, insônia! 
Mas tu, pequena Maja, sê bem-vinda: 
Lembra-me tuas tranças; recitavas 
Fazias ponto-à-jour, tocavas piano 
Pequena Maja... Foi preciso um ano 
De namoro fechado, irmão presente 
Para me dares, louco, de repente 
Tua mão, como um pássaro assustado. 
No entanto te esqueci ao ver Altiva 
Princesa absurda, cega, surda e muda 
Ao meu amor, embora me adorando 
De adoração tão pura. Tua cítara 
Me ensinou um ódio estúpido à Elegia 
De Massenet. Confesso, dispensava a cítara 
Ia beber desesperado. Mas 
Foi contigo, Suave, que o poeta 
Apreendeu o sentido da humildade. 
Estavas sempre à mão. Telefonava: 
Vamos? Vinhas. Inda virias. Tinhas 
Um riso triste. Foi o nada quereres 
Que tão pouco te deu, tristonha ave... 
Quanta melancolia! No cenário 
Púrpura, surges, Pútrida, luética 
Deusa amarela, circunscrita imagem ... 
Obrigado no entanto pelos êxtases 
Aparentes; lembro-me que brilhava 
Na treva antropofágica teu dente 
De ouro, como um fogo em terra firme 
Para o homem a nadar-te, extenuado. 
Mas que não fuja ainda a enunciada 
Visão... Clélia, adeus minha Clélia, adeus! 
Vou partir, pobre Clélia, navegar 
No verde mar... vou me ausentar de ti! 
Vejo chegar alguém que me procura 
Alguém à porta, alguma desgraçada 
Que se perdeu, a voz no telefone 
Que não sei de quem é, a com que moro 
E a que morreu... Quem és, responde! 
És tu a mesma em todas renovada? 

Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu!