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Balada das duas mocinhas de Botafogo

Rio de Janeiro , 1935

Eram duas menininhas 
Filhas de boa família: 
Uma chamada Marina 
A outra chamada Marília. 
Os dezoito da primeira 
Eram brejeiros e finos 
Os vinte da irmã cabiam 
Numa mulher pequenina. 
Sem terem nada de feias 
Não chegavam a ser bonitas 
Mas eram meninas-moças 
De pele fresca e macia. 
O nome ilustre que tinham 
De um pai desaparecido 
Nelas deixara a evidência 
De tempos mais bem vividos. 
A mãe pertencia à classe 
Das largadas de marido 
Seus oito lustros de vida 
Davam a impressão de mais cinco. 
Sofria muito de asma 
E da desgraça das filhas 
Que, posto boas meninas 
Eram tão desprotegidas 
E por total abandono 
Davam mais do que galinhas. 

Casa de porta e janela 
Era a sua moradia 
E dentro da casa aquela 
Mãe pobre e melancolia. 
Quando à noite as menininhas 
Se aprontavam pra sair 
A loba materna uivava 
Suas torpes profecias. 
De fato deve ser triste 
Ter duas filhas assim 
Que nada tendo a ofertar 
Em troca de uma saída 
Dão tudo o que têm aos homens: 
A mão, o sexo, o ouvido 
E até mesmo, quando instadas 
Outras flores do organismo. 

Foi assim que se espalhou 
A fama das menininhas 
Através do que esse disse 
E do que aquele diria. 
Quando a um grupo de rapazes 
A noite não era madrinha 
E a caça de mulher grátis 
Resultava-lhes maninha 
Um deles qualquer lembrava 
De Marília e de Marina 
E um telefone soava 
De um constante toque cínico 
No útero de uma mãe 
E suas duas filhinhas. 
Oh, vida torva e mesquinha 
A de Marília e Marina 
Vida de porta e janela 
Sem amor e sem comida 
Vida de arroz requentado 
E média com pão dormido 
Vida de sola furada 
E cotovelo puído 
Com seios moços no corpo 
E na mente sonhos idos! 

Marília perdera o seu 
Nos dedos de um caixeirinho 
Que o que dava em coca-cola 
Cobrava em rude carinho. 
Com quatorze apenas feitos 
Marina não era mais virgem 
Abrira os prados do ventre 
A um treinador pervertido. 
Embora as lutas do sexo 
Não deixem marcas visíveis 
Tirante as flores lilases 
Do sadismo e da sevícia 
Às vezes deixam no amplexo 
Uma grande náusea íntima 
E transformam o que é de gosto 
Num desgosto incoercível. 

E era esse bem o caso 
De Marina e de Marília 
Quando sozinhas em casa 
Não tinham com quem sair. 
Ficavam olhando paradas 
As paredes carcomidas 
Mascando bolas de chicles 
Bebendo água de moringa. 
Que abismos de desconsolo 
Ante seus olhos se abriam 
Ao ouvirem a asma materna 
Silvar no quarto vizinho! 
Os monstros da solidão 
Uivavam no seu vazio 
E elas então se abraçavam 
Se beijavam e se mordiam 
Imitando coisas vistas 
Coisas vistas e vividas 
Enchendo as frondes da noite 
De pipilares tardios. 
Ah, se o sêmem de um minuto 
Fecundasse as menininhas 
E nelas crescessem ventres 
Mais do que a tristeza íntima! 
Talvez de novo o mistério 
Morasse em seus olhos findos 
E nos seus lábios inconhos 
Enflorescessem sorrisos. 
Talvez a face dos homens 
Se fizesse, de maligna 
Na doce máscara pensa 
Do seu sonho de meninas! 

Mas tal não fosse o destino 
De Marília e de Marina. 
Um dia, que a noite trouxe 
Coberto de cinzas frias 
Como sempre acontecia 
Quando achavam-se sozinhas 
No velho sofá da sala 
Brincaram-se as menininhas. 
Depois se olharam nos olhos 
Nos seus pobres olhos findos 
Marina apagou a luz 
Deram-se as mãos, foram indo 
Pela rua transversal 
Cheia de negros baldios. 
Às vezes pela calçada 
Brincavam de amarelinha 
Como faziam no tempo 
Da casa dos tempos idos. 
Diante do cemitério 
Já nada mais se diziam. 
Vinha um bonde a nove-pontos... 
Marina puxou Marília 
E diante do semovente 
Crescendo em luzes aflitas 
Num desesperado abraço 
Postaram-se as menininhas. 

Foi só um grito e o ruído 
Da freada sobre os trilhos 
E por toda parte o sangue 
De Marília e de Marina.

Balada

Originalmente ligada à música e à dança, a balada despontou como expressão literária no século XIII, entre os povos de fala germânica. No século XV, apareceram baladas literárias sem qualquer vinculação com a música, como as do francês François Villon, em oitavas, exibindo características totalmente originais. Nos dois séculos seguintes, a balada praticamente caiu em desuso, voltando a desperetar interesse no século XVIII, quando despontou em meio aos escritores como um tesouro popular a ser redescoberto e valorizado. Um marco fundamental foi a publicação, em 1756, na Inglaterra, das Reliques of Ancient English Poetry (Relíquias da antiga poesia inglesa) , uma compilação levada a cabo pelo bispo Thomas Percy. Logo os românticos também se voltaram para a balada, nela procurando a espontaneidade musical e o acento popular. Nomes como Schiller, Heine e Victor Hugo deram nova dimensão ao gênero. Alguns compositores do período, especialmente Chopin e Brahms aludiram à forma lírica dando a algumas de suas peças o nome de "balada". O modelo francês foi o mais adotado: três estâncias de oito versos (repetindo-se sempre o último verso em cada uma delas), rimas em esquema ababacac, e um ofertório de quatro versos com rimas acac. No Brasil, os poetas parnasianos cultivaram a balada segundo a norma francesa, atraídos pela dificuldade formal. Já os poetas modernos adotaram o nome balada no título de alguns de seus poemas sem qualquer obediência a uma forma fixa, apenas chamando a atenção para a musicalidade dos versos ou para o seu conteúdo narrativo. Bons exemplos são Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes, tendo sido este último o que mais se dedicou ao gênero, chegando a seu ponto alto no livro Poemas, sonetos e baladas.

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